Percorrendo a obra de Ridley Scott, sem necessidade de grande reflexão, verificamos ser, maioritariamente, composta por títulos entre o medíocre e o sofrível. Por isso, há uns anos, recebemos com um sorriso de simpatia, um post no Facebook de um conhecido crítico internacional, em que se congratulava com o facto de já não necessitar de acompanhar a produção de Scott por ter deixado de regularmente fazer crítica de cinema. No entanto, há que reconhecer o facto de serem poucos os realizadores a poderem gabar-se por terem dois títulos da sua filmografia elevados a ícones da cultura popular: Alien (Alien – O 8.º Passageiro, 1979) e Blade Runner (Perigo Iminente, 1982). No caso de Alien, não só criou uma linhagem única na história do cinema, como entrou nos estudos académicos, sendo citação habitual em Estudos de Género relacionados com o cinema. Se, antes de mais, ambos os filmes são resultado do trabalho visionário das suas equipas, não podemos negar a capacidade do artífice Scott em articular as diferentes perspectivas para integrarem novos e coerentes universos que incisivamente alimentam, e se alimentam, da cultura popular. Relativamente a este ponto, lembremos que H. R. Giger e Dan O’Bannon, os pais da criatura alienígena, eram reconhecidos pela singularidade do seu trabalho anterior e repescaram ideias que tinham desenvolvido para a pré-produção de Dune, projecto inacabado de Alejandro Jodorowsky. Para um percurso por Alien: Covenant (2017), última entrada na série Alien, tomamos como guia a pintura Die Toteninsel (Isle of the Dead, 1880) de Arnold Böcklin, em que, paradoxalmente, a simplicidade do motivo figurado revela uma ligação complexa entre as muitas noções que extrapola: terra/água, vertical/horizontal, chegada/partida, exterior/interior, masculino/feminino ou nascimento/morte.
Depois do musculado Aliens (Aliens: O Recontro Final, 1986) de James Cameron, do negrume estilizado de Alien³ (Alien 3 – A Desforra) de David Fincher, e da rugosidade de Alien: Resurrection (Alien: O Regresso, 1997) de Jean-Pierre Jeunet, presumimos que Ridley Scott não quisesse regressar à série que tinha inventado sem a limpar de todas as impurezas, com que os outros realizadores a tinham contaminado. Para além de Sigourney Weaver estar mais velha, a sua personagem, Ripley, sofrera significativas alterações na caracterização, assumindo papéis de soldado temível, mãe raivosa, companheira dedicada, viúva violada, mártir resignada e, finalmente, clone humano-alienígena. Prometheus (2012), composto por acontecimentos anteriores a Alien, mas não se assumindo como prequela, faz tabula rasa de tudo o que foi feito depois, sem o envolvimento de Scott, introduzindo uma nova linha narrativa protagonizada por uma espécie alienígena, os engineers, responsáveis putativos pela criação da vida humana, e colocando no centro das operações, substituindo Ripley, o andróide David (Michael Fassbender). De resto, para sedimentar a nova mitologia lançada por Prometheus, o estúdio construiu uma brilhante campanha publicitária que incluía um anúncio de página inteira no Wall Street Journal para vender a geração de andróides David 8, “manufactured by Weyland, powered by Verizon” – duas empresas de tecnologia, uma fictícia e outra real – que o transformou no título da série que conquistou maiores receitas a nível internacional.
Juntamente com uma exímia direcção de arte, Michael Fassbender é uma das primeiras razões para ver Prometheus (e também Alien: Covenant), interpretando um avançado modelo de andróide que, embora não sinta emoções como o medo, o sofrimento, o amor ou a compaixão, consegue replicar as propriedades biológicas da pele humana associadas a cada sentimento. Como diria T. E. Lawrence, que David gosta de citar, “the trick is not minding that it hurts”. Na preparação do papel, Fassbender não tomou em conta os anteriores andróides da série, mas sim um conjunto invulgar de referências, como os replicantes de Blade Runner, David Bowie em The Man Who Fell to Earth (O Homem Que Veio do Espaço, 1976) de Nicolas Roeg, Peter O’Toole em Lawrence of Arabia (Lawrence da Arábia, 1962) de David Lean, Dirk Bogarde em The Servant (O Criado, 1963) de Joseph Losey, a voz de HAL 9000 de 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) de Stanley Kubrick, ou o andar do atleta olímpico Greg Louganis. Durante a viagem até ao planeta distante, enquanto a tripulação humana repousa no hipersono, David vê o filme de David Lean, treina as falas de T. E. Lawrence (Peter O’Toole) e copia o seu corte e cor do cabelo. É o melhor momento de Prometheus, com a nave deserta e David fascinado, a matar o tempo – duas noções a que é indiferente: tempo e morte.
No prólogo de Alien: Covenant, a ponte entre Alien e Prometheus, David e o seu criador Peter Weyland movimentam-se num cenário kubrickiano que ressalta as oposições estruturais que os definem: humano e máquina, morte e imortalidade, criação e servidão. É aqui que David vê negada a capacidade de criação, ressaltando a superioridade humana, metaforicamente representada por uma civilização cromofóbica e eurocêntrica. Compete a Prometeu roubar o fogo a Zeus e contaminar a pureza desta civilização, expurgada de outras culturas classificadas como primitivas ou inferiores. A entrada em cena de David, no planeta-paraíso que a tripulação pretende colonizar, levanta o véu a um outro filme que inteligentemente é escondido na campanha de promoção, antes de mais, vocacionada para conquistar o público jovem que não conhece a montagem paralela entre ambientes assépticos e viscosos, e os fãs mais velhos que notaram a sua ausência em Prometheus. Depois do primeiro contacto, usando níveis invulgares de gore, da tripulação com o agente patogénico que se aloja no corpo humano para redefinir o seu ADN, dando lugar ao nascimento das criaturas alienígenas, David conduz os sobreviventes para um abrigo onde assomam os ciprestes de Die Toteninsel. Trata-se do rochedo em que David estabeleceu o seu laboratório, com um único acesso através de um cemitério de figuras petrificadas. Como Caronte, David transporta os mortos na sua barca pelas águas dos rios Estige e Aqueronte, que separam o reino dos vivos e dos mortos, o paraíso do inferno.
Tão inteligente que obrigou a um downgrade nas gerações seguintes, de onde provém Walter, igualmente interpretado por Michael Fassbender, o andróide ao serviço da tripulação, David usa o agente patogénico simultaneamente como instrumento de criação e de morte. Não aspira à condição de homem, mas de um Deus vingador por lhe ter sido negada a capacidade de criação. Como em Island of Lost Souls (A Ilha das Almas Selvagens, 1932) de Erle C. Kenton, outra ilha da morte formada pela intersecção de dois penhascos, a que se poderiam juntar King Kong (1933) de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack e Isle of the Dead (A Ilha dos Mortos, 1945) de Mark Robson, o acesso ao laboratório é feito através de uma gruta que simultaneamente funciona como vulva e falo, dependo do ponto de vista que tomemos, interior ou exterior. Também Dr. Moreau faz visitas guiadas que mostram o resultado das pesquisas científicas que conduz, questionando: “do you know what it means to feel like God?” – mesmo que daí resultem aberrantes criaturas irremediavelmente incontroláveis.
Composto por insinuações de indefinição dos papéis sexuais estabelecidos, Island of Lost Souls é um filme pré-Código Hays e, possivelmente, uma das razões porque os produtores de Hollywood se uniram para pôr termo à liberalidade que vivia o cinema durante a década de 1920. Protagonizado por Charles Laughton, no papel de cientista obcecado com experiências de cruzamento entre animais, são sugestivos os olhares e as palavras que lança a Richard Arlen, enquanto observa atentamente os passos para o acasalamento com a sua única criação feminina, a mulher pantera. Prolongando as discussões dos anteriores capítulos, em torno de androginia e ambiguidade sexual, tanto da criatura alienígena como das personagens humanas, em Alien: Covenant, a exposição ao agente patogénico assume a forma de cópula de que resultam partos a partir de estranhas partes do corpo (das costas até à boca), como outras formas de organização familiar entre os colonos são sugeridas por casais formados por elementos do mesmo sexo. Uma longa cena protagonizada por David e pelo irmão Walter sugere explícitos contornos de iniciação homoerótica. Depois de um beijo nos lábios, frente a frente, David ensina Walter a tocar flauta, colocando-lhe na boca o instrumento para soprar. Primeiro, os dedos de David movimentam-se delicadamente pelo orifícios. Depois, são os dedos de David que ajudam os de Walter no movimento. Finalmente, Walter sopra e movimenta sozinho os dedos. Outros tempos, outras vontades, outras formas de representação da sexualidade.