José Oliveira é um caso especial no cinema português. Quem frequenta as salas da Cinemateca Portuguesa já certamente se cruzou com esta cara familiar, um cinéfilo rigoroso, mas também realizador, crítico de cinema – desde 2008 que mantém o seu espaço Raging- b – e programador em vários projectos. Nesta primeira parte da minha conversa com ele, aqui em Lisboa, falámos sobretudo dos seus filmes, dos seus gostos cinéfilos, e da sua ambição por ir descobrindo, como uma aventura, o cinema a ver e a fazer. [Na segunda parte da nossa conversa mudámos o sítio – fomos até Braga – e juntou-se-nos o João Palhares, antigo colaborador do À pala de Walsh; ambos são os fundadores do cineclube Lucky Star – Cineclube de Braga, um projecto ambicioso que anima as noites cinematográficas da cidade, convocando, virtual e presencialmente, cinéfilos de todo o mundo para receber e pensar sobre os filmes que propõem].
Muitos dos teus filmes são co-realizados com duas outras pessoas, a Marta Ramos e o Mário Fernandes: é o caso de Sem Abrigo (2012), Times Are Changing, Not Me (2012), O Atirador (2013) e 35 anos depois, O movimento das coisas (2015). Como se processa a distribuição do trabalho? Quem faz o quê?
Esta relação com eles começou após os meus estudos, cerca de 2010. Nessa altura conheci o Mário através dos blogues. Ele tinha acabado de realizar um western de 3 horas chamado Lost West/Oeste Perdido (2010) e mandou-me um email para ir vê-lo. Gostei e gosto muito do filme e entretanto eu próprio também tinha realizado dois filmes na Escola Superior Artística do Porto. E comecei a fazer ainda uma curta sozinho, o Pai Natal (2011), com a ajuda de algum pessoal dos blogues, o Daniel Pereira, o Tiago Ribeiro, a Sabrina Marques. Depois através do Mário conheci a Marta e juntámos-nos os três para começar a pensar em ideias para filmes. Quando surgia algo que nos interessava aos 3, acabávamos por fazer tudo no projecto e nisto diluiu-se muito a noção de quem era o autor, o produtor, de quem era a ideia… Podia um surgir com uma ideia e depois todos deitávamos achas para a fogueira, e o Mário ou a Marta podiam também aparecer como actores… Depois no final era difícil responder à questão: “quem vai assinar isto?” Assim, assinávamos os três. Eram filmes sem grandes pretensões, filmes feitos no “quarto mágico”, digamos assim. Tínhamos lá tudo, as câmaras, uma mesa de montagem, o material era todo nosso, podia haver algo emprestado, mas regra geral eram as nossas coisas, coisas um bocado amadoras. E foi assim que surgiram esses filmes, o Sem Abrigo (2012), o Times Are Changing, Not Me (2012)
Esse último é com o Manuel Mozos…
Sim, o Manuel foi aos Encontros de Cinema, que agora são no Fundão. A primeira edição creio que foi na Guarda e ele foi um dos convidados. Aproveitámos, como tenho uma boa relação com ele, e fizemos-lhe uma entrevista, uma coisa simples, uma brincadeira. Mas retomando a tua questão inicial, não consigo distinguir quem faz o quê. Por exemplo, eu às vezes faço câmara, mas o Mário pode filmar uma cena em que eu entre e ele realiza e faz a fotografia. Como não temos actores muitas vezes interpretamos nós as cenas.
E ao nível dos planos, todos têm ideias ou há alguém que pense mais essa parte?
Penso que é tudo feito um bocado por instinto. Não há propriamente um planeamento, por vezes vamos para um sítio e daí surgem as situações. Claro que por vezes escrevemos um diálogo. Mas não decidimos de antemão que planos vamos fazer. Tem muito a ver com o que a realidade nos dita no momento. Apesar de haver esta relação em que todos fazem tudo, acho que posso dizer que a Marta está mais na montagem, creio que é um pouco aquela coisa que o Pedro Costa diz do Straub, acho que tem “mais calma”, mais cabeça, concebe melhor uma estrutura, enquanto que nós somos mais apressados.
E agora com o Longe (2016), sentiste ou não a diferença em assinar um filme sozinho?
O Longe é um caso muito específico. Tem a ver com o actor principal, o José Lopes. Foi alguém que eu conheci há cerca de cinco anos, através da Marta. A partir daí, depois de o conhecer, encontrava-o quase diariamente ao longo destes cinco anos. Ele tem uma história de vida muito rica, muito difícil, um bocado trágica e heróica ao mesmo tempo. E começámos com este projecto de fazer um filme os dois. Encontrávamo-nos para falar, ele contava-me episódios da sua vida, víamos filmes juntos, recomendava-me livros. Depois tentámos financiamento para o filme, os concursos do ICA, escrevemos um argumento, assim algo mais formal do que os filmes de que falávamos agora. Mas nunca conseguimos, tentámos duas vezes, sem sucesso. Depois, passados quatro anos pensámos “vamos fazer isto na mesma”. E como era um projecto mais escrito, estruturado, com cenas, diálogos, locais previamente escolhidos, começámos a filmar de forma mais ordenada. O espaço para a improvisação foi menor do que estava habituado, embora muitas cenas tenhamos trabalhado dessa forma.
Neste caso, quase se pode pensar numa co-realização tua neste filme com o actor, o José Lopes.
Sim. Houve aliás uma luta saudável durante o filme entre mim e o José Lopes, ele por vezes queria fazer uma coisas que a mim não me interessavam tanto e vice-versa. Mas depois os meus amigos de antes voltaram a trabalhar no filme. Houve ainda essa outra diferença de ter chamado o Manuel Pinto Barros, um director de fotografia já com mais experiência.
Gostava que falássemos de um elemento que surge quer no vosso filme de 2012, Sem Abrigo, quer agora no Longe. Falo da integração e da solidão das tuas personagens num grande espaço urbano. É curioso que, em ambos os filmes, tenhas planos de carrosséis, aqueles “monstros luminosos e barulhentos”, que ora sobem ora descem, e de como é tentador vê-los como metáfora para esses espaços urbanos que ora atraem ora repudiam as pessoas que procuram um espaço de acolhimento.
A solidão é o tema dos dois filmes e tem a ver com aquilo que eu e o José Lopes vivemos. No caso do Longe isto também partiu da ideia de andar por Lisboa com ele. Eu sou de Braga e para mim conhecer outra cidade implicou sair muitas vezes da Cinemateca e ir a locais de sem-abrigos. Locais onde a vida pulsava, algo que me interessa para a minha ficção. Sentir o peso da realidade, acho que é isso também que está no cinema de que gosto, que vejo, escrevo ou programo. E o José conhece esses espaços na realidade e no cinema muito melhor do que eu e é por isso que conto sempre vir a fazer outros filmes com ele. A relação com a realidade ajuda-me a estabelecer limites, não há que inventar. Por exemplo, os carrosséis, pode parecer algo onírico mas tem sobretudo a ver com o realidade que encontro.
Sim, sente-se esses limites impostos por uma relação com o real. No Pai Natal e no Sem Abrigo sente-se este processo de integração de uma personagem (seja ou não o teu alter ego), que anda à procura do seu lugar, num espaço grande que pode funcionar como muro. Ainda sobre espaços, um dos teus documentários é sobre a tua cidade, Braga. Qual a diferença entre filmar esse espaço e o espaço de Lisboa?
Braga é um filme que quase já não me lembrava, mas recentemente tem sido programado em algumas mostras. Foi um filme que fiz quando estudava no Porto e tinha uma vida um bocado solitária. Por isso, o filme são quadros fixos da cidade. Fiz o filme para a disciplina de documentário, e fi-lo assim também por oposição à maioria dos filmes que trabalhavam com entrevistas, por vezes próximos dos formatos televisivos. Na altura andava a ver um realizador que gosto bastante, o James Benning, que tinha aqueles quadros e pensei aplicar esse dispositivo à minha cidade, um espaço que gosto muito. E depois tentei opor coisas, criar choques e isso talvez seja a parte mais “ficcional” do filme: entre o dia e a noite, entre a parte sagrada de Braga (que toda a gente diz que é muito pesada) e a parte mais industrial. Também estabelecer ligações, pessoas que passam de um plano para o outro, etc. Mas mais uma vez era o peso da realidade que procurava encontrar, tentar que as pessoas pudessem perceber a realidade de Braga através do meu filme.
Em que medida te foi útil estudar cinema na ESAP?
Acabou por ser, apesar de já ter dito e escrito sobre maus episódios que aconteceram ou professores de que não gostei nada. Ou, por exemplo, a tentativa de uma certa formatação académica. Como tudo na vida, acabou por ser fundamental. Conheci algumas pessoas interessantes, um ou dois professores que me começaram a mostrar filmes e me deram uma certa crença sobre como é que o cinema deve ser. Um deles é o Carlos Melo Ferreira, que deu para aí uns 30 anos de aulas na escola de cinema e que é para mim uma da pessoas que mais percebe de cinema em Portugal. Mostrou-me muitos filmes, Fords e Hawks nos clássicos, por exemplo, mas também depois coisas modernas como os Rossellinis, o Bresson. Coisas que se calhar não teria visto sem a sua indicação. E depois a escola no Porto como é fora do centro é mais selvagem, no bom sentido, e há professores que se focam menos nos argumentos e nos incitam a ir para a rua filmar. Isso é bom, permite-nos criar coisas menos formatadas. Imagino, não sei, que no Conservatório de Lisboa não seja tanto assim, haja mais a necessidade de concursos dos projectos, mais constrangimentos.
Entras como actor em vários dos teus filmes. Além das necessidades de produção que certamente justificam esta opção, como é que te sentes neste papel?
Nunca me vi como actor. Certas histórias pensávamos a partir da realidade, de casas, de filmes que víamos, e depois, se não fizesse eu de actor, acho que não existia filme. Foi uma opção natural porque as histórias que queríamos filmar tinham a ver com a nossa vida, com os nossos filmes, com pessoas que conhecíamos, com situações que para nos faziam sentido, política ou poeticamente.
Existem algumas pessoas que surgem quase sempre nos teus filmes, à frente e atrás das câmaras, quase como uma família cinematográfica. De que forma te interessa o tema da família no cinema?
Sim, interessa-me muito. Tem a ver com os filmes que quero fazer, com aquilo que conheço. Não me interessa tanto trabalhar com actores profissionais, com uma produtora e um processo mais industrial. Não quer dizer que não o venha a fazer, mas até agora tem sido esse impulso de filmar as coisas e as pessoas que conheço. Não gosto de falar daquilo que não conheço. Há pessoas que fazem isso muito bem, o cinema de pesquisa, mas é algo que demora mais tempo. Por exemplo, no Longe os locais que vemos, como é o caso de “Os Amigos de Minho”, passei lá anos a falar, a beber, a ouvir música, a conhecer as pessoas, e é por isso que está no filme. Eu preciso de conhecer bem as coisas para filmar, de outra forma sinto-me mal. Creio que tem a ver com a minha personalidade mais introvertida.
Lembro-me do Pedro Costa uma vez dizer que foi com o Ossos (1997) que percebeu que não queria fazer grandes produções, precisamente por causa deste aspecto de intromissão abusiva numa comunidade. No teu caso, se no futuro tiveres oportunidade de filmar com outros meios, o que achas que mudaria na tua abordagem? Isto tendo em conta a tua necessidade de preservar sempre a autenticidade dos espaços e das pessoas que entram no teu cinema.
Bom, gostava muito de experimentar. Sabes que o cinema que mais gosto é o americano clássico, Hollywood, o cinema de aventuras… Mesmo este Longe, às vezes as pessoas riem-se quando eu digo isto, mas para mim é como se eu estivesse a fazer um filme do universo do Raoul Walsh, mas realizado por mim. Tem comboios, grandes caminhadas por sítios áridos, zonas de trânsito. Não consigo fazer mais por duas razões. A primeira porque trabalho com coisas mais tristes, o Walsh fazia coisas épicas, heróicas. Eu não, trabalho com pessoas que têm dificuldades, com outros dilemas. E segundo é essa questão dos meios. Se tivesse mais meios, dentro de certos limites, claro, gostava de poder ensaiar mais, repetir mais os takes, ir para outros locais. Estou a pensar fazer outro filme com o José Lopes e gostava de ter mais meios para experimentar mais coisas, por exemplo, uma construção sonora com música, algo que eu nunca fiz. Mas isto agora é um exercício de futurologia, porque interessa-me ir descobrindo coisas e espero nunca cair em fórmulas. Uma pessoa que faz filmes assim pode tornar-se perfeitamente académico e não queria isso. O única coisa que quero manter é a fidelidade às pessoas e aos locais.
Bom, uma coisa é ser um autor, outra é cair em fórmulas… Há sempre uma dimensão de repetição desejável.
Gostava sempre de ir descobrindo o cinema, uma aventura. Descobrir locais, sonhos, imagens, filmar coisas diferentes. Ir ali para o meio do trânsito, para a beira do rio, fazer coisas que façam sentido. E estando lá acabas por fazer coisas diferentes porque os locais e as pessoas são distintos e estimulam-te a novas abordagens.
No Longe tiveste o apoio da OPTEC Filmes.
Em termos de produção foi simples. Estava a tentar fazer o filme e não estava a conseguir os meios. E disse para mim mesmo, tem de ser agora. Consegui convencer a Marta e o Daniel Pereira, que trabalha noutra produtora (a Take 2000), e começámos a produzir aquilo de forma muito organizada, uma vez que é um projecto com muitos locais e alguns delicados de filmar, com trânsito, muitas pessoas. Planeámos tudo e uns tempos antes de começarmos a filmar falei com o Pedro Costa, que é meu amigo, e ele apresentou-me o Abel Ribeiro Chaves. Depois o Abel emprestou-me material dele, foi muito generoso. Foi uma questão de empatia entre nós, todo o processo. A rodagem foi pouco tempo, duas semanas, e depois fizemos na OPTEC a pós-produção. Depois da montagem, foi um processo mais delicado, sobretudo para trabalhar questões de som. Foi uma questão de amizade do Pedro e do Abel por mim e de uma relação de confiança que se estabelece.
O filme foi seleccionado depois para o Festival de Locarno.
Isso foi uma experiência um pouco estranha. Os filmes que temos estado a falar quase nunca passaram em lado nenhum a não ser na Cinemateca, talvez apenas numa mostra ou outra. Mas mais nada. Depois quando acabámos o Longe tentámos os festivais nacionais, e não tivemos sorte, ninguém nos seleccionou, nem sequer ninguém nos respondia… Até o Abel me telefonou um dia e disse-me “então já saiu a programação de Vila do Conde, e ninguém te disse nada?” Foi muito estranho…Mas eu disse-lhe que não sabia nada, não percebo como é que funcionam os festivais, a minha parte estava feita que era fazer o filme. Depois o resto ultrapassa-me. Mas depois nessa noite, lembro-me que recebi a notícia que o filme tinha sido aceite em Locarno, fora da competição. E pronto, lá fui. Mas o filme entretanto estreou antes nos Encontros do Fundão. É um evento importante, um local tão pequeno que tem conseguido levar realizadores com o Víctor Erice, o Andrea Tonacci, o Pedro Costa, o Vítor Gonçalves. Tem um ambiente familiar, maravilhoso.
Como é que vês esta relação do Pedro Costa no teu próprio cinema?
Foi na altura da escola, andava um pouco descontente com os filmes que andava a ver e descobri os filmes dele em 2007. Lembro-me que puxou muito pelas minhas convicções, as obras, mas também as suas entrevistas. Coisas que temos estado a falar: um cinema completamente dentro da realidade mas de uma invenção permanente ao nível dos planos, do som. A relação com a pintura, mas ao mesmo tempo com o real. Mas se queres que te diga, naquela altura, não percebi muito bem aquilo, sei que me tocava profundamente. E depois era aquilo que falavas, o trabalho sobre a intimidade. Ele a partir de os Ossos, inventou aquele sistema de trabalhar sem o qual não conseguiria este grau de proximidade com as pessoas que o seu cinema tem.
Uma das coisas que se fala muitas vezes na definição do cinema do Pedro Costa é esta relação com a escuridão, a penumbra, a sombra, o quarto… É curioso que eu vejo essa relação mais evidente nos teus primeiros filmes, neste Longe há mais cenas solares, de rua.
Pois, eu creio que a grande influência no Pedro no meu cinema está sobretudo numa questão de atitude perante a realidade. Como nos podemos aproximar de uma pessoa, como filmar as coordenadas do espaço e do tempo, os processos de iluminação. Como é que eu me posso aproximar do José Lopes, uma pessoa muito viva, da rua, do povo. E depois há a história: um homem que vem a Lisboa para ver a filha.
Falemos dos espaços do Longe: tens, por um lado, os espaços muito povoados, depois os espaços meio suburbanos, dos arredores, e, finalmente, os interiores, sobretudo a “Casa do Minho” com essa comunidade dentro de um espaço mais anónimo que é a cidade de Lisboa.
Sim, o tratamento dos espaço tem a ver com essa questão dos mundos dentro de mundos. E depois há aquela via sacra do José, aquele calvário em que ele tem de passar por aqueles locais muito agrestes. Locais selvagens, fustigados pelo vento e pela chuva, sobretudo numa primeira parte e depois o filme evolui para uma dimensão, para um espaço, mais silencioso, mais íntimo, mais interior. São mundos dentro de mundos que o José precisa para se proteger da dureza da realidade. Gajos como o Ford ou o Costa mostraram-me isso, que por vezes os pequenos mundos dentro dos mundos maiores podem ser vitais para nos proteger ou para nos salvar. Ou para criar aquele sentimento de comunidade, algo que vai fazendo cada vez menos sentido hoje em dia… Tem de se andar atrás disso, creio.
Sobre a personagem do José Lopes há aquela coisa do homem que vem de longe…
Sim, é verdade. O filme baseia-se também muito nos relatos da minha mãe. Eu sou de uma pequena aldeia perto de Braga e lembro-me dela me contar quando tinha 10 anos sobre uma pessoa ou outra misteriosa que de repente chegava à aldeia. E depois as pessoas olhavam-na de canto, ou pelo contrário, era muito bem recebida. E a minha mãe dizia: “olha, aquele é um retornado”, ou “este fugiu para a França há muitos anos atrás e nunca mais ninguém o viu e agora voltou”. Ou era alguém que fez asneiras no passado e teve de fugir. Quando és criança ficas impressionado com essas pessoas misteriosas que fogem: tens um mundo e depois vês alguém de quem não te consegues aproximar e há um fascínio. Se vires nos livros e no cinema há muitas personagens destas e depois se viajares ou andares por Lisboa vês também muita gente assim, com este perfil. Por isso, digo que o filme deve tudo ao José Lopes, e que se calhar nem volto a fazer filmes a não ser com ele… Mas ao mesmo tempo também a sua personagem representa milhares de pessoas que cometeram erros, que fugiram e se calhar vem daí o título do filme, porque eu sempre só consegui ver essas pessoas de longe… É uma relação de medo e de fascínio. São pessoas que têm um certo mistério, creio que é esse lado misterioso que faz as pessoas quererem fazer um filme.
Vês alguma continuidade de situações, personagens, entre os teus filmes anteriores e este último? Por exemplo, em O Atirador, o filme termina com uma partida, desfazendo uma situação de encontro, e neste Longe começas com uma chegada…
Na minha cabeça não há muita relação entre os filmes que fiz antes e este. Com este eu sabia que não podia fazer batota e não é um projecto tão cinéfilo. Por exemplo, O Atirador, dos filmes que fizemos, é aquele que tem mais a ver com o próprio cinema, com as histórias de certos filmes que nós vimos e que nos marcaram.
O Atirador tem imensas referências…
O Atirador vem de um lado mais mítico. Por exemplo, a personagem do Rui Pelejão podia, pelo menos na nossa cabeça, sair de um filme do Sam Peckinpah. Uma pessoa um bocado autodestrutiva, no fim da linha. Mas ao mesmo tempo também o Godard, e depois o Hölderlin que vem mais da influência da Sabrina e do Mário. É um filme heterogéneo, tens um road movie mas depois páras e de repente tens citações, o Straub…
No filme Times Are Changing, Not Me, o Manuel Mozos define o cinema do Peckinpah como um “resistir contra o esquecimento das pequenas coisas”. De que forma as tuas personagens e o teu cinema procuram também esse acto de resistência?
Sim, acho que procuro isso. Por exemplo, no Longe há aquele encontro com o acordeonista que é uma pessoa que eu encontrava muito quando vivia junto à zona da Estefânia em Lisboa. E um dia ganhei coragem de lhe perguntar porque estava ali sempre a tocar e ele respondeu-me que não era por nada, que simplesmente gostava de ir tocar para aquele sítio. E depois acabou no filme. Por isso, sim, acho que procuro sempre fazer esse arquivo das pequenas coisas, coisas que estão a desaparecer. Imagino que daqui a uns vinte anos seja difícil ver a mesma coisa, uma pessoa assim a tocar um acórdão, por nenhuma razão especial, só porque gosta de tocar e depois ficar ali a ouvir e falar com ele… Interessa-me no cinema mostrar estas coisas que para mim são importantes e que se vêem menos. Por exemplo, filmar em Braga pessoas em bares para que possam ser recordadas e depois daqui a vinte anos olhar para isto e se calhar as pessoas vão achar que é ficção científica. Mas também estas coisas têm a ver com coisas que eu gosto na literatura, o David Goodis, por exemplo, a série B americana que falava sempre de pessoas que viviam à margem. Por exemplo, o Edge of the City (1957) do Martin Ritt, que vi recentemente, que se pode trazer como as margens da cidade. O meu gosto pela margem não é uma coisa radical, de isolação, mas são os sítios onde eu sinto um maior pulsar da vida que mexe muito comigo, e depois uma tensão nos planos quando estou a filmar certos sítios ou personagens. Tensão que depois eu espero que passe. Por exemplo, filmei uma cena no antigo café O Estádio, no Bairro Alto. Filmei uma cena lá para o Longe, porque o José ia lá muitas vezes e fazia sentido filmar isso. Mas depois era muito difícil que as pessoas que habitam aquele espaço, os clientes habituais, pudessem, pelo menos algumas delas, aceder a que as filmasse. Algumas não reagiram nada bem. E é essa tensão que falo que emerge dos espaços que muitas vezes queremos filmar e que resistem, mesmo a uma câmara mais de observação como a minha. Às vezes tínhamos de interromper o plano e recomeçar porque alguém perguntava o que estávamos ali a fazer, mas essa presença casual das pessoas também dava uma forma, uma tensão como disse, aos planos.
Quais os cineastas que mais admiras?
Não sei se tenho um realizador favorito. Gosto de cineastas que tenham convicções, isto porque tê-las hoje é muito mais difícil. O tempo hoje é um caos, há muitas mais coisas, com a internet, o digital. Ficamos mais dispersos e eu volto a estes realizadores porque me permitem acreditar em alguma coisa, porque me ajudam a tratar um espaço, de uma pessoa como o José Lopes. E como te dizia há bocado, se eu pudesse fazia épicos à John Ford ou à Raoul Walsh e acredito que os faço à minha maneira. Quando digo que hoje estes filmes são impossíveis de acontecer é porque já não há uma transparência que existia antes, já não há valores firmes, seguros, em todos os termos. Por exemplo, ao nível arquitectónico ou musical. Antes havia uma certa transparência, uma dada construção da sociedade, uma certa ordem. Hoje é o caos, e mesmo assim dentro desse caos, dessa tristeza, destes tristes tempos políticos que estamos a passar, tento aproveitar os elementos que tenho e tentar fazer como eles faziam, à minha maneira, claro sem o mesmo talento. Não sei se o consigo fazer, mas pelo menos tenho essa ambição.
E depois há a forma como as tuas personagens vêem o passado. Por vezes, parecem surgir dicas que nos mostram como há qualquer coisa que o presente perdeu por relação a um passado… seja ele o sentido de comunidade, o embebedar-se num bar.
O passado nos meus filmes é fundamental, mas nunca é uma questão de nostalgia. É uma coisa mais complexa que eu ainda ando à procura. Mas nem sei definir bem, acho que o fazer os filmes é para mim já uma resposta qualquer a essa relação com o passado.
Vocês fizeram um documentário sobre a Manuela Serra [5 anos depois, O movimento das coisas ] e outro, de que já falámos com o Manuel Mozos [Times Are Changing, Not Me]. A ela chama-na de “princesa do cinema português” e ele definem-no como o “último cineasta romântico”. O que é que em tua opinião liga estes dois filmes ou estas duas pessoas?
São dois casos excepcionais do cinema português. A Manuela é um caso particular, uma realizadora de um só filme, uma obra com um estatuto mítico. É um grande filme, uma das grandes obras escondidas do cinema nacional. Acho que é um empreendimento monumental: uma mulher sozinha que nos anos 80 foi lá para cima, Lanheses, perto de Ponte de Lima, filmar uma coisa coral, livre. Depois ela cai no esquecimento, desiste do cinema, zanga-se com ele, com estas coisas dos financiamentos, dos concursos, das relações de poder… O Manuel Mozos esteve também muitos anos a fazer pouquíssimas coisas, agora felizmente já filma mais. E é incrível que estivesse parado, com o talento que tem… Uma pessoa vê hoje o Xavier (1991-2002) e é evidente que se trata de um dos grandes filmes do cinema português. Mesmo assim demorou muito tempo a fazer e nota-se completamente as rugas, está todo estilhaçado e mesmo assim sobrevive. É uma forma de contar histórias, de realizar, uma invenção completa. Acho que foram ambos realizadores não compreendidos, o Mozos agora já é mais. Mas se é claro que o Mozos é um grande cineasta e que a obra da Manuela é monumental, porque é que demorou tanto tempo a serem reconhecidos? Essa vontade de resistir, essa necessidade de valorizar essas pessoas é o que nos animou a fazer os filmes.
E o que é significa para ti este “times are changing but not me”?
Esta frase é do Pat Garrett & Billy the Kid (Duelo na Poeira, 1973) e resume um pouco o cinema do Mozos, esta relação de resistência. Isto apesar do Xavier, por exemplo, ser um filme completamente moderno, pois está sempre a extravasar, a inventar coisas novas, aquele travelling na Alameda, a construção coral das várias personagens que se cruzam com o Xavier, aquele rodopio. E depois a câmara e a montagem do Manuel vão sempre atrás daquilo com relações ultra complexas. Mas apesar de tudo já ninguém filma assim, ou pouca gente. “Times are changing but not me” é uma crença que se podem ainda utilizar muitas coisas do passado, de um grande cinema, que o Mozos viveu. O Mozos num texto magnifico sobre o Peckinpah fala disso, das grandes salas de cinema, que os filmes dele só se poderiam ver em salas monumentais, com ecrãs monumentais, com cadeiras todas partidas, com a película a partir no meio do filme. Um grande cinema que ele conheceu, esse ritual, essa experiência religiosa de ir ao cinema. Hoje vemos os filmes nos shoppings ou na internet, são novas maneiras. Mas ver o cinema nessas condições do passado importa para muitas coisas. Por exemplo, vês hoje um filme do Manuel ou do Pedro Costa, que viveram esta forma de fazer e ver o cinema, e reparas como as escalas de planos, os detalhes, como se filma um rosto, um corpo, tudo é diferente por causa dessa experiência que tiveram. Por outro lado, a geração de hoje já não filma dessa maneira pois sabe que a dimensão do ecrã em que vamos ver o seu filme é menor. As escalas vão diminuindo ou vão sendo mais dispersas.
Uma coisa é ver um rosto pequeno como a escala real do nosso, outra é vê-la do tamanho de uma parede.
Sim, por exemplo, no Same Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1957) do Minnelli, a primeira vez que aparece o Dean Martin a cara dele é do tamanho de um arranha-céus. A forma como o Costa filma o Ventura, ou o Ford filmava o Woody Strode no Sergeant Rutledge (O Sargento Negro, 1960).. hoje parecem-nos proporções, escalas ridículas, ridículas no sentido da sua monumentalidade. Como é que se investe tanto no acto de filmar uma pessoa? Filmar uma pessoa como se fosse um arranha-céus…
Os tempos mudam e que cinema te interessa mais hoje?
Já falámos do Mozos e do Costa. Mas gosto muito do Abel Ferrara, que tem um cinema muito diferente do meu, mas que ao mesmo tempo sinto que há ali uma preocupação com a tensão, com o real, com as emoções, com o instinto. Coisas puramente vitais, preocupações com a distância, um peso concreto de realidade. Também gosto muito do Jim Jarmusch, a forma como usa os grandes poetas americanos, por exemplo, neste último filme, ou a hip hop no Ghost Dog: The Way of the Samurai (Ghost Dog: O Método do Samurai, 1999), ou o jazz nos filmes iniciais e há ali um movimento entre o passado e o presente que me interessa.