Atravessada a muralha de autocarros do terminal rodoviário do Campo Grande vemos o Estádio José Alvalade, o sétimo do Sporting Clube de Portugal, inaugurado em Agosto de 2003. Sob as bancadas viradas para o terminal e a estação de metro ergue-se o centro comercial Alvaláxia, um dos primeiros, em Portugal, a abrigar-se na proximidade de um estádio de futebol. No último piso do centro encontram-se os cinemas, explorados desde 2007 pela NOS Lusomundo, mas inaugurados ainda em 2003 como parte da cadeia Cinemas Millenium de Paulo Branco. As salas distribuem-se a partir das bilheteiras em dois corredores opostos que acompanham ligeiramente a curvatura do estádio. Para a direita estão as salas ímpares, para a esquerda as pares; as maiores no início dos corredores, as mais pequenas ao fundo. Os grupos de adolescentes e as famílias, ao fim de semana, recordam-nos que este multiplex funciona um pouco como o cinema de bairro de Telheiras, mesmo ali ao lado. Foi aqui que se inaugurou a projecção digital em Portugal e que teve lugar uma das muitas batalhas de que se faz a história da exibição de cinema.
Em 2003, Paulo Branco contava só, em Lisboa, com as 11 salas dos cinemas King, Monumental e Residence (a que se juntavam outras no resto do país). A abertura de mais 16 salas (3000 lugares, 8000m2) fazia parte de uma estratégia de crescimento rápido destinada a desafiar a posição dominante da Lusomundo na exibição e que teria continuidade logo no ano seguinte com a abertura de mais 21 ecrãs, no Outlet Freeport, em Alcochete, na altura o maior multiplex português. Mas o total ficava muito longe, mesmo assim, das 150 salas que a Lusomundo então detinha em todo o país. A inauguração dos cinemas Millenium Alvaxália foi um grande acontecimento mediático que contou com a presença de Catherine Deneuve e a notícia da instalação do primeiro projector de cinema digital (na sala 4). Era um Barco D-Cine Premiere DP50, de alta definição, mas ainda abaixo do standard 2K, e teve um uso intermitente até Janeiro de 2005, data em que estreou Saraband (Ingmar Bergman, 2003) – foi aliás, a única sala da península ibérica onde o realizador autorizou a projecção do seu filme. Em Maio do mesmo ano estrearia Star Wars Episode III: The Revenge of the Sith (George Lucas, 2005), já num novo projector Barco D-Cine Premiere DP100, o primeiro 2K instalado no país. Os cinemas Millenium não resistiriam, porém, à concorrência da Lusomundo e começaram a fechar portas: as salas do Freeport (e as do Feira Nova, em Santarém) encerraram no final de 2005 e as do Alvaláxia resistiriam apenas mais dois anos, até 2007, quando passaram a ser exploradas pela Zon Lusomundo.
José Carlos Simões, 50 anos, é o gerente de serviço neste turno e recebe-nos junto às bilheteiras. Está no Alvaláxia desde 2007, na Lusomundo desde 1998. Trabalhou em vários multiplexes da zona de Lisboa, sempre na área da concessão. Ainda se lembra dos projectores Victoria 5 que equipavam as cabines e das equipas de 10 projeccionistas que ali trabalhavam. Hoje, a maior parte da equipa divide-se entre as bilheteiras e o bar. José Carlos faz parte da equipa de gerência, constituída por cinco pessoas. Conversamos enquanto atravessamos o bar a caminho das escadas que dão acesso à cabine. Entramos numa sala da qual partem dois longos corredores em direcções opostas, paralelos aos que, por baixo de nós, levam os espectadores a cada sala. Ao longo dos corredores, separados por portas, abrem-se as cabines com os projectores digitais Barco que foram substituindo os velhos Victoria 5 durante os dois primeiros anos de exploração da Lusomundo. As cabines-corredor são especialmente amplas e têm um pé-direito alto. Esta área do centro comercial, afinal, foi desenhada especificamente para este fim. As paredes dividem-se entre o cimento exposto e o revestimento de contraplacados pintados de cinzento-escuro, a contrastar tanto com o piso autonivelante creme e o cinzento brilhante das tubagens e das calhas técnicas junto aos tectos. A meio das cabines ímpares encontra-se uma régie de controlo remoto com 24 monitores de vídeo, um apontado ao ecrã e o outro ao próprio projector, muitos deles ainda a funcionar. No espaço equivalente do corredor das cabines pares está a antiga sala de montagem de cópias, ainda com várias ferramentas do trabalho da película de 35mm. À saída desta sala, várias bobines descansam, vazias, penduradas nas paredes.
Umas portas adiante, entramos na cabine da sala 4, equipada com sistema de som Atmos e um Barco DP2K-20C, o terceiro projector digital aqui instalado. Ao seu lado resta o último Victoria 5 do Alvaláxia e o respectivo sistema de pratos horizontais. A sua longevidade justificou-se, até há poucos anos atrás, com a necessidade de poder continuar a fazer visionamentos de imprensa e para a IGAC, explica José Carlos. Nada o recorda, mas foi aqui que começou a história da projecção digital em Portugal.
É tempo de dar por fim a visita ao Alvaláxia, último dos quatro cinemas NOS que visitámos em Lisboa. Quatro cinemas, 33 ecrãs, pequeníssima parte dos mais de 200 que esta empresa tem por todo o país. De regresso à rua, no topo da grande escadaria que dá acesso ao centro comercial e às bilheteiras do estádio, vê-se a estação de metro do Campo Grande e, atrás dela, o edifício onde fica, nem de propósito, a sede da NOS.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Luís Mota, Ana Domingues, José Carlos Simões, António M. Costa