É comum dizer-se que Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha é o filme mais mizoguchiano do cinema português, mas o que quer isso de facto dizer? E de que modo foi o cinema de Paulo Rocha, especialmente na sua fase pre-vanguardista do anos verdes e das vagas novas, embebido pelos ensinamentos do mestre Kenji? Tentarei consubstanciar estas interrogações mais ou menos misteriosas partindo essencialmente daquilo que foram as palavras e pensamentos do próprio Paulo Rocha – ele que era um “fala-barato” e como tal deixou e pensou muito sobre estas formas de descendência cinéfila. Para isso estendo aqui uma colecção de recortes de imprensa, de entrevistas, de textos escritos pelo realizador português a propósito de ciclos e mostras dedicadas ao cinema japonês e em particular a Mizoguchi que, de algum modo, revelam como via Rocha o cinema de Mizoguchi. Uma malha esburacada de citações que deixa entrever a musa nipónica que, depois de inspirar Rocha, lançou igualmente os seus feitiços sobre João Pedro Rodrigues e Pedro Costa. O cinema português à luz do Japão.
Segundo Paulo Rocha, antes mesmo de ir estudar cinema para Paris, no final dos anos 1950, e mesmo antes de se mudar para Lisboa, “Já vinha do Porto filo-japonês — um filme do Kinugasa, a cores, visto numa estreia”.
Em Paris conheci os movimentos poéticos que estavam na moda (…), mas também, por exemplo, a literatura chinesa e japonesa. (…) a Nouvelle Vague era muito menos importante para mim (…) do que o cinema japonês que começava, pouco a pouco, a descobrir juntamente com a arte, com a pintura e a gravura japonesa (…). Já em Paris a minha vida apontava naquela direcção, reencontrava nos japoneses um aspecto que tinha encontrado no Renoir: a interacção entre as paisagens, os corpos, as forças da Natureza.
“Paulo Rocha, a cura di Roberto Turigliatto” in Paulo Rocha, o rio do ouro, Jorge Silva Melo (ed.): 127. Depoimento gravado a 6 e 7/10/1995.
Data do seu período parisiense a primeira versão do projecto de adaptar O Romance de Genji que só muitos anos mais tarde viria a ser O Desejado (1987). Igualmente dessa altura é a primeira versão de um filme rodado no Furadouro que acabaria por desembocar em Mudar de Vida.
Já desde 1959, ou 60, eu tinha escrito um argumento que se passava na ria e nas matas do Furadouro. Chama-se A Viagem de Inverno, e foi escrito ainda em Paris, quando lá estava a estudar cinema. (…) Havia muito que ver com uma certa ideia de paisagem à Japonesa (…). Durante dez anos tinha namorado aqueles pinheiros, aquele descampado, aquela luz ao fundo, no fim da tarde. Parecia-me uma cena de um filme japonês, d’Os Amantes Crucificados [Chikamatsu monogatari (1954)], com a senhora a rolar pela serra abaixo, agarrada ao quimono do homem que a queria deixar, para se salvar da justiça. (…) A cena final vem também do Fernando [Lopes]. Ele tinha visto um filme do Mizoguchi, A Imperatriz Yang Kwei [Yôkihi (1955)]… em que, no final, o Imperador fala com o fantasma da sua amada, depois de morta, e começa às gargalhadas. Achei muito bonito, e resolvi acabar o filme assim, a rir, na cena das notas roubadas e dos tiros. (…) Só muitos anos mais tarde vi a fita da Imperatriz e, claro, o filme era diferente daquilo que eu tinha imaginado.
“‘Mudar de Vida’, 25 Anos Depois…” in Suplemento do Jornal de Ovar, 17/4/1991: 75-78.
E mais tarde Rocha explicitaria melhor a sua ligação à cena do quimono e da mulher que rola serra abaixo…
Há uma cena espantosa: a certa altura a senhora casada que é obrigada a fugir de casa para não lhe fazerem as piores coisas, e o rapazito que a ama estão no alto da serra, cansadíssimos; ela adormece, vem alguém à procura deles e ele resolve entregar-se à polícia; de repente, ela acorda e vê que ele está a ser levado pela serra abaixo, e então precipita-se para ele, agarra-se aos pés dele, e rolam ambos pela colina abaixo – e aquilo doía mesmo! Todos os orientais, mas especialmente os japoneses, têm uma relação fundamental entre corpo e o chão: o chão é donde vem a vida deles, não podem dançar em bicos dos pés porque a força, a verdade deles, vem do chão.
“Paulo Rocha fala sobre Kenji Mizoguchi” por Luís Miguel Oliveira in Lumière n.º 7. Depoimentos recolhidos em Lisboa a Maio de 2000. (Apud. Kenji Mizoguchi, Luís Miguel Oliveira (ed.), Cinemateca Portuguesa, 2000).
Mas também Os Verdes Anos (1963) acabaria tintado pelo cinema japonês (e pela cultura visual oriental, tanto pelo cinema de Mizoguchi, como pela pintura e pela gravura nipónica).
Ele pôs no seu túmulo em Quioto a palavra “min”, que é o “nada”, o “nada” budista, o vazio que é a célula geradora de todas as contradições. O Mizoguchi detestava explicações, como qualquer japonês bem educado (…) nunca lhes dizia nada do que queria [aos colaboradores], só lhes dizia que as coisas não estavam certas. (…) Depois de um período de angústia passava-se por um “nada”, mas depois a câmara dele estava no lugar certo e quando o rato saísse da toca ele ia filmar (…). Quando eu voltei de Paris e comecei a aparecer no Vavá mais ou menos a seguir a Os Verdes Anos, ou durante a rodagem, passávamos as noites em claro a falar do Mizoguchi, era um dos autores que mais vinha à conversa. Não faço a menor ideia mas se tivesse descoberto na idade própria o Ozu (que só aparece na Europa latina com 15 anos de atraso) julgo que também teria sido muito sensível àquilo. Mas como dizem que eu tenho uma coisa muito forte com a natureza, e tenho tendência para situações melodramáticas extremas, continuaria sempre a ter uma dose maior de Mizoguchi.
“Paulo Rocha fala sobre Kenji Mizoguchi” por Luís Miguel Oliveira in Lumière n.º 7. Depoimentos recolhidos em Lisboa a Maio de 2000. (Apud. Kenji Mizoguchi, Luís Miguel Oliveira (ed.), Cinemateca Portuguesa, 2000).
E claro, depois de A Pousada das Chagas (1972) e definitivamente após a sua estada de 11 anos no Japão como adido cultural da Embaixada Portuguesa — pouco depois do 25 de Abril de 1974 —, o cinema de Paulo Rocha japoniza-se.
Mizoguchi, Renoir, Dreyer e Manuel de Oliveira são os cineastas que mais me influenciaram, mas quase não há citações cinéfilas neste filme [A Ilha dos Amores (1982)]. Há alguns ecos inconscientes, destilados ao longo dos anos, do cinema clássico japonês.
“A Ilha dos Amores – O Diário das Ilhas” in Paulo Rocha, o rio do ouro, Jorge Silva Melo (ed.): 108. Depoimento gravado em 1984 por Pedro Costa.
Mas para Rocha o cinema japonês (e a cultura japonesa) é um modo de olhar e de viver. Modo esse que lhe era intrínseco, coisa inconsciente.
Devo ter uma costela [oriental]… de uma reencarnação. Por exemplo, a integração da figura humana no espaço urbano ou na natureza. O homem andar uma arribas sobre o mar ou então numa viela de Alfama… Para mim a ligação das pessoas com o sítio emociona-me muito. (…) Descobri a certa altura que os grandes mestres disso eram os chineses e os japoneses. (…) Um lado muito intenso, muito sincero – pareciam que estavam ali com ‘as tripas na mão’, aqueles amores, aqueles desesperos, aquelas delicadezas, muito directo. No caso, por exemplo, do Mizoguchi, o que me impressionava era as pessoas parecerem a água de um balde, que se deitava de uma vez só, toda fora.
“Entrevista a Paulo Rocha por Anabela Moutinho, Graça Lobo e Élio Vicente” in Paulo Rocha, o rio do ouro, Jorge Silva Melo (ed.): 141-142. (Apud. Os Bons da Fita, depoimentos inéditos de realizadores portugueses, Cineclube de Faro/Inatel, Lisboa).
E no final do anos 1970 o realizador procurava no cinema de Mizoguchi as forma mitológicas de um génio.
A morte prematura de Mizoguchi veio marcar com um doloroso ponto de interrogação os seus últimos filmes. O surpreendente crescimento interior que neles se observa tinha chamado repentinamente a atenção de todos nós para uma das maiores aventuras da arte do nosso tempo. Na última fase do pensamento de Mizoguchi sucedem-se, numa síntese pessoal seguríssima, os elementos aparentemente mais opostos. Ao lado do fantástico da Lua Vaga [Ugetsu (1953)], tempos na mesma época o minuciosíssimo realismo de Os Amantes Crucificados: o amour fou, o sacrilégio, o ritual, vivem paredes meias com prodigiosas análises históricas, o esteta saudoso do passado toma apaixonadamente posição. “Sinceridade ofuscante”, alguém escreveu então, e é essa fusão incandescente que parece dar unidade a uma trajectória vertiginosa. Como seriam a segunda e a terceira parte do Herói Sacrílego [Shin Heike monogatari (1955)]? Como reagiria o realizador à crise que destruiu as grandes companhias? Que nos diria dos febris anos 60 do seu país?
“O Herói Sacrílego ou os sacrilégios da exibição – Paulo Rocha” in Cinéfilo, n.º 9 29/11/1973: 26.
A sua estada no Japão leva-o a um mergulho quase total nos hábitos, na língua e na arte. Isto permite-lhe ser um dos poucos ocidentais a conseguir filmar com uma equipa japonesa (à japonesa) e dá-lhe uma visão do cinema japonês visto de dentro.
O grande cinema japonês parece ter sido o que se fez entre os anos vinte e poucos e os meados da guerra, e que foi em grande parte destruído pelos bombardeamentos, pelo que quase não se conhece no ocidente. (…) É um período em que o cinema japonês é quase puramente genuíno, isto é, o tipo de tratamento da imagem, a representação dos actores, a forma de contar as histórias, ainda estavam dentro da tradição nacional japonesa. (…) Depois da Guerra há uma segunda idade de ouro, que é aquela que é conhecida, que vai de Ozu a Mizoguchi e acaba um pouco em Kurosawa. E, mais recentemente, há uma época modernista com uma série de autores mais ligados à vanguarda internacional (…), de que Oshima é um dos exemplos. (…) O Japão tem de facto uma tradição visual e narrativa com uma força quase única na História, como um enorme peso, e que nesse sentido pode “oprimir”. Quer dizer: só uma personalidade extraordinariamente forte é que consegue emergir dessa poderosíssima tradição com um toque minimamente pessoal.
“Situação Actual do Cinema Japonês – excertos de uma conversa com Paulo Rocha”. Gravação efectuada em Março de 1984. Excertos da responsabilidade da Cinemateca Portuguesa.
Claro que essa revisão do universo mizoguchiano não se fez sem desapontamento. Mais ainda quando a nova geração de cineastas japoneses lhe parecia renegar os seus mestres (mais tarde daria a mão à palmatória e acabaria por reverenciar, com alguma contenção, o cinema de Shohei Imamura).
[Mizoguchi] deixa ao mesmo tempo, uma longa e extensa obra de difícil acesso, com devotos fieis, mas sem nenhum discípulo e nenhum exegeta. (…) Visto de França, ou de Lisboa, nos princípios dos anos 60, era fácil estabelecer uma imagem coerente da sua obra, e apontar as razões da sua grandeza. Tínhamos por um lado “as seduções e os mistérios” da arte do extremo-oriente, por outro os paralelos constantes com os grandes temas clássicos europeus. Sob o manto do exotismo e do esoterismo, encontrávamos um corpo generoso e familiar. Shakespeare, Bocaccio e a Nau Catrineta. Mais ainda, os quimonos de seda e os nevoeiros feudais deixavam entrever preocupações moderníssimas e tão próximas de nós: o marxismo e a história, o amour fou, a condição da mulher, a pressão… Logo a seguir, havia a forma, em que o plano sequência e a durée pareciam apontar o caminho do cinema moderno. (…) Quanto mais perto estamos do ambiente humano e cultural em que Mizoguchi viveu e trabalhou, tanto mais é difícil reencontrar a imagem ideal, europeia e simplificada dos nosso fervorosos verdes anos. O que se encontra em seu lugar é uma espécie nova de “vazio”, o homem diluído no meio de uma teia vertiginosa de memórias colectivas, de ecos culturais e políticos, japoneses e estrangeiros, de ideias em luta, tudo isto acordo no mais remoto passado da Ásia, e caminhando apressado para um futuro frenético que invade já as ruas.
“Introdução” por Paulo Rocha in Ciclo Mizoguchi – organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian com a colaboração da Cinemateca Francesa, Nov-Dez, 1976.
E só a compreensão da cultura permitiu o reencontro. O seu olhar de estrangeiro-integrado permitiu-lhe ver além do exótico e encontrar a genialidade na minúcia das coisas pequenas.
Quando cheguei a primeira vez ao Japão e à Formosa, quase tudo o que eu gostava, os Mizoguchis, etc., eram versões de uma espécie de literatura de cordel genial, que era quase tão elevada como os chamados grandes clássicos. Os Zés do Telhado chineses são magistralmente escritos, saídos dos arquétipos mais profundos, são grande literatura onde há traição, o perdão, a vingança… Apesar de eu ter alguns defeitos e alguns lados à lá Proust, de menino delicadinho, julgo que naquela altura essas “descobertas” não eram uma forma de “remorso”. É uma questão de geração, (…) [antigamente] não havia contradição entre o erudito e aquilo que fazia vibrar o homem comum.
“Paulo Rocha sobre o cinema popular” in Paulo Rocha, o rio do ouro, Jorge Silva Melo (ed.): 37. Depoimento gravado no Hotel Impala a 28/8/1996.
Mais tarde, o cineasta-exegeta acaba até por deixar descendência e Rocha identifica-a rapidamente em Akuryo-To (Island of the Evil Spirits, 1981) de Masahiro Shinoda.
De algum modo, Shinoda estará para Mizoguchi como Truffaut está para Renoir. É um pouco o discípulo, mantém com qualidade certa temática do mestre, embora sem a largueza dela. É sobretudo a preocupação do plano de conjunto, o grande rigor da imagem, a vida dura da mulher na sociedade japonesa, um certo gosto por situações extremas.
“Situação Actual do Cinema Japonês – excertos de uma conversa com Paulo Rocha”. Gravação efectuada em Março de 1984. Excertos da responsabilidade da Cinemateca Portuguesa.
Mas Rocha, um artista da dúvida irresolúvel e da hesitação metódica, nunca deixou a sua posição de auto-intitulado pupilo. Ainda que muito da sua obra viaje livremente pela experimentação vanguardista. Muito longe do trabalho do bom aluno copista.
Continuo a ver e a rever os filmes do Kenji Mizoguchi e ainda passo a vida a encontrar coisas que me chocam e com as quais fico chocado: como é que ele conseguiu fazer tudo aquilo? E como é que eu, que também fui influenciado por ele, afinal não consegui?…
“Prefácio” in Kenji Mizoguchi de Noël Simsolo, Collection Grands Cinéastes 21, Cahiers du Cinema/Público, 2007.