Acting is going in, searching for yourself. (…) Creating a character (…) is looking for yourself. (…) Playing a criminal is not about trying to imagine how a criminal would be, it’s about how you would commit murder. (…) There’s also Pirandello’s novel One, No One and One Hundred Thousand, about a character who discovers one day that the way he thinks about himself, his secret self, is radically different from the personas that everyone who knows him have constructed for him. This was the question: who are we?
Cristi Puiu em entrevista à Sight & Sound, December 2012, Volume 22, Issue 12.
Pese embora o rótulo de “um dos grandes actores do cinema europeu” e uma condizente prolífica carreira, Bruno Ganz é conhecido, sobretudo – e nisto não vai pinga de menosprezo, pelo contrário –, por meia dúzia de filmes. Ou, e com isto dizemos já muito da sua magnetizante presença, por meia dúzia de personagens, de rostos, expressões, trejeitos, andares. Quem viu filmes como Mia aioniotita kai mia mera (A Eternidade e Um Dia, 1998, Theo Angelopoulos), Dans la ville blanche (A Cidade Branca, 1983, Alain Tanner) ou Der Himmel über Berlin (As Asas do Desejo, 1987, Wim Wenders), jamais esqueceu o seu rosto soturno e apático, a solidão da sua existência, a um ponto tal que Ganz parece “padecer” de tristeza – não necessariamente de tristeza como “depressão”, mas quase um modo de existir em alguém que não se atormenta propriamente com o facto de levar assim a sua vida, não esboçando sequer uma tentativa de “superar” essa tristeza.
Quem viu esses filmes, repito, não mais se lhe escapou da memória as personagens marcantes, verdadeiramente titânicas no seu apagamento sorumbático, interpretadas por Ganz, razão pela qual, em texto que dediquei ao actor francês Vincent Macaigne, o incluí numa lista (exemplificativa) daqueles a que chamei os “destroços ambulantes” da história do cinema, juntamente com o Harry Dean Stanton de Paris, Texas (1984, Wim Wenders) e o Marcello Mastroianni de O melissokomos (O Apicultor, 1986, Theo Angelopoulos), todos eles “homens abatidos, errantes, de passo desinteressado e olhar vazio no chão”. Em Der amerikanische Freund (O Amigo Americano, 1977, Wim Wenders), Ganz, além de triste como a noite/como sempre, está mesmo doente, aliás, prestes a morrer, os sucessivos diagnósticos, inconclusivos quanto a eventuais melhoramentos, a prolongarem o autêntico limbo que é a sua existência. Na verdade, estando (ainda) vivo, é como se Ganz (ou uma parte dele) estivesse já morto – um morto-vivo, então, um zombie aguardando que o primeiro substantivo consuma por completo o segundo. Até lá, fazer molduras, acompanhar o filho, conviver com a mulher.
Mas é justamente aqui que é operada a grande démarche no acervo das personagens icónicas de Ganz nos filmes acima citados, contrariando-se o fatalismo para que todas elas tendem. De facto, em Der amerikanische Freund, a personagem de Ganz (Jonathan) empreende como que uma revolta, e de sentido duplo: quer consigo mesmo (i.é, com os traços da sua personalidade), quer com as personagens interpretadas por Ganz nos tais filmes a que aludimos, como que lhes dando uma sacudidela meta-fílmica. Esta revolta existencial, ontológica (e cinéfila, claro), processa-se mediante a metamorfose que acometerá, lenta e silenciosamente, Jonathan, nesta jornada de auto-descoberta se prolongando o cariz “itinerante”, “em andamento”, da chamada trilogia road movie do cineasta alemão (iniciada no belo Alice nas Cidades, passando por Movimento em Falso, 1975, e “estacionando” em Ao Correr do Tempo, 1976, se bem que seja só mesmo uma paragem para descansar e comer qualquer coisa, pois Wenders voltaria “à estrada”, agora mais “pedestre”, em Paris, Texas).
A doença de Ganz (a “verdadeira”, para quem não acreditar na da tristeza) é no sangue. E é exactamente isso que falta a Jonathan, ser pálido e hibernal, na vida (e no rosto): sangue, cor, rubor, calor. Tudo qualidades, emoções, vertigens que encontrará na execução dos homicídios que Minot lhe encomenda, e que ele, contra toda as expectativas (homem decente, recatado, enfim, “normal”), aceita com escassas hesitações e, sobretudo, sem grandes dores morais. A proximidade da morte (e não só a propiciada pela doença: há um suicídio que fica a meio caminho…) é o grande motor da revolta de Jonathan, e é também ela (a iminência da morte), na sua dimensão absoluta, que fornece pistas para o modo como Ganz encarará os homicídios, espécie de “vida de aventuras” que finalmente, in extremis, devolve alguma cor à sua vida (uma cor quente, encarnada, a mesma do sangue de que Jonathan enferma, a mesma do sangue dos homens que mata), daquelas cheias de obstáculos e suspense contadas nos livros infantis para crianças (e nos filmes noir…) – não é um sorriso de frémito, próprio de uma brincadeira, aquele que lhe lemos no rosto depois de concretizar o primeiro assassinato? Sorriso que, noutro contexto, bem poderia ser lido como “psicótico” ou “depravado”, mas que aqui nunca o é, apenas o de um miúdo a pisar matreiramente o “proibido”, a ver até onde pode ir sem que os pais (ou a sociedade, a “normalidade”) o repreendam. Um miúdo a testar os limites enquanto joga, de pistola na mão, aos “polícias e ladrões” (ou gangsters), alegoria reforçada na bonacheirona cena, já perto do final, em que Jonathan e Ripley (Dennis Hopper), enquanto esperam pelo chegada dos “maus” (?) à mansão, fazem uma pausa pelo meio para comer qualquer coisa.
Esta revolta é também a de que fala, noutros termos, o próprio Wenders (que lhe prefere chamar “transformação”), num interessantíssimo trecho do seu livro A Lógica das Imagens: “Todos os filmes são políticos. Antes de mais, porém, aqueles que de modo algum o querem ser: os «filmes de entretenimento». São os filmes mais políticos que existem, porque exorcizam das pessoas a ideia de transformação. Tudo está bem como está, dizem (…). São um reclamo único das condições vigentes. Julgo que O Amigo Americano não se deixou apanhar por isso. É, na verdade, um «filme de entretenimento» (…). Porém, não confirma o vigente. Pelo contrário, tudo é transformável, tudo é aberto, tudo é ameaçado”. Revolta, transformação: ambas confluem no mesmo sentido, a saber, a possibilidade de nos reinventarmos a todo o tempo (mesmo quando já parece tarde demais), de nos enquadrarmos/desenquadrarmo-nos do formato – da “moldura” – em que convencionalmente nos encaixamos, nos deixamos encaixar ou, mesmo, em que aceitamos (mais ou menos forçadamente) que nos encaixem. Neste sentido, Jonathan é o alter-ego fílmico de Wenders em Der amerikanische Freund, assumindo, a partir da sua revolta, as rédeas de “realizador” da sua própria vida: ele é que definirá, dali em diante, a sua existência, ou seja, o (seu) enquadramento, o que sai do plano e o que entra, inclusivamente a disposição do que está “dentro” do plano, não havendo melhor figuração desta ideia do que o ofício de Jonathan e, especialmente, os planos em que Wenders o enquadra (justamente) a enquadrar-se e desenquadrar-se nas molduras que tem nas mãos. O enquadramento é uma questão existencial.
Num road movie que também o é em termos literais (entre Hamburgo, Paris e Munique), Jonathan percorre o caminho interior do grande tema de todo o cinema de Wenders, a Identidade, não por acaso se iniciando o filme em torno das questões da autenticidade e da cópia (conforme) de um quadro pertencente a um pintor falsamente morto (Nicholas Ray). E é Jonathan que detectará o embuste, homem capaz de afiançar a a identidade de um quadro mas incapaz de conhecer a sua (ou, se a conheceu algum dia, foi há muito tempo). “I know less and less about who I am, or who anybody else is”, diz Ripley num dos seus monólogos para o gravador (os áudios enquanto “prova” da existência para Ripley como eram as polaroids para o Philip de Alice nas Cidades). “Quem sou?”, pergunta Ripley, pergunta Jonathan, perguntam-se um ao outro naquela amizade improvável. I wish I had someone else’s face, diria Jonathan, respondendo também pelas personagens de Ganz em Mia aioniotita kai mia mera e Dans la ville blanche, e por isso é que, em Der amerikanische Freund, o Jonathan que termina o filme não é mais o Jonathan que o iniciou, é um Jonathan de “cara (face) lavada”. Quem é, exactamente? Não sabemos, mas esta liberdade – de revolta, de transformação – é o que mais importa. É tudo o que importa.