A filmografia de Kenji Mizoguchi foi apresentada, pela primeira vez, em Portugal num ciclo da Gulbenkian em Novembro e Dezembro de 1976. Mais de quatro décadas volvidas, e após várias exibições na Cinemateca Portuguesa, Mizoguchi volta aos ecrãs portugueses. Em Abril e Maio de 2017, o Espaço Nimas mostrará nove dos seus filmes convidando à (re)descoberta de algumas das suas obras principais. Uwasa no onna (A Mulher de Quem se Fala, 1954) abre o programa hoje.
Kenji Mizoguchi nasceu em 1898, um ano depois de o cinematógrafo dos Irmãos Lumière chegar ao Japão, e o seu nome veio a tornar-se um dos maiores da história do cinema japonês. A opressão feminina sempre esteve no centro dos filmes deste suave esquerdista, que viveu a infância no bairro de Asakusa, à época um centro de entretenimento (e prostituição) de Tóquio, realizou o primeiro filme aos 20 e poucos anos, e trabalhou para vários dos principais estúdios cinematográficos japoneses.
Tal como outros conterrâneos, Mizoguchi foi “descoberto” na Europa nos anos 1950, com filmes seus premiados no Festival de Veneza sucessivamente em 1952, 1953 e 1954. Esse último ano foi particularmente prolífico para o autor, que, além do premiado Sansho dayu (O Intendente Sansho) e Chikamastu monogatari (Os Amantes Crucificados), realizou o menos conhecido Uwasa no onna, que iniciará o ciclo do Espaço Nimas, onde todos os filmes excepto um datam precisamente dos anos 1950.
Uwasa no onna é um gendai-geki, isto é, um filme sobre a vida contemporânea, escrito por dois colaboradores de Mizoguchi, Yoshikata Yoda e Masashige Narusawa (um já o era, o outro começou a sê-lo aqui). Foi uma encomenda da produtora Daiei que Mizoguchi não estava muito interessado em fazer. É normalmente tido como um trabalho menor entre as obras-primas finais do autor, embora também lhe tenham sido feitos elogios. João Bénard da Costa descreveu o filme como “talvez, o que olhou a mulher de modo mais singular”.
Foi uma encomenda da produtora Daiei que Mizoguchi não estava muito interessado em fazer. É normalmente tido como um trabalho menor entre as obras-primas finais do autor, embora também lhe tenham sido feitos elogios
No centro da trama estão uma mãe e uma filha. Hatsuko (Kinuyo Tanaka) gere uma bem sucedida casa de gueixas numa área a elas associada em Quioto, Shimabara, que lhe permitiu pagar os estudos da filha, Yukiko (Yoshiko Kuga), uma “mulher moderna”. Esta regressa de Tóquio, onde estudara música, após uma tentativa de suicídio gorada, motivada pelo fracasso de um noivado depois de os pais do namorado saberem da profissão da mãe. Yukiko despreza o bordel e o estilo de vida de quem lá vive e essa animosidade faz-se sentir desde o início, quando não cumprimenta as mulheres quando chega e as olha com repulsa.
O filme abre com um plano do exterior da rua onde se localiza a casa de gueixas (plano que será citado no final do filme). Yukiko regressa para dentro do mundo da mãe, e não mais de lá sairá. Paulatinamente, desenvolve-se uma certa empatia da parte de Yukiko para com as mulheres que trabalham para a mãe. Quando uma delas, que se prostitui para sustentar a família pobre, adoece, tal desperta em Yukiko para uma maior compreensão das ambiguidades daquele universo. Assim, Yukiko, que se isolava da vida quotidiana da casa (por exemplo, comendo separada), familiariza-se com as práticas que outrora criticara. Quando vê fracassar a hipótese de fuga que acalentara, acaba por substituir a mãe à frente da gestão do bordel, da mesma forma que a irmã da gueixa doente vem pedir-lhe para tomar o seu lugar, num dos momentos mais tristes do filme. “Algum dia deixará de haver necessidade de raparigas como nós?”, pergunta uma delas no final. A resposta é uma de desalento pela continuidade dessa opressão, como se as mulheres não conseguissem escapar às pressões de uma sociedade patriarcal, que usa e abusa dos seus sacrifícios. A lição que Yukiko aprende é, nas palavras da mãe, a de que a vida é feita de sofrimento mas é preciso aprender a viver com ele. Não há revolta, apenas resignação.
O filme tem também uma figura masculina de relevo, um jovem médico (Tomoemon Otani), que é o amante interesseiro da mãe e que virá a envolver-se com Yukiko. Este triângulo amoroso, que se articula em alguns dos planos mais magníficos na sua composição (Mizoguchi é um mestre da profundidade de campo e isso é observável aqui), serve para destacar a crueldade para com as duas protagonistas. O médico manipula as afeições de Hatsuko para que esta lhe compre uma clínica e ao estar disposto a abandoná-la pela filha lembra a esta a inconstância e cobardia do homem que a deixara a ela um dia. A personagem do médico nada tem nada de positivo e é um dos retratos mais cáusticos de Mizoguchi, que já não costuma ser muito brando com os seus protagonistas masculinos.
Tal como noutros filmes do realizador, referências teatrais têm aqui grande importância. Em Uwasa no onna é particularmente simbólica uma performance de Noh em que o que se passa em palco rima com o triângulo protagonista na assistência. É ao ver a cena de uma peça cómica ridicularizando uma mulher mais velha apaixonada por um homem mais novo que Hatsuko se apercebe da sua própria situação. Para um filme pautado por gestos minuciosos e elaborados, a reacção da personagem, aqui, é algo minimalista mas a expressividade da actriz Kinuyo Tanaka diz volumes.
A grande Kinuyo Tanaka, que dá vida à figura mais complexa do filme, Hatsuko, teve neste filme a sua última colaboração com Mizoguchi, em cuja filmografia participara como actriz várias vezes. Tanaka realizara o seu primeiro filme um ano antes de Uwasa no onna, sendo por vezes considerada a primeira realizadora japonesa (embora, sem desprimor algum, talvez tenha sido só a segunda já que a primeira foi Tazuko Sakane, que também trabalhara com Mizoguchi). A sua passagem à realização levou, curiosamente, a uma incompatibilização com Mizoguchi, que se terá oposto a que lhe fosse entregue um segundo filme para realizar. O autor e programador especialista em cinema asiático Tony Rayns notou como Mizoguchi era algo contraditório na sua relação com as mulheres, simultaneamente admirando e temendo as de personalidade forte e independente.
Essa ambivalência está reflectida em Uwasa no onna, que – como outros filmes de Mizoguchi – vai beber às suas próprias experiências de vida. Em primeiro lugar, o espaço do bordel seria algo que o realizador conheceria bem, pois era um frequentador de “casas de prazer”, embora estando atento à exploração (sobretudo de mulheres mais pobres) que lá se praticava e que ele abordou várias vezes nos seus trabalhos. Também o trauma da venda da sua irmã mais velha pelo próprio pai para ser gueixa terá influenciado muito a sua obra, ainda para mais tendo a irmã depois apoiado parte da sua formação. Outro episódio que teve ecos na sua obra foi ter sido esfaqueado por uma namorada (o ataque da tesoura em Uwasa no onna poderá remeter para isto).
Talvez o menos “falado” filme do ciclo Mizoguchi no Espaço Nimas, Uwasa no onna pode agora ser redescoberto no grande ecrã como um exemplo de algumas das principais preocupações temáticas e estilísticas do seu cinema. Este programa permite, sobretudo, vê-lo em diálogo com outras obras essenciais, nomeadamente Gion bayashi (Festa em Gion, 1953) e Akasen chitai (Rua da Vergonha, 1956).
Uwasa no onna estará em exibição no Espaço Nimas dias 13, 14, 19, 20, 25 e 26 de Abril e dias 1, 2, 6 e 9 de Maio, às 13h30, 15h30, 17h30 e 21h30. Estamos a oferecer bilhetes para a sessão do dia 20 (quinta) aqui.