Entre os dias 19 e 28 de Maio, o MARTE – Mostra de Artes Visuais, organizado pela Escola Secundária Alcaídes de Faria, em Barcelos, acolhe um segmento de cinema num programa interartes em torno da Igualdade e Diversidade de Género. Uma programação, em duas curtas e duas longas metragens, compõe uma progressão cronológica de títulos que endereçam a evolução do cinema enquanto veículo de códigos e de comportamentos e enquanto linguagem com potência interventiva. Enquadrando a discussão no seu contexto histórico, as duas sessões alinham quatro filmes pouco vistos – The Masquerader (1914), The Homicidal (1961), Seven Women Seven Sins (1986) e Victor / Victoria (1982) – para falar de Troca de Géneros e de Desconstrução Queer, com curadoria da walshiana Sabrina D. Marques e comentários presenciais dos walshianos Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa.
Exibido no domingo 21 de Maio, o primeiro alinhamento entre dois títulos, intitulado de Troca de Géneros, constrói um ponto de vista crítico do cinema enquanto veículo de códigos tipificados, apresentando exemplos que utilizam o fingimento constituinte da linguagem cinematográfica enquanto ferramenta da progressão da acção. No retrato dos géneros por cada um dos filmes destacados, a sucessiva troca de peles acontece segundo objectivos funcionais, dramáticos e narrativos, revelando o peso histórico do estereótipo. É precisamente na leveza descomprometida desta migração entre feminino e masculino, que encontramos a mais ancestral e imediata vocação das artes performativas para a expressividade ‘‘queer’’, evidenciando como um estudo de personagem implica um estudo de personalidade, de identidade e, consequentemente, de género, nas mais múltiplas possibilidades em que a definição se alargar e cruzar. The Masquerader e The Homicidal são dois quadros construídos no interstício da verdade e da impostura, histórias para lá de vestígios de realidade, que nos permitem pensar o género nas suas dimensões psicológicas e performativas, onde o indivíduo é dotado de agência sobre a constituição do seu mundo e onde, por conseguinte, se apresenta, segundo a sua vontade, consoante quer ser visto. E é neste acelerado processo de mimesis de estereótipos (masculinos e femininos) que se sedimenta a tese em que Judith Butler explica como ‘‘os papéis femininos e masculinos não são biologicamente fixos mas socialmente construídos’’.
The Masquerader, de Chaplin é uma comédia muda que, ao estilo slapstick, vive da dimensão excessiva das poses e gestos e rapidamente convoca a questão: qual o significado da imediata comicidade de um homem travestido, recurso recorrente da comédia física? Se esta curta marca um dos raros momentos em que a personagem Tramp se traveste, parece ainda adiantar outro filme de Chaplin – Behind the Screen (1916) – em que o Tramp beija alguém que parece um homem (mas que só ele sabe que é mulher) o que convoca twists comportamentais nos personagens exteriores, subitamente libertos para a sua própria homossexualidade – fenómeno que vemos repetir-se, tal e qual, em Victor / Victoria. Se The Homicidal, à imagem de Psycho (Psico, 1960) de Alfred Hitchcock, faz convergir ostensivamente a hipótese de desvio normativo da identidade de género à patologia psicológica, relacionando psicopatia e travestismo, Victor / Victoria evoca-nos questões mais alargadas, que suspeitam de uma disjunção de dimensões sociais, com consequências materiais explicadas pela voz própria de quem vê o seu mundo mudar, estruturalmente, consoante o género em que nele decida apresentar-se.
É neste ponto de expansão que acolhemos a 28 de Maio – com o mais desabrigado humor – o segundo segmento do programa, intitulado de ‘‘Desconstrução Queer’’, entre dois títulos que demonstram como, mais do que veículo de condutas dominantes, o cinema é um potencial laboratório de reconfiguração de códigos e de comportamentos. A intervenção irónica de Seven Women Seven Sins, remodela a relação entre Adão e Eva, ensaiando a hipótese de uma História alternativa das dinâmicas entre mulheres e homens no Ocidente, assente na reformulação dos seus mitos originários. Em remate, com o precursor Victor / Victoria, celebramos a qualidade espectacular de um desafio performático que fendeu crucialmente a história do cinema, na mais explosiva liberdade do excesso, do burlesco e da desregra que, ludicamente, antecedem no grande ecrã múltiplas formulações de género, sexualidade, performatividade e identidade. Considerando a actualidade destas questões, encaramos a necessidade de trabalhar sobre a estrutura do tempo presente com as ferramentas legadas pelo cinema, recordando as palavras de Gloria Steinem: ‘‘Feminista é quem quer que reconheça a igualdade e plena humanidade de mulheres e homens.’’
Sessão #1: Troca de Géneros / a 21 de Maio na Casa do Vinho (Barcelos) com apresentação de Luís Mendonça
Charlot é um jovem actor que dá, sem sucesso, os primeiros passos no cinema mudo. Sem talento reconhecível, o causador de peripécias é impedido de aparecer nos estúdios, onde uma nova actriz dá nas vistas. Expulsos do seu camarim, os actores depressa perceberão quem é a nova favorita do realizador, largando numa perseguição histriónica. Este raro filme realizado, escrito e protagonizado por Charlie Chaplin no início da sua carreira na Keystone, descreve a produção em estúdios na silent era, onde o travestismo era frequente, vincando um retrato dos estereótipos da época e esboçando, entrecruzadamente, os dois principais alter-egos da carreira de Chaplin: as figuras do Charlot e do Tramp.
O clima de mistério adensa-se e a jovem Miriam Webster corre perigo. Chegado da Europa, o meio irmão Warren trouxe consigo uma amiga – a maquiavélica enfermeira Emily que concretiza as suas pulsões assassinas. Só a muda criada Helga, confinada a uma cadeira de rodas, testemunha silenciosamente os ímpetos destruidores de Emily, que planeia assassinar Miriam. A mais crua maldade acontece tão explicitamente que, à época, o realizador William Castle lançava as suas ‘‘gimmicks’’, prometendo devolver o dinheiro do bilhete a quem se assustasse demais para ver o filme até ao fim.
Seven Women, Seven Sins é uma longa composta por sete curtas, assinadas por sete realizadoras europeias que, num golpe de ironia, subvertem a sedimentada associação ocidental entre mulher e pecado. A esta intervenção conjunta, destaca-se o segmento Gula (Gluttony) de Helke Sander que, com liberdade e experimentalismo, reescreve o mito original do Génesis, atribuindo comportamentos distintos a Adão e Eva.
Em Paris em 1934, uma cantora em dificuldades aceita fazer-se passar por um homem que trabalha como drag-queen. Num alucinante rodopio de burlesco, de excentricidade e de espectáculo, Julie Andrews expande-se entre peles várias, oscilando entre ser a mulher que é, o homem que finge ser e a persona drag desse homem em palco. Neste hilariante jogo de identidades forjadas, medita-se descomplexadamente acerca da homossexualidade e da construção da identidade de género.