A carreira do russo Andrey Konchalovskiy é um caso de estudo, exemplo máximo da acção do improvável. De Andrei Tarkovsky (que foi seu colega na VGIK e com o qual colaborou e co-escreveu os seus três primeiros filmes) a Sylvester Stallone e Kurt Russell em Tango & Cash (1989), a obra do cineasta (irmão de Nikita Mikhalkov) é possivelmente uma das mais invulgares na história do cinema. Membro de uma nova geração de cineastas russos que começou a fazer cinema nos anos 1960, o realizador vira-se para Hollywood nos anos 1980 e lá realiza alguns os mais marcantes filmes de acção da década, regressando depois à Rússia e ressurgindo no anos 2000 como grande cineasta-autor. Venceu, no festival de Veneza, o Grande Prémio do Júri com Dom durakov (Casa de Loucos, 2002) — o último filme seu a estrear em Portugal — e duas vezes o Leão de Prata pela Melhor Realização com Belye nochi pochtalona Alekseya Tryapitsyna (Postman’s White Nights, 2014) e este Rai (Paraíso, 2016).
O meu colega Luís Mendonça, na sua crónica Civic TV, percorreu com bastante pormenor a carreira do realizador, e encontrou nalguns dos seus filmes um motivo comum que funciona como chave para compreender, pelo menos em parte, o seu olhar: a comunidade e o (seu) isolamento. Mas defronte de Rai é difícil integrá-lo nessa leitura. O mais recente filme de Konchalovskiy é um filme que vive, acima de tudo, montado num dispositivo formal cinéfilo. Parece-me, por isso, que outra chave para compreender a visão do realizador passa por ver cada filme seu, como a expressão do seu gosto pela matéria dos filmes (isto é, o próprio meio) e pelas suas potencialidades estéticas. Estou em crer que o que leva a obra de Konchalovskiy a tomar tantas e tão diversas formas (a “intrumentalizar-se” até, quando é necessário, às meta-personas fílmicas de Stallone e Russell, como refere o Luís) prende-se com o facto de para o russo o cinema, como expressão, não dever desprezar todos os estilos, géneros, meios de produção, formatos, suportes e tudo mais.
A explosão de estilos e suportes materializa a sua convicção, que me parece ser fundacional na sua obra, de que no cinema todas as formas são igualmente válidas.
Por isto, em Rai, o trabalho extraordinário do director de fotografia Aleksandr Simonov faz conviver tanto os 35 mm, como o 16 mm e até o Super8 — sempre em preto e branco, e tudo vertido em digital para a exibição comercial. E também por isto, Konchalovskiy faz conviver as talkings heads dos documentários convencionais com a reconstituição de época altamente coreografadas e pormenorizadas, mas também com o falso found footage, com os rolos de filmes caseiros e com certos enquadramentos que remetem para modernas câmaras de vigilância. Esta explosão de estilos e suportes materializa essa sua convicção, que me parece ser fundacional na sua obra, de que no cinema todas as formas são igualmente válidas. E fá-lo numa estranha ode ao cinema dos anos 1940 (do período da guerra, que é o centro narrativo do filme) que mima no formato (4:3) mas também em certas opções algo estetizantes (como o facto de certas personagens serem dobradas — como eram no cinema clássico — sem se preocupar com a ligeira dessincronia que isso introduz). Mas essa ode é simultaneamente de um frieza rochosa e de um experimentalismo antigo (os falsos raccords e os saltos da película), vindo das ditas novas vagas cinematográficas.
Se o presidente do júri, Sam Mendes, terá ficado impressionado pelo arcaboiço formal da empresa de Konchalovskiy, certamente que a dureza do retrato do Holocausto terá igualmente deixado marca (os horrores nazis, o desempenho de Yuliya Vysotskaya – mulher do realizador e sua actriz recorrente –, a descrição da vida nos campos — onde um maço de cigarro vale uma vida —, a demência da ideologia da perfeição ariana e a falência dos princípios dos colaboracionistas) . Não querendo entrar no afamado debate entre os modos de olhar e dar imagem ao horror dos campos (deixo isso para Didi-Huberman e Claude Lanzmann) nem pretendendo comparar Rai coma desconstrução da homogeneização turística dos lugares do passado feita por Sergei Loznitsa em Austerlitz (2016). Descubro no filme de Andrey Konchalovskiy uma flutuação de tom com a qual é difícil de lidar (dado o tema). A certa altura há uma personagem que explica como se apaixonou pelo seu marido quando o encontrou patético (num jogo de cabra cega), o próprio filme vive apaixonado por uma beleza sempre na vertigem do patético e do drama sempre à beira da paródia — não estivessem os diálogos, as situações e o próprio ritmo e estrutura narrativa embebidos por uma ironia muito seca.
Esta liberdade de, num filme sobre o Holocausto, deixar-se levar ao limite de um riso nervoso revela uma coragem rara, que tem como consequência os dois minutos finais onde (quase) se invalidam as duas horas anteriores. Mas lá está, só um cineasta que acredita na equivalência de todas as formas de expressão com imagens em movimento pode deixar-se levar por elas e nelas se deixar embrulhar.