Tiago Baptista, antes de qualquer outra coisa, é um amigo. Colabora com o À pala de Walsh com a sua deliciosa crónica Retratos de Projecção dedicada a visitar as várias salas de projecção de cinema que existem na cidade de Lisboa, tendo sido também um dos convidados da segunda série dos Filmes Fetiche (Editing issues) e da LisbonTalk “A Internet como forma-cinema“. Mas o Tiago Baptista é, naturalmente, mais conhecido pelo seu trabalho como académico (é professor na Universidade Católica Portuguesa e fundador da Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento — AIM) e como conservador no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento — ANIM do qual se tornou, há duas semanas, o novo director. É portanto o actual responsável pela conservação, preservação e restauro de todo o património cinematográfico português.
A história do cinema português (em particular o cinema mudo) é um tema que lhe é particularmente caro — uma das suas obras, publicada pela Tinta da China, é A Invenção do Cinema Português. Foi um dos responsáveis pelos ciclos que a Cinemateca organizou em 2003 e 2004 dedicados aos “franceses tipicamente portugueses” (Lion, Mariaud e Pallu) e a Rino Lupo, do qual escreveu igualmente a biografia. A sua tese de mestrado versa exactamente sobre o cinema desse período. Por tudo isto, é a pessoa ideal para falar sobre a nova edição em DVD da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, dedicada ao cinema mudo português: Mulheres da Beira (1922) e Os Lobos (1923), ambos de Rino Lupo.
O lançamento do DVD é já amanhã (dia 12 de Abril) pelas 19h00 na Cinemateca, com a projecção em película do segundo filme, acompanhado ao piano por Nicholas McNair segundo a partitura original recém descoberta de António Tomás de Lima. Esta entrevista percorre então um século de cinema nacional, do mudo ao digital, na qual se fala dos princípios do restauro cinematográfico, desse italiano “maior que a vida” chamado Rino Lupo, dos mecanismos da escrita da história, e de tudo aquilo que o pioneirismo da ficção muda deixou como lastro no cinema português (o do Estado Novo, mas também o contemporâneo).
Do ano passado até agora a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema já editou três linhas de edição, ou melhor, três edições em nome próprio: o Jornal Português, os filmes etnográficos de Margot Dias e agora estes dois filmes do Rino Lupo. Mas antes já tinha havido edições feitas em parceria, ora com a Midas Filmes (os filmes do Paulo Rocha), ora com a então ZON Lusomundo. O que justificou esta mudança de estratégia?
No caso da ZON Lusomundo não se tratava exactamente de uma co-edição, era mais uma cooperação que resultava da cedência de cópias. É verdade que as co-edições são importantes, e aconteceram com a Midas Filmes, mas também na edição Margot Dias: Filmes Etnográficos (1958-1961), que é uma co-edição com o Museu de Etnografia. E naturalmente as co-edições continuarão a existir sempre que se justificar, em parceria com distribuidoras, produtores e outros detentores de direitos.
Pergunto isto, porque algo que caracterizou as edições da ZON, era o facto de estas serem muito ricas em extras. Por exemplo, o Pátio das Cantigas (1942) traz a série do Zé Analfabeto, ou o Aniki Bóbó (1942) vem acompanhado das três diferentes versões do Douro, Faina Fluvial (1931) e de uma explicação do [então director do ANIM e agora director da Cinemateca], José Manuel Costa, sobre as diferenças entre cada uma. Entre muitas outras coisas do arquivo da Cinemateca e da RTP. Há vontade de a Cinemateca fazer edições em DVD muito ricas neste sentido, naquilo que está para lá da simples edição do restauro do filme?
A intenção de trabalhar este conjunto de filmes tem que ver com a oportunidade de difundir filmes que são menos conhecidos e menos apetecíceis para uma editora comercial.
Sim. Contudo essa distribuidora tinha uma capacidade económica que a Cinemateca não tem. Seja como for a intenção de trabalhar este conjunto de filmes tem que ver com a oportunidade de difundir filmes que são menos conhecidos e menos apetecíveis para uma editora comercial. Filmes das margens da história do cinema, do início dessa mesma história, e que por isso dificilmente seriam editados. Além de serem filmes marginais na história do cinema, são também um tipo de obras que necessitam uma contextualização muito grande. Além da produção de extras (que fizemos, neste caso dos filmes de Rino Lupo, apresentamos um documentário de 30 minutos sobre a gravação da música que acompanha os dois títulos), fizemos um trabalho, muito consciente, de produzir uma brochura que contém textos que contextualizam a época de produção e a função original dos filmes. Isto é importante, no caso dos documentários do Estado Novo, já que eram objectos de propaganda e como tal não queremos que voltem a ter a mesma função hoje, há que explicá-los e enquadrá-los num regime político diferente daquele que vivemos hoje. No caso do cinema mudo é importante contextualizar o modo de recepção desses filmes, introduzindo as questões importantes da música, dos intertítulos, da ausência do som, etc..
O Jornal Português, e provavelmente com a Margot Dias passava-se o mesmo, era muito requisitado no ANIM, por investigadores. Com a edição em DVD essas pessoas deixaram de ter que se deslocar ao arquivo e a edição funciona também como objecto de trabalho académico. Promove que se escreva mais sobre estes objectos, incluindo neste caso, o cinema mudo português…
Absolutamente. Vai ao encontro de um eixo principal da acção da Cinemateca que é a descentralização. Isto permite que, por todo o território (e até fora dele, já que todas os textos, menus e legendas estão em português e inglês), os filmes possam circular e que quem os queira ver não necessite de se deslocar ao Centro de Conservação da Cinemateca. No caso do Jornal Português, já sabíamos que era uma colecção popular junto dos investigadores, já que era muito requisitada, visto ser uma fonte histórica muito importante para estudar o Estado Novo e para estudar também a relação do cinema com a propaganda durante o regime. Editámos esta obra como uma fonte histórica sobre cinema e sobre história, e sabíamos que iria de encontro às preocupações de vários dos investigadores destas duas áreas.
Esta acessibilidade que o DVD traz implica a questão do digital. A Cinemateca e o ANIM sempre defenderam o restauro analógico, mas uma edição em DVD só existe porque houve uma digitalização, e sobre a qual houve algum trabalho digital.
É preciso não apagar ou “corrigir” aquilo que a película tinha de diferente, pelo contrário, há que sublinhá-lo.
Sim e diferenciado. É exactamente como disseste: estas edições podem acontecer agora porque antes delas houve um trabalho de conservação, preservação e restauro foto-químico. Nenhum destes filmes é um restauro digital. Nós somos muito parcimoniosos na utilização desse termo em obras editadas em DVD ou editadas digitalmente. O que a edição do Rino Lupo faz é transferir para meio digital o restauro foto-químico. Porque é isso que nos interessa valorizar, um trabalho de restauro que é anterior a este meio de distribuição que existe actualmente, e sem o qual este este meio não poderia existir. O digital e o vídeo são a recta final do trabalho de conservação, preservação e restauro que existem a seu montante.
Dito isto, estes filmes podem ser vistos numa transcrição desses restauros foto-químicos onde se poderão ver muitas das imperfeições da imagem foto-química. E nós achamos que isso é muito positivo, já que deste modo podem usar-se os DVDs para fazer um trabalho pedagógico, sobre o que era a imagem cinematográfica em película e muitas outras coisas, podem ajudar a explicar o que era um intertítulo, as colagens, as tintagens… Se estivéssemos muito preocupados em criar uma imagem muito cristalina, limpa de tudo isso que, mal ou bem (muitas vezes mal), se considera serem imperfeições, segundo um conjunto de expectativas e padrões em relação à imagem nativa digital do cinema contemporânea, estaríamos a perder não só memória (o que seria um comportamento pouco ético por parte de uma cinemateca), mas sobretudo perderíamos a oportunidade de fazer um trabalho pedagógico sobre as diferenças entre o cinema em digital e em película. Se calhar o digital acaba por ser um grande aliado da película porque ajuda a explicar aquilo que ela tinha de diferente. Mas para isso é preciso não apagar ou “corrigir” aquilo que a película tinha de diferente, pelo contrário, há que sublinhá-lo.
Do ponto de vista da conservação, há grandes diferenças entre estes dois filmes: Os Lobos resulta de uma cópia muito mais límpida e mesmo os intertítulos foram criados posteriormente, ao passo que nas Mulheres da Beira há até uma sequência que parece um filme de Bill Morrison, a sequência da fuga, em que a imagem se liquidifica numa abstracção.
São duas situações completamente diferentes, que resultam de dois materiais de partida também eles muito diferentes. Teria sido possível, com ferramentas digitais (que usámos, no caso das Mulheres da Beira) usadas num grau muito elevado, tornar a imagem dos dois filmes muito mais uniforme. Mas se o tivéssemos feito tínhamos perdido a oportunidade de explicar que no restauro d’Os Lobos estamos perante um restauro foto-químico que partir de um negativo de câmara original, e que no caso das Mulheres da Beira estamos um restauro foto-químico que partiu de uma cópia de distribuição tardia, o que significa que teve um circuito de distribuição muito intenso, e logo chegou até nós com muitos danos físicos e até químicos. Nessa cena da fuga, até o Carlos Almeida da Irma Lucia que fez o tratamento digital do filme dizia que até parecia que ela fugia acoberto da própria degradação química do nitrato, como se o próprio filme a ajudasse a fugir. Os intertítulos d’Os Lobos foram feitos de novo, respeitando os grafismos dos cartões originais, que estavam demasiado danificados. Foram repetidos utilizando, não processos digitais, mas uma truca, isto é, produzidos fotograficamente quando foi produzido o restauro foto-químicos do filme. Tudo isto faz parte da história material de cada filme e está contido, creio eu, nesta edição em DVD.
Depois há a outra complicada questão das tintagens. O caso d’Os Lobos é bastante complexo. Como se procedeu depois à “tintagem digital” para os DVDs?
Havia uma cópia tintada d’Os Lobos na Cinemateca, mas tinha danos físicos e químicos e estava ligeiramente incompleta [não tinha todo o prólogo marítimo, antes de o Ruivo ser enviado para a montanha como degredo, nem a abertura com os autores da peça que o filme adapta e o próprio Lupo]. Depois descobriu-se o negativo original em França. Porque a segunda versão do filme foi lá feita, e lá ficou até ser identificada nos arquivos do CNC, sendo depois doada à Cinemateca Portuguesa. Tínhamos esperança que este negativo contivesse os planos da primeira versão mais longa do filme [em oito parte], mas não foi o caso. O negativo foi deixado como saíra do laboratório quando em 1924 se fez a segunda edição do filme. Isto significa que o negativo de nitrato tem indicações manuscritas identificando cada plano e dizendo qual a cor que lhe corresponde. Fizemos o restauro a partir desse negativo, só que o negativo não tem tintagem. Tivemos que cruzar essa informação com a da nossa cópia de nitrato…
O que fizemos foi inspeccionar o negativo, tentando replicar, até certo ponto, o método original do laboratório dos anos 1920 quando tirava uma cópia. O negativo original não estava organizado de modo narrativo, estava-o segundo as tintagens. Era o processo habitual para a produção de uma cópia no tempo do cinema mudo. O filme era organizado em grupos, planos com a mesma cor, tiravam-se cópias positivas desses grupos de negativos que eram depois banhadas até adquirirem as tintas das tintagens e das viragens. Depois, só após estarem todos os planos tintados se procederia à montagem. Com adaptações à tecnologia contemporânea do restauro foto-químico, foi isso que fizemos. Não utilizamos banhos químicos, até por uma questão de preservação, usamos sim um processo inventado pelo belga Nöel Desmet, o método Desmet, que é um método fotográfico de reaplicação, através de uma impressora, das cores originais da cópia de nitrato. Tem a vantagem de ser um método que usa uma película de cor e por isso pode ter origem num material inter-negativo a preto-e-branco, o que é óptimo para a preservação a longo prazo.
Para produzir as matrizes digitais desta edição, digitalizámos essas matrizes intermédias a preto-e-branco, e depois replicámos digitalmente as cores, aquilo que alguns autores, como a Barbara Flückiger, chama o Desmet digital. O que significa analisar as cores da nossa cópia de nitrato, tanto d’Os Lobos como das Mulheres da Beira, e depois replicar digitalmente essas cores. É um trabalho de puzzle, que é muito interessante porque nos obriga a aprender e a replicar, de maneira adaptada, os processos de laboratório dos anos 1920. Aprende-se muito sobre essas técnicas no processo do restauro.
Esta edição de dois filmes do Rino Lupo é o início de uma colecção dedicada ao cinema mudo português. Porquê começar pelo Rino Lupo?
A intenção era ir buscar filmes injustamente esquecidos e secundarizados, e trazê-los de novo à ribalta.
Essa pergunta está-me a ser feita várias vezes. Se calhar por uma conjugação de factores favoráveis e felizes. Em primeiro lugar a existência de excelentes matrizes de preservação foto-química. Em segundo lugar, a circunstância feliz de, enquanto estávamos a preparar a edição em DVD de filmes mudos, termos entrado em contacto com o Manuel Deniz Silva, o musicólogo que identificou e trabalhou a partitura original d’Os Lobos. Isto ia ao nosso encontro de encomendar partituras originais ao piano, de grande qualidade, ou tentar reconstituir as partituras originais que acompanhavam esses filmes quando foram apresentados ao vivo pela primeira vez. Isso colocou esta edição no topo da lista.
Finalmente, apesar de ser menos conhecido na história do cinema mudo português, é um filme muito apreciado e valorizado por vários historiadores de cinema português. A intenção era portanto ir buscar filmes injustamente esquecidos e secundarizados, e trazê-los de novo à ribalta. Estamos já a trabalhar nas obras que, de depois do filme de Manoel de Oliveira, logo vêm à cabeça quando falamos se cinema mudo: Maria do Mar (1930), Lisboa, Crónica Anedótica (1930). Estas são obras em que estamos a trabalhar para editar brevemente. Depois também temos planos para editar filmes da Invicta e também do Reinaldo Ferreira, são absolutamente as grandes prioridades para a edição das ficções mudas.
O Félix Ribeiro, logo nos primeiros ciclos dedicados à história do cinema português, nos anos 1950, programou estes dois filmes de Rino Lupo. Foram logo nessa altura duas das obras fundamentais para a historiografia do nosso cinema. São, de certo modo, títulos canónicos. O Bénard da Costa chama às Mulheres da Beira “a primeira obra maior do cinema português” e o Félix Ribeiro acha que Os Lobos é “a mais bela joia que a cinematografia portuguesa do período mudo tem para mostrar”. Era por isso também uma escolha segura?
Sim, espero que sim. Mas a médio e longo prazo nós queremos editar muitas outras coisas. Mas isso é verdade, e creio que um dos motivos para a grande valorização do filme passa pelo contraste que ele representava com o cinema da Invicta Film. Quando pensamos na Invicta Film estamos a pensar em adaptações de obras literárias, dos cânones naturalistas da literatura portuguesa do século XIX, rodadas em estúdio, com uma produção muito complicada e sofisticada, com actores muito conhecidos e partituras do Armando Lessa, muitas delas escritas propositadamente para os filmes. E o Rino Lupo…
Era uma figura caída de pára-quedas…
Rino Lupo tinha uma grande vontade de filmar de uma maneira que até então tinha sido muito raro no cinema português, com actores não-profissionais e fora dos estúdios.
Sim, caiu de pára-quedas e era personagem maior que a vida, devia ter um carisma fenomenal e e uma grande habilidade nas relações humanas. E depois tinha uma grande vontade de filmar de uma maneira que até então tinha sido muito raro no cinema português, com actores não-profissionais e fora dos estúdios, pelo país fora. Isso constituiu uma grande diferença. Como esse caminho foi depois muito valorizado na história do cinema português é muito fácil, e se calhar justo, encontrar no Rino Lupo o percursor dessa via — vão nesse sentido os textos do João Bénard da Costa, quando fala de “verismo” e naturalismo.
A esse respeito creio que é interessante reparar que os primeiros filmes da geração que substitui o Rino Lupo, os primeiros realizadores nascidos em Portugal, têm muito em comum com os filmes dele. Por exemplo, o Maria do Mar do Leitão de Barros aproxima-se pelo trabalho com os não actores e com a rodagem fora do estúdio, e o Gado Bravo (1934) do António Lopes Ribeiro tem uma série de afinidades narrativas, como seja a oposição entre campo e cidade ou a presença das mulheres sexualizadas.
Acho que tens toda a razão. Embora na altura o Rino Lupo fosse eleito como a besta negra daquela geração. Também porque ele continuou a trabalhar na segunda metade da década de 1920 e fez dois filmes, em particular, que foram grandes sucesso de bilheteira mas muito mal recebidos pela crítica: Fátima Milagrosa (1928) e José do Telhado (1929). São filmes que coincidem com o arranque das vanguardas cinematográficas europeias e que eram aquilo que o Leitão de Barros, António Lopes Ribeiro, Chianca de Garcia e Manoel de Oliveira queriam fazer. Apesar de haver essas relações que fizeste, e são óbvias e estão lá (e agora poder-se-ão talvez perceber melhor), de um ponto de vista tático era importante ostracizar (porque também era uma questão geracional) o velho cinema do velho Rino Lupo, que era, numa altura em que a Invicta já não existia, o resquício de um cinema que se pensava estar morto e enterrado. Claro que esses filmes são muito diferentes d’Os Lobos e das Mulheres da Beira. São filmes com um intuito comercial e popular muito claro, o que se vê logo pela escolha dos temas.
Enquanto preparava esta entrevista comecei a aperceber-me de uma enorme ironia: é que aquilo que leva ao fim da Invicta e dos realizadores do cinema mudo é exactamente o mesmo que deita abaixo o Leitão de Barros e o António Lopes Ribeiro no final dos anos 1940 e definitivamente nos anos 1950. Isto é, a insistência em adaptações literárias e em filmes de estúdio caríssimos e particularmente enfadonhos. Ao ponto de até se repetir o filão do José do Telhado que foi re-adapatado por Armando de Miranda — sendo igualmente um sucesso (com sequela e tudo). Pode marcar-se aí a transição para a geração seguinte, a dos assistentes.
Acho que isso faz muito sentido, e acho importante lembrar que a mudança de regime político veio acrescida de uma vontade do Estado Novo canalizar, para seu interesse próprio, as vaguardas para um tipo de filmes que estava mais de acordo com os seus interesse ideológicos. O caso do Leitão de Barros é, nesse aspecto, paradigmático. E o caso do próprio António Lopes Ribeiro, o realizador oficioso do regime, é igual. Lá está, actualmente a história do cinema português começa muitas vezes com o cinema sonoro, o salazarismo e as comédias à portuguesa, pode ser que agora isso mude. E claro, isto prende-se com a questão da acessibilidade, é preciso ver os filmes e pensar sobre eles para poder criar relações.
Na biografia que escreveste do Rino Lupo explica-se que até há 15 anos não se sabia sequer quando nem onde, exactamente, ele tinha nascido, nem sequer a sua filmografia completa era conhecida (e havia, ainda há, um mistério à volta das circunstâncias da sua morte). Não havia qualquer tipo de historiografia sobre o Rino Lupo, nem sobre os outros realizadores do mudo, os franceses, o Lion, o Mariaud e o Pallu…
Nos anos 1920 o padrão no cinema era o internacionalismo.
Sim e não. Havia alguns estudos sobre o Lupo, quanto aos três franceses não havia de facto quase nada. Contudo, através de contactos internacionais, foi relativamente fácil chegar lá. Isso tem um pouco que ver também com a própria história das cinematecas e dos aqurivos de cinema, que nos últimos 20 ou 30 anos trabalham cada vez mais em colaboração, de modo transversal. E depois tornou-se muito mais fácil a comunicação nos últimos anos, naturalmente. Comecei a investigação dos três franceses a enviar faxes para Paris e acabei a do Rino Lupo a escrever emails. As coisas mudaram muito nesse período e só se tornaram mais fáceis. No caso do Rino Lupo, escrevi a biografia, é certo, mas desenvolvendo o trabalho pioneiro do Amândio Videira Santos, que tinha feito uma primeira biografia sobre o realizador. E no caso dele nem sequer faxes havia, era escrevendo cartas para todos os críticos e arquivos da Europa, todos aqueles de que ele se conseguiu lembrar e que consegui contactar. Foi um trabalho fenomenal que demorou muitos anos, já avançava muito devagar e ele tinha um emprego a tempo inteiro. Videira Santos foi um dos primeiros grandes historiadores do cinema português, e além do Rino Lupo trabalhou sobre muitos outros assuntos.
Mais recentemente, o realizador Pedro Lino, que fez o extra da edição em DVD, está a realizar um documentário sobre Rino Lupo. Na pesquisa que fez ele conseguiu descobrir o local e a data da morte de Rino Lupo: Roma, 1936. Descobriu mesmo o hospital onde ele morreu e o local onde está sepultado. O Pedro fez aquilo que eu gostaria de ter feito mas não podia, ir a todos os sítios que o Lupo percorreu na Europa [de Roma vai para Paris, depois para Berlim, Copenhaga, viaja para Moscovo, depois Varsóvia e só então Lisboa — tudo entre 1910 e 1921]. Vai ser muito interessante ver o filme do Pedro como um revistar desta biografia mirabolante do Lupo. E se a carreira do Rino Lupo é fantástica, na realidade, nos anos 1920 este era o padrão no cinema: o internacionalismo era a norma. A circulação entre países de realizadores, técnicos como actores, não só na Europa, como entre a Europa e Hollywood. Só com a chegada do sonoro se impuseram barreiras a essa circulação, e em Portugal achou-se que elas poderiam ser aproveitas numa visão proteccionista, para desenvolver a indústria em Portugal, o que não aconteceu.
A propósito disso, há nestes dois filmes do Rino Lupo, de modo ainda subterrâneo, o fervilhar de uma ideologia nacionalistas que depois vai ser apurada por António Ferro. O interesse nos regionalismos, o olhar algo etnográfico sobre o meio rural, a oposição entre o campo e a cidade. Isto era algo próprio da cinematografia portuguesa da altura, ou integrava-se num movimento maior, por toda a Europa?
É importante desligar a interpretação e o entendimento dos ciclos políticos, dos ciclos culturais e artísticos.
Acho essa ideia muito importante, porque realmente o nacionalismo cultural era uma ideia com peso, não só no cinema, como na literatura, na música ou no teatro, nos anos 1920 (já desde o século XIX), e é isso que ajuda a perceber o Estado Novo e o seu nacionalismo. Não nasce do zero, tem estas ramificações que é importante perceber e que não depende do regime político: existia antes do Estado Novo e naturalmente não terminou com o 25 de Abril. É importante desligar a interpretação e o entendimento dos ciclos políticos, dos ciclos culturais e artísticos. A tentativa de edificar, de maneira artificial, aquilo que era a interpretação citadina do meio rural é algo que depois vai ter continuidade no Estado Novo, numa prática etnográfica que vai isolar e apropriar-se de aspectos do mundo rural, na medida em que podem ter um valor de exposição, e assim ser capitalizados pelo regime num contexto urbano.
Nesse sentido Os Lobos e as Mulheres da Beira são iguais, filmes sobre o mundo rural transformados em mercadorias culturais destinadas ao consumo urbano para uma população citadina, na sua maioria recentemente vinda do meio rural. Os filmes ajudam a contar essa história. E não era, de todo, uma especificidade portuguesa. O Rino Lupo fez obras de propaganda política durante a Primeira Guerra Mundial, fez obras também regionalistas com o Léonce Perret, em Franca, nos anos 1910, enfim… Esta vulgata do nacionalismo cultural tinha adesão, no contexto europeu, de maneira muito diversificada, no cinema e não só.
O Bénard da Costa cita um dos produtores da Invicta Film, o Henrique Alegria, quando este afirma que era importante para “o estrangeiro observar algumas das feições mais características da ignorada alma portuguesa.” Portanto o nacionalismo era também uma ferramenta de internacionalização dos filmes.
Era uma estratégia também económica. Acreditava-se que desse modo os filmes tinham mais hipótese de vingar no contexto internacional, reflectindo aquilo que era “especificamente português”. Claro que, ao fazer isso, também respeitavam aquilo que se entendia ser, nos anos 1920, a principal função do cinema: uma função, não só artística, ou ainda não totalmente artística, mas uma função social de reflectir sobre este tipo de temas, a função de levar a imagem idealizada do país para o estrangeiro. Mas também para o consumo interno, por se achar que os portugueses não conheciam suficientemente bem o seu pais, e senão conheciam não o podiam amar, e portanto filmes sobre Portugal eram uma forma de reforçar o patriotismo dos espectadores.
Numa entrevista à Animatógrafo, do final dos anos 1930, ou início dos anos 1940, quando o Jean Renoir passou por Lisboa, fugindo à Guerra, o Lopes Ribeiro mostrou-lhe A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal (1938) e o Renoir terá dito que era ali que o cinema português tinha o seu grande filão, as paisagens, o campo e a natureza. Quando vi estes dois filmes do Rino Lupo o que me espantou é sentir que quase todos os planos trabalham sempre na profundidade de campo para darem, simultaneamente, a acção e a cascata, o rio, as cabras, a igreja ou a serra que se vêem ao fundo. Parece que a câmara está sempre a tentar filmar os dois ao mesmo tempo: a história e o ambiente.
Sim, isso liga-se com a tentativa de relacionar as pessoas com o seu meio envolvente, para documentar essa relação entre a paisagem, os monumentos e as pessoas. Essa relação tripartida sempre foi muito importante no cinema mudo português, até às vanguardas. Por vezes a relação era construída até ao absurdo: lembro-me de uma crítica a um filme do Roger Lion em que um crítico dizia que não compreendia porque havia uma cena em que uma personagem trepava o Convento de Cristo três vezes, e outro crítico escrevia que “isso pouco importa, se é isso que é necessário para mostrar os belos monumentos nacionais, então seja.” Portanto essa ideia do fundo ser mais importante que a narrativa existia. No caso da Invicta, muito menos, por serem filmes de estúdio, e por serem adaptações literárias, mas no caso do Rino Lupo creio que essa relação era mais harmoniosa. Que se liga a uma curiosidade genuína sobre a relação entre as pessoas e o seu meio.
Estava a falar e lembrei-me que há um fenómeno curioso décadas mais tarde. É que se neste período, e depois também durante o regime, a relação campo-cidade é uma constante (que ainda se encontra no cinema português feito hoje), mas se primeiramente a cidade é o local do vício e o campo o espaço idílico e puro, mais tarde dá-se uma inversão. Filmes como o Três Dias sem Deus (1946) ou O Crime da Aldeia Velha (1964) apresentam um meio rural infestado de preconceitos, misticismos e atavismo. É possível escrever uma história do cinema português a partir destas oposições entre campo e cidade…
Absolutamente. É um tema totalmente transversal. E é muito importante para perceber não só o cinema português, como a própria história do país. Essa inversão, com a qual eu concordo genericamente, pode ser pensada através da evolução histórica entre a percentagem de população urbana e rural, que se inverte nos anos 1950, devido ao êxodo rural e à grande urbanização (e também à emigração). Mas por outro lado também terá que ver com razões internas ao próprio desenvolvimento do cinema português, à tentativa de incorporar novas linguagens cinematográficas do cinema moderno, ao mesmo tempo que se tentava, com as limitações da censura, reagir e pôr em causa o cinema sancionado pelo Estado Novo, que até aí tinha identificado o meio rural como espaço idílico, porque estático e imutável. Tanto do ponto de vista cultural como material.
Tenho estado a insistir na ligação pela continuidade entre o cinema mudo e o cinema sonoro da geração das vanguardas, mas há outro aspecto que se evidencia pelo contrário. Há, nestes dois filmes do Rino Lupo, uma enorme sexualização das personagens femininas que é surpreendente quando comparada com o cinema do Estado Novo. Quase todas as mulheres destes filmes surgem a certo momento a morder o lábio diante dos fidalgos e dos lenhadores. Há uma enorme lascívia, e o Bénard da Costa sublinha muito isso, olhando mais para o decote da Aninhas do que para a cruz que sobre ele poisa. Há um olhar que é radicalmente diferente do cinema do regime e a representação da mulher é totalmente diferente das meninas bem educadas e de boas famílias dos filmes dos anos 1940 e 1950.
Estes dois filmes permitem liberdade às mulheres de desejarem os homens, e até de serem relativamente activas quando tentam materializar esses desejos.
Sim, é verdade. Há uma diferença radical, que é explicada pela intervenção da censura, que nos anos 1920 não existia ainda como nas décadas seguintes. Havia uma lei da censura, é certo, e havia uma vigilância descentralizada a partir dos governos civis. A partir dos anos 1930 existe um processo de centralização, com a atribuição de licenças de exibição, e a burocratização e centralização da censura são acompanhadas do seu endurecimento. Nos anos 1940 já há uma comissão de censura a funcionar plenamente. Nos anos 1920 este proceso ainda estava muito no seu início, o regime político também era outro, e isso justifica certamente essa natureza. Claro que os filmes permitem essa liberdade às mulheres de desejarem os homens, e até de serem relativamente activas quando tentam materializar esses desejos, mas esse comportamentos acabam sempre por ser censurados pela própria lógica narrativa dos filmes que as castiga por essa pretensão. O que não quer dizer que os espectadores não possam tirar grande prazer dessas sequência que precedem o desenlace trágico. Essas sequências existem, são muitas, e são muito importantes na lógica narrativa dos filmes, portanto isso dá que pensar até que ponto o realizador estaria conformado, contente ou descontente com os fins que deu aos seus filmes.
Quando olho para estes filmes, que foram feitos há quase um século, sinto que é impossível vê-los com o mesmo olhar com que foram feitos. Mais ainda quando é necessário pedir novas partituras, ou o facto de subsistirem versões que não foram as da estreia. Os objectos que estamos a ver hoje são muito diferentes daquilo que devem ter sido: uma espécie de fotocópia sucessivamente mais distante da primeira folha. Creio que a Cinemateca tem tido o cuidado de não anunciar esta edição como a versão autêntica. E lembro-me sempre de uma frase do Luís Miguel Oliveira, escrita aquando da reposição do restauro digital do Vertigo (A Mulher que Viver Duas Vezes, 1958) nas salas nacionais, em que ele dizia “Como nunca o vimos e como Hitchcock nunca o fez“. Quando olho para um filme com tanta história pergunto-me sempre o que estou de facto a ver. Pergunto então se são estas as preocupações que vos atormentam sempre que pedem uma nova composição, compõem um intertítulo novo ou acertam a cor num computador.
Há arquivistas que dizem que não se restauram filmes, restauram-se ideias de filmes.
Absolutamente. Há um princípio… há muitos princípios de restauro, que a Cinemateca Portuguesa, como qualquer outro arquivo de cinema, se vê obrigada a cumprir. Mas há uma orientação muito importante: é preciso restaurar alguma coisa que tinha sido vista, alguma vez, por alguém [risos]. Muitas vezes, tendo a possibilidade de, a partir de cópias diferentes, acumular planos e construir uma super-cópia, isso não me parece um objectivo necessariamente bom nem necessariamente interessante, e muito duvidoso do ponto de vista ético. Porque, lá está, essa cópia, hipotética, é uma que nunca ninguém viu. O trabalho sobre filmes de qualquer período histórico tem que ser um trabalho sobre a memória do que teria sido a experiência de ver esse filme nesse contexto. Há que ter noção de que, mesmo quando um filme é exibido em película, reproduzir processos dos anos 1920 com técnicas dos anos 2000 implica variações, e por maioria de razão, essa diferença será possivelmente maior ainda numa cópia digital — há arquivistas que dizem que não se restauram filmes, restauram-se ideias de filmes. Portanto, há aqui dois trabalhos de contextualização que são concorrentes: primeiro, contextualizar tudo o que sabemos sobre aquela obra e o contexto da sua recepção (como foi produzida, vista e recebida), e, por outro lado, contextualizar muito bem tudo o que fizemos, hoje, para dar a ver aquela obra. É importante abraçar a diferença entre a película e o digital para tentar ligar os dois contextos, sem esquecer nunca que esta diferença é uma possibilidade pedagógica para falar do passado.