Num comentário recente no jornal Público, o adido de imprensa da embaixada da Rússia em Portugal acusava a embaixadora da Ucrânia de, num artigo de opinião, ter omitido que a existência do país enquanto Estado se devia ao regime soviético, que o unificou, pedaço a pedaço, na República Soviética Socialista Ucraniana. A representação diplomática ucraniana desmentiu esta versão, contrapondo outras evidências históricas e indo ao encontro de observadores internacionais que vêm a interferência da Rússia, como a materialização do sonho de Vladimir Putin em reconstruir territorialmente a antiga União Soviética. Mais, relembra o regime totalitário a que o Kremlin submeteu a Ucrânia através de uma política de terror, que se caracterizou pela violação maciça dos direitos humanos, incluindo deportações, torturas, perseguições, assassínios e outras formas físicas e psicológicas. Com a queda do Bloco de Leste, a Ucrânia resgatou a soberania sobre o seu território mas seguiram-se os acontecimentos que desembocaram no actual clima de guerra civil: as manifestações dos nacionalistas e dos defensores da integração europeia na Praça da Independência, em Kiev; a deposição do presidente pró-russo Viktor Yanukovych; e, finalmente, por parte da Rússia, a invasão da Crimeia e a colocação de contingentes militares junto dos separatistas do leste da Ucrânia.
Este pequeno inventário de acontecimentos relativos à recente história política da Ucrânia vem a propósito da estreia de Plemya (A Tribo, 2014), a primeira longa-metragem do realizador ucraniano Myroslav Slaboshpytskyi, que constrói uma narrativa em que a sua experiência pessoal se cruza subtilmente com a memória colectiva ucraniana. Slaboshpytskyi cresceu num bairro das imediações de Kiev, com o nome de Stalinka, em homenagem a Josef Stalin, e foi aí que rodou Plemya, durante o mesmo período em que Sergey Loznitsa, na Praça da Independência, acompanhava as movimentações populares contra a política pró-russa de Viktor Yanukovych para o excelente documentário Maiden (A Praça, 2014). Como se o percurso da câmara de Chantal Akerman pelos “espectros de Marx”, em D’Est (1993), não tivesse terminado em Moscovo, mas sim em Kiev, décadas depois, fixando-se num impulso nacionalista que, perigosamente, acumula “ruínas sobre ruínas” e as lança sobre os “olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas” do “anjo da história”.
A singularidade de Plemya consiste em que todas as personagens comunicam através de língua gestual, sem o recurso a tradução, legendas ou voz-off, que possam orientar a maioria dos espectadores.
A acção de Plemya é centrada num espaço definido, um internato para surdos-mudos, mas a localização temporal não é evidenciada, podendo corresponder a qualquer um dos momentos acima referidos. No primeiro plano do filme, o espectador e o fundo da cena – onde um novo estudante, representado pelo actor Grigoriy Fesenko, procura pistas sobre a localização do internato, comunicando com pessoas que aguardam a passagem de um autocarro – são separados por uma estrada movimentada. O ruído constante dos automóveis apaga qualquer traço verbal que exista do outro lado da estrada. No plano-sequência que se segue, a câmara acompanha Grigoriy Fesenko que se aproxima do internato, sendo repetido o mesmo dispositivo, desta vez usando uma superfície de vidro. Enquanto o estudante contorna o internato até à porta principal, ficamos nas traseiras, atrás da vidraça, a uma distância que nos permite observar o que parece ser uma cerimónia, a acontecer do lado contrário, no exterior do edifício, mas não discernir claramente o que se passa. Quando o corpo docente e os alunos entram dentro do edifício, ainda posicionados atrás da vidraça, pela linguagem corporal percebemos que se trata de uma escola para surdos-mudos.
Opções formais à parte, não estamos longe do universo de Kids (Miúdos, 1995), da obra fotográfica e cinematográfica do seu realizador Larry Clark e dos filmes vindouros dos seus produtor e argumentista, Gus Van Sant e Harmony Korine, respectivamente. A singularidade de Plemya consiste em que todas as personagens comunicam através de língua gestual, sem o recurso a tradução, legendas ou voz-off, que possam orientar a maioria dos espectadores. Num conjunto de longos planos-sequência, sem pinga de paternalismo, Grigoriy Fesenko é introduzido na organização do internato e na sua violenta economia de sobrevivência, transversal à idade e hierarquia, abrangendo um esquema continuo de pequenos roubos e prostituição. Este domínio é expandido para além dos limites do internato e exercido segundo rituais tribais, indiferentes a cauções morais.
São personagens aparentemente amorais, marginalizadas pelo jogo social, e que, por isso, criam o seu próprio sistema de regras – a sua única verdade. A existência deste pequeno mundo é uma vitória contra o cinismo civilizacional, sublinhando cada acção violenta como inerente à existência do sistema e como resposta plausível forjada pela impotência individual. É a nossa falsidade e fingimento que reconhecemos na cena em que uma das personagens é estupidamente atropelada por um camião, por não puder ouvir o obrigatório alarme sonoro de uma máquina pesada, em marcha atrás. A câmara mantém a devida distância, como em todas as outras cenas. Não nos é pedida compaixão, sendo o lugar do rapaz na pequena economia prontamente preenchido por Grigoriy Fesenko, na execução das suas tarefas.
Plemya tem a qualidade intemporal que mantém actualidade enquanto metáfora das tensões da sociedade ucraniana, tragicamente em busca de um estilhaçado projecto europeu.
A utilização do plano-sequência e a eliminação do corte, apontam para uma fluidez temporal que casa bem com o dispositivo documental. Mas não nos iludamos, pois estamos perante uma realidade que é claramente resultado de uma construção. A eliminação da língua verbal apenas resiste enquanto consignados a este espaço-cápsula. Abrangendo o resto do corpo, os seus movimentos e expressões faciais, a língua gestual não reside apenas nos sinais desenhados com as mãos. Assim, o olhar do espectador percorre a ênfase corporal dos actores, em que a subtileza da representação cede a favor de uma expressão marcada, para melhor ser captada visualmente. Fora deste mundo, aguarda-nos um mundo em constante agressão, como é acentuado na referida cena de atropelamento ou, ainda mais violentamente, durante a interrupção da gravidez de Yana Novikova, por quem se apaixona Grigoriy Fesenko, parecendo incapaz de exprimir inteiramente, através do grito, a dor a que é submetida.
Apesar de encontrarmos algumas experiências semelhantes às produzidas pelo cinema mudo, no final somos lembrados que não é desse formato que se trata, pois continuamos a ouvir os passos de Grigoriy Fesenko a descer as escadas, com a imagem a preto. No, entanto, o filme remete-nos para algumas considerações de André Bazin a propósito da “arte muda” e da passagem para o cinema sonoro. O critico francês nota que, em 1929, se explicaria, e até se justificaria, o desespero daqueles que se manifestavam contra o desmantelamento da “perfeita cidade da imagem” representada pela “arte muda”, pois “na via estética em que se encontrava, parecia-lhes que o cinema se tornara uma arte supremamente adaptada ao constrangimento delicado do silêncio e que portanto o realismo sonoro só poderia cair no caos.” Sugere ainda, se não estaria na altura de questionar se, a revolução técnica da introdução do som, corresponderia a uma revolução estética. É o jogo imperfeito de “cidade da imagem” e de “constrangimento do silêncio” que mais nos agrada em Plemya, uma qualidade intemporal que mantém actualidade enquanto metáfora das tensões da sociedade ucraniana, tragicamente em busca de um estilhaçado projecto europeu.