Logo no início, uma das personagens exclama: “Ca noijo!” Canijo regressa com uma história densamente povoada, sobretudo – aqui mais do que nunca na sua obra – por mulheres, e fortemente impregnada de odores, lágrimas, feridas, gritaria. Dirá o leitor: voltou para onde nunca deixou de estar. À entrada da projecção, alguém queixava-se da longa duração da montagem final que nos preparávamos para ver. As duras duas horas e meia de duração pertencem à versão mais curta de Fátima (2017). Uma maior foi preparada para ter distribuição. A caminhada precisará deste tempo todo? Em tese, percebo que sim. O desgaste é parte do ADN de Canijo. O sacrifício da história, dos actores e da câmara precisa de ser partilhado pelo espectador. Os odores, as lágrimas, as feridas e a gritaria carecem de tempo para serem os nossos odores, as nossas lágrimas, as nossas feridas e a nossa gritaria. Esta coabitação – palavra-chave na obra do realizador desde a primeira das suas “tragédias à portuguesa”, e até ver ainda a sua obra-prima, Noite Escura (2004) – é de onde o realizador parte e de onde não sai ninguém. Portanto, é preciso reformular a ideia: Canijo não regressa, porque fundamentalmente ele não saiu do mesmo sítio. O que mudou então em Fátima? Diria que não é tanto o desgaste, mas a qualidade desse mesmo desgaste.
Comece-se pelo elogio possível a Fátima. Esta história sobre um grupo de beatas que dão corda aos sapatos para pagarem as promessas feitas à Nossa Senhora consegue resultar num filme – diria, “numa experiência” – radicalmente anti-religiosa. Não digo com isto que o realizador e as actrizes – ele e elas trabalham de novo em equipa, como aconteceu em Sangue do Meu Sangue (2011) e É o Amor (2013) – procurem fazer deste filme-experiência suporte de um qualquer anti-catolicismo primário. O que quero dizer é que também não foi por Canijo contar uma história sobre uma peregrinação a Fátima que o seu cinema se tornou, usando uma terminologia roubada a Paul Schrader, um exemplar de “cinema transcendental” à la Bresson ou Dreyer. As questões do espírito ficam guardadas onde não devem – e de onde não podem? – sair: no espírito.
Em Canijo só há, pelo menos significativamente, problemas da carne. E mesmo esta carne não aspira a nenhuma ascensão espiritual. As mulheres que caminham são movidas aqui tanto – ou mais! – pelo desejo de acabarem com as dores que o corpo acumula – das bolhas nos pés às dores de joelhos e de costas – quanto pela vontade de alcançarem um outro patamar na sua vida espiritual. Canijo concentra-se na crua realidade da caminhada – a câmara filma o que é, não o que parece ser – e procura despir-se o mais que pode de qualquer ambição religiosa. Isto, pelo menos, até à sequência final, em que se acende uma velinha ao bom espírito católico, o mesmo que esteve praticamente omisso até aí.
Não há imagens em Fátima, apenas um preenchimento de tempos com cenas de exasperação e gritaria dignas de um reality show.
De qualquer modo, acabado eu de fazer o meu elogio ao filme, tenho de dizer que não há nada de elevado, sublime ou belo para se contemplar aqui. Canijo não é um cineasta de “imagens bonitas”, sabemos bem disso. Mas algo muda em Fátima. Em filmes como Noite Escura, Mal Nascida (2007) e, já com nuances importantes que nem toda a gente soube ver, Sangue do Meu Sangue o realizador elaborava uma estética do feio com base num elegantíssimo trabalho de câmara plenamente integrado nos lugares que as personagens habitavam. Havia em Canijo um olho arquitectónico na maneira como comunicava, som com som, quadro com quadro, uma experiência de confinamento e contiguidade. Fátima vai por outro caminho. É verdade que desta vez a comunidade de personagens está em movimento e o confinamento se remete para os interiores das rulotes. Certo, mas a câmara aparece agora destituída desse olhar que pensa antecipadamente a relação das personagens entre si e com o espaço que as cerca. Apesar dessa âncora que sempre foi a presença dos actores – sobretudo das actrizes –, a mise en scène era o primeiro condutor nos dramas de Canijo. Todavia, em Fátima ela não conduz, pelo contrário, parece estar sempre atrás, atrasada em relação ao andar das personagens, das actrizes. São elas que comandam e que nos levam aos círculos até não se sabe bem onde.
O ponto de partida mudou: Canijo tem investido num trabalho de excessiva proximidade com os seus actores. Com isso, a meu ver, esvaziou a sua “estética do feio” até ao limite em que a câmara perdeu presença, mundo, “assinatura” – já não há estética do feio, mas apenas, muito simplesmente, o triunfo do feio por si mesmo. Há uma cena em que a personagem de Rita Blanco desabafa à de Cleia Almeida que não se importa de ser feia, ao que a segunda responde, dando o caso da avó, que as rugas são muito bonitas. Faltam estas rugas a Fátima, filme esteticamente liso. O trabalho de mise en scène foi anulado por um exercício académico – não confundir com experimental – de “suporte de actuações”. De um cinema de actores passou-se para um cinema para actores. Não há um olhar a enformar algo, mas uma repetitiva tentativa de aglutinar ensaios ou screen tests feitos cenas. Ao invés da sensação de estarmos com aquelas personagens e vivermos com(o) elas um drama do corpo que (até muito saudavelmente) transpira pouca fé, somos como espectadores distantes do trabalho criativo de um conjunto de actrizes. Fátima é como um making of para um filme de Canijo que fica por fazer e quando digo “por fazer” digo “por pensar”, “por organizar”, “por imaginar”.
Não há imagens em Fátima, apenas um preenchimento de tempos com cenas de exasperação e gritaria dignas de um reality show. Passamos assim de uma proposta desafiante de negociação entre estetismo e realismo – dos filmes anteriores do cineasta, salvo o premonitório É o Amor – para uma linguagem paratelevisiva, algures entre a reportagem, o sociodrama e o reality show, que tem Fátima como objecto. O desgaste está lá de facto, mas a qualidade do mesmo mudou. Mudou para mal dos nossos pecados.