À medida que o cinema vai desaguando no enorme caudal das imagens em movimento enquanto testemunhos da História, cenas e fragmentos prêt-à-porter, é interessante que ele possa ser visto também nas suas dobras, isto é, no impacto cultural, psicológico de determinado filme no presente de outro espaço geográfico, num outro imaginário. É o que faz a segunda longa-metragem do chileno Pablo Larraín que mostra um homem na casa dos 50 anos e o Chile onde vive – ainda agrilhoado ao regime ditatorial de Pinochet -, pela lente da sua obsessão pelo cinema, mais particularmente pela personagem Tony Manero, ícone da disco sound do final dos anos 70 e protagonista de Saturday Night Fever (Febre de Sábado à Noite, 1978) de John Badlam.
Tony Manero é assim um filme sobre essa febre, não já de dançar num sábado à noite numa discoteca, mas sim uma febre causada por um filme e a vontade de nele entrar e ser o rei da dança. Raúl Peralta – assim se chama o protagonista desempenhado pelo genial Alfredo Castro – entra diariamente nas sessões de cinema do filme que celebrizou John Travolta e já sabe as falas de cor, assim como todos os mínimos gestos e coreografias do seu ídolo. Tem o seu espectáculo como bailarino, recriando as danças da fita, num bar local, no qual todos os pormenores têm de bater certo, assim como se prepara para ir a um concurso de duplos, na TV para ser o melhor Tony Manero do país.
Filmado num 16 mm granulado, inteiramente em câmara à mão, Larraín faz fundir a febre pelo cinema (inclusive a sua, ou de que outra forma pode descrever-se esse exercício atlético de carregar uma câmara durante todo um filme?) com uma febre homicida de perda de identidade e loucura. É por isso que Tony Manero ao mesmo tempo que brinca com a questão dos duplos – é do ano anterior Mister Lonely (2007) de Harmony Korine sobre uma comunidade de sósias na Escócia – nos mostra uma patologia mais profunda: é o papel da falta de profundidade de campo e nitidez, do grão, com que Raúl vai percorrendo as ruas, separado de uma realidade instada pela pobreza feita de latas de atum fora do prazo, de desemprego e perseguição aos opositores do regime.
Raúl quer ser Tony (Manero), mas o seu actor, Alfredo, é antes Tony (Montana), fazendo-nos entrar por esse imaginário da violência desesperada de Al Pacino em Scarface (1983) e até mesmo pelo poder homicida das imagens de John Carpenter’s Cigarette Burns (2005). Neste último caso, a comparação é até bastante clara sobretudo quando vemos Raúl a ser surpreendido por um novo filme no cinema – Grease (1978) a substituir Fever -, levando-o a roubar a película do seu filme fetiche, matando o projeccionista. Traz a película para casa e tenta ver as suas imagens, paradas necessariamente, à luz de um candeeiro.
Essa febre cinemática, como se penetrar tão profundamente nas imagens de um filme gerasse um sentido final qualquer, um sentido em última instância desembocando em loucura e transformação de um duplo no verdadeiro, é contraposta pela superfície das imagens televisivas. Existe uma televisão em casa de uma senhora que Tony mata, a cores – é ela que permite ver o olhar azul e límpido de Pinochet – e que mostra o Presidente a declarar a cueca (estilo musical) como dança nacional do país. A televisão será depois vendida para recriar a magia do cinema, e mais tarde, Larraín filma o estúdio televisivo cortado nos seus enquadramentos, abafado pela estupidez de uma cultura popular, da qual Raúl apenas quer retirar a perfeição total do duplo. É nessa travessia louca, de um homem que quer extrair o carácter de reprodução ao cinema, e declarar-se o original e único, que o filme se instala.
Mas importa ainda falar das pessoas que rodeiam Tony. O rapaz que com ele dança no bar, sua projecção mais nova e concorrente pelo “estrelato” e o trio de mulheres enfeitiçadas por esta versão envelhecida, impotente e depauperada de um John Travolta wannabe. A dona do bar quer fugir com ele, assim como a sua companheira de dança. A filha desta, mais nova, é a única por quem Tony ainda sente as ancas balouçar genuinamente. Larraín filma assim uma personagem enclausurada pelo universo feminino mas também por um mundo sem oportunidades onde as tábuas do palco se partem, as bolas e os espelhos se convertem em improvisadas bolas de espelho e os cabelos brancos se escondem. A dimensão mais perturbadora do filme de Larraín está aqui, nem está nos crimes. É como se assistíssemos a uma versão esventrada de Saturday Night Fever, em que o glamour do showbiz é visto aos cacos, como única saída possível para um desejo de evasão tão social – são os inúteis [I vitelloni (Os Inúteis, 1963) de Fellini – como interior – são Jim, Judy e Plato de Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955).
Resta apenas dizer que, só tendo visto ainda Jackie (2016) do mesmo autor, se percebe que a câmara como instrumento de proximidade nas mãos de Larraín é canivete suíço que vai desde a construção da loucura à edificação do trauma de uma perda. Ou talvez estes não sejam senão declinações da mesma profundidade emocional, da mesma febre.
Este texto continua a rubrica Cinema em Casa onde regularmente o À pala de Walsh faz destaques de lançamentos DVD/Blu-Ray /VOD no mercado nacional. Tony Manero pode ser visto em streaming na mais recente plataforma de VOD nacional, a Filmin. O À pala de Walsh, em colaboração com a Filmin, dá a possibilidade ao leitor de se habilitar ao acesso temporário à plataforma de forma a ver o filme de Pablo Larraín. Tony Manero está acessível para visionamento na plataforma streaming Filmin. Para se inscrever no sorteio de dez códigos que temos para oferecer basta que partilhe nas redes sociais o link desta crítica e envie um mail para apaladewalsh@gmail.com com o seu primeiro e último nomes e a resposta à seguinte pergunta:
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