The art of Mizoguchi is to prove that real life is at one and the same time elsewhere and yet here, in its strange and radiant beauty.
Jean-Luc Godard sobre Ugetsu monogatari,
Começa hoje aquele que será um dos acontecimentos do ano cinéfilo: a retrospectiva em cópias digitais restauradas de uma mão cheia de filmes do realizador japonês Kenji Mizoguchi pela Medeia Filmes (programação completa aqui). O À pala de Walsh terá sempre reservado um lugar especial para Mizoguchi. A ele já dedicámos três textos: críticas a Saikaku ichidai onna (A Vida de O’Haru, 1952), a Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953) e a Akasen chitai (A Rua da Vergonha, 1956). Quando não escrevemos directamente sobre Mizoguchi, ele está presente como referencial do grande cinema, de alturas a que poucos na história acederam. Preparam-se textos sobre os filmes repostos em sala e a inauguração de uma rubrica nova aqui no burgo: Recortes do Cinema. Daremos a partilhar neste número zero da rubrica o olhar da imprensa especializada sobre a obra daquela que é a figura do mês, privilegiando a descoberta de textos inéditos no online que merecem ser reabilitados e colocados à luz da contemporaneidade. Além disso, publicamos o pequeno texto que se segue, uma espécie de modesto trailer para o empreendimento maior que se avizinha. Tudo em nome da mais “estranha e radiante beleza” que o cinema algum dia conheceu.
Kenji Mizoguchi, com a obra extensa que nos deixou, entre o mudo e o sonoro, entre o pré e o pós-guerra, entre o imediato reconhecimento interno e a tardia consagração internacional, é um autor sobre o qual se escreve com o máximo dos respeitos e, no caso, perfeitamente ciente de ainda estar em processo de descoberta e compreensão (no sentido dual do verbo inglês to comprehend) do alcance do seu imenso universo estético.
Contudo, em jeito de esboço, ouso identificar dois rostos no Mizoguchi sonoro. Por um lado, temos o Mizoguchi terreno dos dramas sociais muito sensíveis à condição feminina numa sociedade em mutação, onde, nalguns retratos, as posições de poder masculinas começam a ceder à perspicácia e iniciativa da nova mulher japonesa, pós-gueixa [Naniwa erejî (Osaka Elegy, 1936), Gion-bayashi (Festa em Gion, 1953), Uwasa no onna (A Mulher de Quem Se Fala, 1954), os já citados A Vida de O’Haru e A Rua da Vergonha, entre outros]. Por outro lado, como o verso da mesma folha, existe o Mizoguchi épico das parábolas lendárias do Japão antigo [Sanshô dayû (O Intendente Sansho, 1954)] ou das histórias assombradas de amor [Contos da Lua Vaga] ou dos amores trágicos maiores que a própria História [Chikamatsu monogatari (Os Amantes Crucificados, 1954) e o menos lembrado Yôkihi (A Imperatriz Yang Kwei Fei, 1955)].
O primeiro é um Mizoguchi empenhado no progresso social do Japão; o segundo é um Mizoguchi que atravessa o Japão antigo com uma solenidade e beleza enfeitiçantes. Os dois Mizoguchis que refiro são, contudo, o mesmo Mizoguchi – e não há qualquer guerra interna que os separe, bem pelo contrário! Eles coexistem como partes indissociáveis do mesmo Homem e do mesmo Japão.
Estas duas faces do mesmo cinema são sustentadas por um corpo formal uno, virtuosamente solidificado de filme para filme. Os longuíssimos planos em continuidade, fixos ou em travellings enleantes por terra ou pelo ar (na grua), tornaram célebre a estética mizoguchiana, por contraste, por exemplo, com a rigidez ortogonal da câmara de um Ozu – no qual os campos-contracampos representam uma axiologia formal que choca, poderosamente, com a voluptuosidade e sensualismo trágicos das melhores atmosferas de Mizoguchi. (Dizer que, neste aspecto, O Intendente Sansho é um hino, como não existe nenhum, à arte cinematográfica é falar no estrondoso poder de sedução que o cineasta japonês transfere para as suas obras-primas.)
Ficou célebre o seu crónico workaholism, nomeadamente desde o documentário que outro grande cineasta japonês, Kaneto Shindô, lhe dedicou em 1974: Kenji Mizoguchi: The Life of a Film Director. Histórias como a do penico que Mizoguchi levava para o set, por forma a não perder tempo com idas à casa de banho, resumem com graça o ethos e dedicação de um realizador, o mais gracioso do mundo, o menos “engraçado” do universo, obcecado com a perfeição da sua Arte; enfim, de um cineasta verdadeiramente consumido pela incessante procura do Belo. Diz-se também que era dos realizadores mais tremendos com quem um actor podia trabalhar. Não duvido minimamente de que seria sempre exactamente isso: tremendo. O mais tremendo de todos.