Death, Death, Death, the whore!
O amor e a morte não são propriamente dois estranhos no que diz respeito ao terror. Não faltam ao género histórias de amantes caídos em perdição, nem de adolescentes cujo desejo sexual é severamente punido com a perdição dos seus corpos. Contudo, em Dellamorte Dellamore (1994), a obra mais famosa de Michele Soavi, realizador italiano e assistente de realização de nomes como Dario Argento, Mario Bava ou Terry Gilliam, essa relação não é fácil de destrinçar. E isso acontece porque o seu herói, Francesco Dellamorte (Rupert Everett), se encontra num cruzamento entre o amor impossível por uma mulher, o amor fraternal pelo seu assistente, mas também a impotência sexual (pelo sexo oposto) e a impotência social (pelos vivos), por contraponto à facilidade que é lidar com os mortos. Ou quase mortos.
Sete dias depois de morrerem, os habitantes do cemitério de uma pequena localidade italiana voltam à vida e é aí que Francesco e o seu assistente, Gnaghi, os têm de matar novamente. Comédia de zombies portanto, com vísceras on the loose, reduzido orçamento, a tentar casar o artesanato dos primeiros filmes de Peter Jackson e o riso negro da saga de Sam Raimi, The Evil Dead. Mas dizer isto seria pouco, pois tal como o coveiro do cemitério se encontra entre vários dilemas, a mesma coisa parece acontecer com o próprio filme. Se ele é hoje um filme de culto talvez o seja porque a acrescentar a estes territórios do sarcasmo negro, vão-se adicionando camadas que fazem com que a cada cena que passa nos perguntemos: mas o que é isto?
Já falei de Jackson e Raimi, mas depois há, claro, o terror italiano, sobretudo através dos violinos sintetizados de Manuel De Sica [filho do realizador de Umberto D (Humberto D, 1952)] e da construção dos ambientes oníricos que encontramos, por exemplo, nos filmes de Argento. Mas à medida que avançamos no filme de Soavi, rapidamente percebemos que mais importante do que as sequências de confronto com os mortos-vivos está a construção solitária da personagem de Everett, incapaz de se relacionar com o mundo dos vivos como o faz com o dos mortos. O filme parte da adaptação de um livro de Tiziano Sclavi que, entretanto já criara a famosa personagem de Dylan Dog, sendo que Francesco é um alter ego italiano de Dylan. Compreende-se então que é por esta via que Dellamorte Dellamore se vai afirmando como character study de uma personagem “vinda” desde um universo dark, comic, num ambiente absolutamente tresloucado e surreal, onde há freiras travesti, histórias de amor com cabeças decepadas, doppelgängers, injecções na pila ou a aparição da figura da morte por entre pedaços carbonizados das páginas amarelas.
Toda esta loucura é conjugada com planos evocativos de Magritte, sequências de góticas paixões em húmidos ossários, muitos véus ondulantes, tudo isto iluminado por fogos-fátuos ou pela romântica lua. A realização de Soavi sente-se que percebe que não ganha nada ao posicionar-se apenas do lado da morte, ou do amor. E, por isso, o terror dá lugar à fantasia, a um onirismo de sentido mais profundo, como se a dada altura Everett fosse o impotente Mastroianni do filme de Mauro Bolognini, Il bell’Antonio (1960), e, ao mesmo tempo, o Mastroianni do pesadelo feminino e castrador de Fellini, em La città delle donne (A Cidade das Mulheres, 1980).
As referências no filme de Soavi, umas mais certas do que outras, parecem perpetuar-se e isso porque o argumento procura fugir constantemente dos seus lugares de conforto, e ir passando pela comédia, o romance, o gótico, o terror, o drama, a fantasia, o cartoon, sempre contrapondo em doses certas a acção, o ambiente e a caracterização de uma personagem que se comporta como um dead living num mundo de living deads. O preço a pagar por esta ousadia de Soavi é que nunca ninguém soube muito bem o que fazer com este filme. Na altura por certo, mas nem agora. O culto parece palavra larga para o conter, como se fora do filme, como fora da vila de Francesco nada faça sentido, nada exista, simplesmente. “The rest of the world doesn’t exist”, ouvimos perto do fim.
Resta então ver o que há para ver, com a certeza de reconhecer singularidade e um sugestivo cinema “out of the box” quando com eles nos deparamos.