A confecção desta Sopa de Planos partiu de um desafio lançado aos walshianos: escrever sobre um plano que signifique liberdade. O desafio passou então por deixar aberto um conceito que é exactamente isso: um campo sem limites para se ser o que se quiser. Ao mesmo tempo, colocava-se a questão: fugindo às imagens dos cravos, do povo e dos militares, como é que um plano de cinema traduz em imagens aquela que é a maior conquista da democracia?

Himatsuri (Fire Festival, 1985) de Mitsuo Yanagimachi
Não nos escapamos da equivocidade das palavras. Liberdade pode ser para cada um aquilo que melhor lhe convir: ser aquilo que se é ou ser no modo de não ser; valor inalienável de um Estado de Direito segundo o qual tanto nos exprimimos sem pensarmos nos pés que pisamos como silenciamos quem julgamos não os respeitar; condição de jamais se estar limitado ou o poder de decisão que resta depois de aceites todos os constragimentos. Liberdade é essa palavra travessa, a amante idealizada de quem dorme com ela e a usa como último reduto numa argumentação. Portanto, na vida como na linguagem, algo é mais impressionante quanto mais dançar com os seus contrários, quanto mais nos trocar as voltas. A este desejo pela síntese corresponde o pasmo deste plano de Himatsuri (Fire Festival, 1985). O acto a ele associado costuma ser defendido como a prova máxima, justamente, da liberdade no ser humano, isto é, a capacidade de atentar contra a própria vida, subvertendo, assim, a relação de forças entre a lógica da espécie (que nos determina a viver e a nos multiplicar) e a lógica do espécime (orientada por uma vontade que, no limite, se pode anular a ela mesma).
No entanto, o filme de Mitsuo Yanagimachi não nos poupa em ambiguidades. Terá Tatsuo disparado sobre os seus filhos, banhando-se no seu sangue e se suicidado de forma tão despojada para fazer um statement extremista contra a degenerescência das tradições da sua aldeia? Teria sido possuído incompreensivelmente pelos espíritos animistas, tão específicos das crenças xintoístas, que visitava solitariamente, mesmo que o espectador nunca os tenha visto? Estava auto-determinado a fazê-lo ou foi forçado a tal? Quem poderia prever semelhante desfecho? Uma coisa é certa: se, para mim, há experiência da liberdade, ela cumpre-se nesta cena tristemente macabra, pois é a partir de uma acção deste tipo que descobrimos a fronteira da linguagem, a sua incapacidade de descrever as profundezas humanas; é através da gratuitidade imprevisível dos disparos deste homem feito autómato absurdo que descobrimos o horror de um personagem totalmente out-of-character, afinal, sem motivo inteligível para levar a cabo tamanha monstruosidade. Mas, e a liberdade? A liberdade é a palavra que usamos quando todas as outras nos faltam. Ela, assim com esta cena lúgubre ou o conceito de Deus, é mais forte quanto mais ambígua for a sua fundamentação.
Miguel Patrício

This Land Is Mine (Esta Terra é Minha, 1943) de Jean Renoir
“Goodbye citizens.” São as últimas palavras do professor Albert Lory para os seus alunos, antes de sair da sala de aula escoltado por três oficiais nazis, em This Land Is Mine (Esta Terra é Minha, 1943), filme sobre a França ocupada, e um dos mais incompreendidos – pelos próprios franceses – da fase americana de Jean Renoir. São as últimas palavras de um glorioso Charles Laughton, depois de ter advertido esses alunos, um a um, sobre os seus direitos civis, lendo em voz alta, para registo de memória (pois o livro seria queimado), os artigos da Declaração dos Direitos do Homem. Já o beijo incendiário de Maureen O’Hara que vemos no plano que escolhi é o derradeiro gesto lírico dessa partida, em vívido contraste com a figura autoritária do oficial ao lado. Aqui está a definitiva prova da coragem de um homem fisicamente cobarde, tal como tinha admitido em tribunal, no famoso discurso dos “weak inside but strong outside”, referindo-se ao colaboracionista George Lambert (George Sanders). Ele, por sua vez, era “strong inside but weak outside”. Contudo, nesta cena, Lory/Laughton revela-se um homem em pleno equilíbrio, de corpo e alma temerários. A sua postura ousada é um dos mais belos gritos de liberdade do cinema em tempo de guerra. Recordo-a neste dia 25 de Abril, porque em tal desfecho de This Land Is Mine é possível sentir a pulsação do desafio da autoridade. 25 de Abril, dia também em que George Sanders – cuja personagem, Lambert, se suicida – pôs fim à vida, quase 30 anos depois do filme.
Inês N. Lourenço

Rebecca (1940) de Alfred Hitchcock
Quando a conversa entre o casal (Fontaine e Olivier) se faz por temas conhecidos de ambos os plano enquadram sempre os dois em simultâneo no mesmo rectângulo, frente a frente, ela de pé e ele sentado, ela no colo dele… Só quando a confissão começa e Maxim revela que foi ele quem colocou o corpo de Rebecca no barco afundado a conversa passa a dar-se em campos e contra-campos das faces dos dois – como se a partir daí já não pudessem estar as duas faces juntas no mesmo quadro. A separação, o súbito envelhecimento dela e a primeira vez em que ele se mostra vulnerável fazem-se por uma separação do casal também na, e através da, realização: will you look into my eyes and tell me that you love me now… Ela não sabe o que responder, levanta-se e aproxima-se da porta que a levará para longe da desgraça e do sofrimento, ele miserabilista massacra-se, ela pára, a câmara começa um travelling atrás como já fizera quando ela ficara sozinha no quarto depois de aceitar o pedido de casamento, ou na primeira revelação com Frank da contabilidade ou na biblioteca entre os braços de Olivier. Mas em todos esses momentos a câmara recuava-se e enquadrava a mulher (ou o casal) do topo da cabeça à ponta dos saltos, isolando-a, colocando-a em confronto com um espaço e com uma circunstância em que tudo trabalha conta ela.
Aqui, como dizia, a câmara recua sim, mas Ela (Fontaine não tem primeiro nome, só apelido de casamento), pela primeira vez, não fica estática, ela avança para a câmara, e para Maxim que está no fora de campo atrás de nós. Ela não se deixa encolher face à pompa hitchcockiana, não se deixa enquadrar na solidão, avança e pela primeira vez mostra força para com tudo e todos: uma força que não é só narrativa mas que é também extra-fílmica. Nesse momento ela salta do ecrã para lá dos quadros e dos movimentos de câmara, para lá dos plot points e para lá de toda a parafernália de ver e dar a ver o cinema, ela avança e tudo fica para trás. E já lá vai… No it’s not to late, I love you more than any thing in the world. E depois aquela reacção, como é capaz um rosto conter surpresa, terror, alegria, o riso e o nojo, tudo ali condensado num travelling à frente? Isto tudo num só plano, tudo em sequência, mise en scène da ligação e do afastamento e de novo da ligação e de novo do afastamento. Para que depois tudo volte ao lugar de partida, mas mais forte… Esta é, para mim, a expressão da liberdade do, e pelo, cinema. A liberdade que se encontra na romântica ruína reconstruída das relações.
Ricardo Vieira Lisboa

Le Trou (O Buraco, 1960) de Jacques Becker
A liberdade? Ela só existe verdadeiramente como vertigem, como promessa (e)ternamente por cumprir. É isso que esta sequência de Le Trou (O Buraco, 1960) me diz. Os prisioneiros olham a rua pela primeira vez, mas a evasão, essa, fica marcada para o dia seguinte. No adiamento está o ponto mais alto da excitação. Diz-se que a chama do fósforo é mais intensa imediatamente antes de se apagar. A liberdade que aqui se promete, ou que se adia – até quando? Será mesmo só até amanhã? -, é a mais intensa que o cinema me deu a sentir. O que a mim faz este filme de pedra, que é pedra e que tanto procura “furar a pedra” de que é feito, é sentir como coisa concreta a doce liberdade que nele se sonha. No momento em que estas duas cabeças espreitam a rua para respirarem o ar matinal pela primeira vez em muito, muito tempo, eu sinto a liberdade como se fosse uma substância. Qualquer coisa que se ingere. É um shot de vida que culmina um filme cavernoso sobre uma metódica procura da liberdade. A liberdade dá trabalho, é dedicação, compromisso, colaboração, uma ascese da alma para quem está há tanto tempo engaiolado que deveio, em si mesmo, gaiola. Estes homens trabalharam tanto com a pedra que vivem e respiram a prisão. Por isso, a aragem da rua deixa-os assim: por fora – a câmara não pode filmar outra coisa -, nos seus rostos, apenas vemos espanto temperado com aturdimento. Um sorriso ligeiro desenha-se nos rostos cansados, mas como vão por dentro? Por dentro – fazemos fé nisso – estão como nós, espectadores: numa euforia contida sem paralelo, simultaneamente tímida e fervilhante. A liberdade é sentida, como uma mão que acaricia o rosto, como líquido que se ingere de um só trago. Sentir a liberdade como uma vertigem, como um arrepio difícil de verbalizar – a proposta da câmara de Becker parece-me passar por aqui.
Luís Mendonça
Sem Comentários