A partir de 20 de Março, a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema inicia o ciclo Questões de Interesse Geral para Projecções Públicas: O Cinema de Pere Portabella, mostra da obra do cineasta catalão e “carta branca” com filmes por ele escolhidos. Pere Portabella também estará presente em Lisboa, na companhia de Esteve Riambau, director da Filmoteca de la Generalitat de Catalunya, para acompanharem os últimos dias do ciclo e participarem em conversas com o público. Vampir, Cuadecuc (1970) é a obra-prima de Portabella, um admirável OVNI da história do cinema, que oferecemos como aperitivo para a proposta aliciante que a instituição lisboeta dedica ao cineasta.
No contexto da produção cinematográfica espanhola, para além do grupo de cineastas de Madrid associado ao Cinema Novo Espanhol, surgiu a denominada Escola de Barcelona que, apesar do que o nome indica, não se tratava tanto de um grupo organizado mas sim de um conjunto de realizadores, alguns sem formação académica, que se movimentavam entre a burguesia catalã partilhando algumas preocupações estéticas, tendo Pere Portabella e Vicente Aranda como os nomes mais proeminentes. Conforme explicamos no texto Uma vela para Deus e outra para o Diabo incluído no dossier dedicado à censura no cinema, organizado por Sabrina D. Marques para a publicação online Wrong Wrong, o trabalho de Portabella é relevante, não só na transversalidade às diferentes facetas do cinema espanhol como a modos particulares de se relacionar com a censura.
A carreira de Pere Portabella começou como produtor de Los golfos (1960) de Carlos Saura, El cochecito (1960) de Marco Ferreri e Viridiana (1961) de Luis Buñuel, títulos emblemáticos de diferentes olhares sugeridos pelo Cinema Novo. Refugiado no México após a Guerra Civil, Buñuel foi convidado para regressar a Espanha e filmar Viridiana, usando um cardápio variado que abriu uma enorme cratera nos limites decretados pela censura: pulsões pedófilas, fetichismo, abuso sexual, paródia com motivos e praticas religiosas e um final com um sugestivo ménage à trois. Só o escândalo provocado pela exibição no Festival de Cannes levou as autoridades espanholas a renegá-lo, eliminando-o durante muitos anos do registo de filmes produzidos no país. Enquanto cineasta, a obra de Portabella é composta por poucos títulos e muitos deles de duração curta, sem grandes preocupações narrativas, que reflectem sobre o cinema e os seus modos de produção, sendo exibidos, tanto em espaços museológicos, como em clássicas salas de cinema.
Embora Pere Portabella e Jess Franco ocupem posições singulares e diametralmente opostas, há um dado importante que os une: a vontade de experimentar.
Embora Pere Portabella e Jess Franco ocupem posições singulares e diametralmente opostas, há um dado importante que os une: a vontade de experimentar. Jess Franco realizou cerca de duzentos filmes, para os quais escreveu argumentos, compôs música e fez a produção, participando muitas vezes como actor. Os baixos orçamentos levaram-no a soluções engenhosas, numa obra que muitos consideram curiosidade camp, trash ou exploitation, e uma interessada minoria procura conhecer detalhadamente, tornando-o num dos realizadores de maior culto no mundo.
A ligação de Jess Franco a Portugal é intensa, onde realizou, durante a década de 1970, alguns dos seus melhores filmes, aliado a co-produtores nacionais. Também, aqui viveu, de ascendência lusa e casada com um português, a sua primeira grande musa, Soledad Miranda, falecida prematuramente num trágico acidente de viação, entre Estoril e Lisboa. Um dos exemplos mais célebres da ligação do realizador a Portugal é Die Liebesbriefe einer portugiesischen Nonne (Cartas de Amor de Uma Freira Portuguesa, 1976), título com uma forte componente erótica, ainda que tenha obtido autorização para ser rodado em monumentos religiosos (entre eles, o Mosteiro dos Jerónimos). Na década de 1980, quando a obra foi exibida em Portugal, foi motivo de escândalo levantado pelo tablóide Tal & Qual, que lhe colou, indevidamente, o rótulo de pornográfico, levando os actores nacionais participantes (Herman José, Ana Zanatti ou Victor de Sousa) a se demarcarem dela.
A censura do regime ditatorial do general Francisco Franco, obrigou Jess Franco a refugiar-se noutras paragens para continuar a actividade de cineasta, principalmente quando se tratavam de aproximações ao softcore ou ao hardcore – muitas vezes forçado pelos produtores e distribuidores que chegavam a fazer terríveis inserções hardcore, rodadas sem o seu conhecimento e com outros actores. A maior parte dos seus filmes seguia para o mercado internacional, em versões diferentes, esquartejadas pela censura local, pelo que não é tarefa fácil entrar na sua obra, sendo aconselhável um mapa que permita assinalar as versões que mais se aproximam do seu plano de intenções. Os grandes cultores da sua obra encontram-se espalhados pelo mundo e procuram avidamente as diferentes versões, trocando informações valiosas e discutindo em grupos especializados, nas redes sociais.
Por volta de 1969, Jess Franco lançou-se numa adaptação fiel para cinema da obra Dracula (1897) de Bram Stoker, a ser rodada em Espanha, com financiamento e actores internacionais. Franco não gostava particularmente dos filmes produzidos pela Hammer, que considerava versões a cores dos filmes de monstros da Universal, mas foi lá roubar a sua maior estrela, Christopher Lee, para desempenhar o papel do conde vampiro, juntando-o a outras vedetas internacionais, Klaus Kinski e Herbert Lom, e a lendas do cinema de género europeu, Maria Rohm, Soledad Miranda, Paul Muller e Jack Taylor. O resultado foi Nachts, wenn Dracula erwacht (El Conde Drácula, 1969), que não teria grande interesse dentro da produção de Jess Franco ou da filmografia de Christopher Lee – impossível de descolar das interpretações nos filmes da Hammer – não fosse a fama que lhe deu Pere Portabella, quando foi autorizado a acompanhar as filmagens, daí resultando a notável obra Vampir, Cuadecuc (1970). O termo catalão “cuadecuc” pode ser traduzido como “cauda de verme” mas também pode referir-se à parte não exposta no final de um rolo de filme.
Considerar Vampir, Cuadecuc um dos mais célebres making-off da história do cinema, muitos anos antes da vulgarização deste formato, é formalmente redutor. Portabella usa filme a preto e branco de alto contraste, para a criação de imagens expressionistas que revelam os bastidores, a definição dos ambientes, a criação artificial de nevoeiro e de teias de aranha, as pausas, as repetições ou os sorrisos dos actores para a câmara. Ou seja, para exibir todo o aparato que está para além da tela de cinema, expondo os códigos que definem o género do terror e, de um modo mais lato, explorar a linguagem do cinema. Na pista de som, os diálogos foram substituídos por silêncio ou música concreta da responsabilidade do seu colaborador habitual, Carles Santos. Unindo o som de instrumentos musicais a ruídos reconhecíveis do quotidiano, que interferem insolitamente com o conteúdo da imagem, cria situações perturbantes, como as cenas em que os actores falam e apenas se ouvem sons que parecem toques insistentes de alguém numa porta ou no soalho.
O que marca destacadamente o dispositivo de Vampir Cuadecuc de um mero making off é o facto de Portabella (re)filmar a encenação de Franco a partir de diferentes ângulos, não só vampirizando o trabalho de Franco, como compondo o retrato de uma Espanha parada no tempo
Pontualmente, a maquinaria de Franco entra no plano de Portabella como se os operadores estivessem a intervir com precisão numa cirurgia, que mais não é, que um filme de terror modelado com efeitos especiais de baixo orçamento. Portabella utiliza o mesmo procedimento na curta-metragem Play Black (1970), agora com a sua própria equipa a filmar a gravação de um coro para a banda sonora destinada a um filme sobre Antoni Gaudí. No entanto, o que marca destacadamente o dispositivo de Vampir Cuadecuc de um mero making off é o facto de Portabella (re)filmar a encenação de Franco, como se lhe pertencesse, a partir de diferentes ângulos, não só vampirizando o trabalho de Franco, como compondo o retrato de uma Espanha parada no tempo, com ruas desertas e prédios que se diriam desabitados, a contrastar com outras imagens ou sons em off que indiciam sinais de movimento, mudança ou progresso: uma filmagem a partir de um veículo em movimento rápido, um comboio que passa tão veloz que só retemos as linhas do design das carruagens ou os sons de um avião e do que parece ser um martelo pneumático a perfurar o chão. A marcar o ritmo, em planos repetidos, do alto da varanda da sua casa senhorial, Drácula vigia atento os movimentos à sua volta.
Desenvolvendo uma reflexão iniciada na publicação Le Miroir obscur: une histoire du cinéma des vampires, Stéphane du Mesnildot, crítico dos Cahiers du Cinéma, numa conferência dedicada a Christopher Lee, organizada pelo Motelx em colaboração com o colectivo White Noise, refere-se a Vampir, Cuadecuc como parecendo a impressão de um outro filme, uma imagem de stencil ou uma série de fotocópias que vão eliminando os detalhes. E conclui: “Christopher Lee, que começa por ser representado por uma figura reconhecível, vai sendo reduzido a uma superfície abstracta de tons negros e brancos. Drácula funde-se com as folhas e as pedras, invadindo o ar, a sombra e a luz, vampirizando todo o visível, mas também o inconsciente de jovens mulheres e do espectador – como se fosse um grupo de manchas de um Teste de Rorschach em movimento. A visão mais perplexa é a face branca sobre um fundo preto, reduzida a apenas alguns sinais, que aparece a Mina Harker. Se essa impressão do rosto de Christopher Lee nos gela é porque obscuramente a reconhecemos sem nunca a ter visto. É a mascara de um Deus cruel”.
Nos créditos iniciais de Vampir, Cuadecuc está assinalado que o filme foi realizado durante a rodagem de “Dracula” de Jesus Franco, tendo sido produzido pela Hammer Films. Não existe evidência real de que a produtora britânica estivesse envolvida na produção do filme de Franco, pelo que vamos a recorrer a alguma especulação para interpretar este facto. E se esta menção não se tratasse de um lapso? E se esse erro factual fosse inserido, conscientemente, por Portabella, no genérico? Assim, poderíamos concluir que, nas condições de produção em que é assinalado, o filme em questão nunca existiu, servindo apenas como motivo para contornar a censura e filmar abertamente a realidade crua da ditadura fascista espanhola. E que interesse nutriria Portabella pelo facto de o mestre de cerimónias Jess, partilhar o mesmo apelido, Franco, com o ditador Francisco? Portabella continuaria a reflectir sobre o regime fascista em Umbracle, realizado no mesmo ano que Vampir, Cuadecuc e também com Christopher Lee.
Em Vampir, Cuadecuc, Pere Portabella não mostra a morte de Drácula e pede a Cristopher Lee que retire todos os elementos da sua máscara para ler o excerto da obra de Bram Stoker, para descrever a morte da sua personagem, terminando com um close up do rosto do actor, imóvel por alguns segundos a olhar para a câmara, enquanto se ouve a voz de alguém que grita: corta! O negro invade o écran e é anunciado o fim. Poucos anos depois, a 20 de Novembro de 1975, o general Francisco Franco morreria, acelerando a queda da ditadura, e Pere Portabella tornar-se-ia num participante activo da vida política espanhola.