Em Portugal, as audiências não têm favorecido o cinema de terror, embora existam indicativos de que a conjuntura tem sofrido alterações positivas. Enquanto nos Estados Unidos não são poucos os casos em que um filme de terror chega ao topo do box office, em Portugal esses mesmos títulos acabam por ter resultados desanimadores. Na verdade, ao contrário dos países vizinhos, o nosso país não tem tradição na produção de cinema de terror, ou mesmo de fantástico, se quisermos alargar o leque. Para uma mudança de paradigma não será indiferente o papel de festivais e ciclos especializados, na criação e desenvolvimento de públicos, como é o caso do Motelx, onde sessões esgotadas são frequentes. Todavia, parece uma tarefa inglória, pois a distribuição não dá sinais de saber lidar com o material que tem disponível – ainda temos presente o desastrado lançamento de The Innkeepers (Hóspedes Indesejados, 2011) de Ti West, estreado em Portugal mais de dois anos após a estreia no Festival South by Southwest (Austin, Texas). A acrescer que a maior parte da crítica vive sob o efeito de um persistente autismo ou distorção em relação às particularidades do género e aos desenvolvimentos na produção das recentes décadas. Ainda não assentes as reacções extremadas a The Eyes of My Mother (Os Olhos da Minha Mãe, 2016) de Nicolas Pesce, aproxima-se da zona de tiro The Autopsy of Jane Doe (A Autópsia de Jane Doe, 2016) de André Øvredal.
Nascido na Noruega, André Øvredal terminou os estudos nos Estados Unidos mas regressou ao país natal para realizar Trolljegeren (O Caçador de Trolls, 2010). Tendo em conta a manifesta vontade de estabelecer a sua base de trabalho nos Estados Unidos, à boleia de uns soberbos efeitos especiais na caracterização dos trolls, Trolljegeren é um objecto que não esconde as suas ambições. Estrategicamente desenhado segundo um formato da moda, o found footage, comprova a capacidade de o realizador comunicar com o público sem colocar de lado as expectativas da crítica. A receita não é propriamente original, quando comparada com os congéneres americanos. Numa narrativa envolta em teorias da conspiração, tão gratas ao cinema americano, os trolls são estilizados de modo a limpar os traços grossos do folclore nórdico e universalizar a origem da lenda. O facto de ser falado em norueguês não será mais que um pormenor exótico, devidamente neutralizado pelos previsíveis tiques do found footage, facilmente reconhecíveis pelo espectador.
The Autopsy of Jane Doe representa a concretização do sonho de André Øvredal, num diálogo com familiares representações da América, oferecidas pelo cinema e pela televisão. Tal como em Twin Peaks (1990-1991) de Mark Frost e David Lynch, a aparente pacatez de uma pequena cidade do interior é agitada por um assassinato, neste caso de vários indivíduos numa provável ocorrência de home invasion. Curiosamente, como depreendemos das palavras do xerife, não é a brutalidade dos assassinatos que está em causa, mas o facto de um dos corpos não ter sido identificado e não exibir marcas exteriores de violência. Trata-se da citada Jane Doe, cujo nome não é mais que o vulgarmente atribuído a uma anónima vitima criminal. É com imagens fugazes dos modernos subúrbios da classe média, na perturbante simetria de Halloween (1978) de John Carpenter e na melancólica banalidade de Blue Velvet (1986) de David Lynch – recentemente recuperados por It Follows (Vai Seguir-te, 2014) de David Robert Mitchell – que entramos no filme, para rapidamente sermos conduzidos a uma morgue subterrânea, onde acontecerá a autopsia ao corpo, dirigida por um pai e um filho, e onde permaneceremos encerrados até ao final.
A experiência inicial de The Autopsy of Jane Doe pode ser um tanto desconcertante. Por um lado, dependendo da inventividade e memória cinematográfica do espectador, o desvendar do mistério em torno de Jane Doe, projecta uma multitude de cenários, que dificilmente o espectador confirma no final: uma primeira parte que habilmente administra a economia de meios em torno da evolução da tensão; a conclusão, caindo na armadilha das explicações, pecado de que sofre muita da produção contemporânea de terror, evidencia a frustração face às elevadas expectativas que o dispositivo reflecte. Em alternativa, se recusarmos uma posição omnisciente, e não dos deixarmos levar pelo pensamento de Séneca de que “nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”, a recompensa pode ser largamente gratificante. É a partir desta perspectiva que optámos olhar para The Autopsy of Jane Doe.
Vale a pena repescar um conceito, que assenta como uma luva a The Autopsy of Jane Doe. A partir de uma perspectiva feminista, mas indo além de algumas visões do movimento (nomeadamente o texto-charneira “Visual Pleasure and Narrative Cinema” de Laura Mulvey), Barbara Creed refere que, no cinema, a mulher tem sido representada como vítima do monstro (masculino). No entanto, evidencia que, principalmente no cinema de terror, essa representação passa frequentemente pela noção de mulher como monstro – “female monster” ou “monstrous-feminine” – assumindo diversas faces: amoral mãe primitiva (Aliens, 1986); vampira (The Hunger, 1983); bruxa (Carrie, 1976); ventre monstruoso (The Brood, 1979); ferida hemorrágica (Dressed to Kill, 1980); corpo possuído (The Exorcist, 1973); castradora (Psycho, 1960); bela e assassina (Basic Instint, 1992); velha psicopata (Whatever Happened to Baby Jane?, 1962); monstruosa maria-rapaz (A Reflection of Fear, 1973); animal não humano (Cat People, 1942); vida para além da morte (Life-force, 1985); mortal femme castratrice (I Spit On Your Grave, 1978).
Colocar Jane Doe entre a vítima e o monstro ou em algumas das categorias exploradas por Barbara Creed é um exercício que não revela grandes contrariedades. Podemos considerar a bruxa de Carrie, que desperta os poderes telecinéticos quando ocorre o primeiro fluxo menstrual no duche e o corpo parece violentado pela intrusiva tubagem metálica do balneário. Em The Autopsy of Jane Doe, no plano em que o sangue corre entre as pernas de Jane Doe em direcção ao ralo da mesa, esse fluxo é simbolicamente eliminado pela vagina, originando uma série de capacidades telecinéticas, também evidência de uma condição de vida para além da morte, como no filme de Tobe Hooper citado por Barbara Creed.
Porém, não são os sucessivos planos sobre o rosto de Jane Doe, enquanto o seu corpo nu e deitado sobre a mesa é “des-sexualizado”, que irão revelar os seus segredos. Como o pai explica: “Todos temos um segredo. Alguns escondem-no melhor que outros […] Deixemos o ‘porquê’ para a policia e a psiquiatria. A nós cabe apenas descobrir a causa da morte”. Por outras palavras, é nas profundezas do corpo de Jane Doe que estão encriptados os seus segredos e a tarefa de decifrá-los cabe a quem conduz a autópsia, estabelecendo um jogo dialéctico entre interior e exterior, numa espécie de “body invasion”. Paradoxalmente, é no conhecimento do porquê, apontado como estando fora do âmbito da autopsia, que reside a aplacação da vingança de Jane Doe: o extremismo religioso. Será que, num tempo de todos os fanatismos, que põem em causa direitos e liberdades que considerávamos garantidos, o cinema de terror continua a inquietar-se com as complexas vulnerabilidades do presente?