Design for Living (Uma Mulher para Dois, 1933) acrescenta-se muito bem à filmografia de Lubitsch, já em Hollywood com a Paramount a produzi-lo, com particularidades de génio no que diz respeito ao tema (a escaldar, e já lá iremos), e uma fabulosa coreografia de corpos, cheios de malícia e trocas verbais.
Lubitsch é grande, tão clássico e tão moderno detentor de um estilo único, exclusivo da tal marca muito sua revestida de uma curiosa intemporalidade. Sobejamente falada é a dimensão do seu humor subtil, sofisticado, bem engendrado entre diálogos, representação e mise en scène. O denominado “Lubitsch touch” fica como a etiqueta que se lhe colou até hoje, onde cabe o requinte de uma comédia inventiva que viveu em pleno os anos 20, 30 e 40, acabando por atravessar o tempo distinta e alegremente até hoje. O berlinense Ernst Lubitsch (1892-1947) teve uma bela carreira nos EUA, para onde emigrou em 1923, ao aceder a um convite de Mary Pickford e da United Artists, rumará para Hollywood onde acaba por ficar conhecido como o “Griffith europeu”, por uma enunciada marca, já bem sua, que vai imprimindo às comédias românticas, dramas históricos, operetas e musicais. É certo que já contava com uma vasta experiência de teatro, foi actor na companhia de Max Reinhardt, o que virá contaminar o seu cinema, com uma mão bem fadada para a mise en scène, e uma reconhecida fisicalidade posta em movimento, bem extraída aos actores. Transita agilmente do mudo para o sonoro e faz da palavra um bom objecto de troca que coabita na imagem e age dinâmica e inteligentemente na representação.
Design for Living é desde logo um título que propõe um jogo curioso de palavras que funciona bem no original, ligando-se, por um lado, à profissão da protagonista feminina, Gilda Farrell, interpretada pela actriz Miriam Hopkins, desenhadora publicitária, e apelando igualmente a uma forma, uma estética, a um estilo de vida, que é na verdade o que todas as personagens procuram nesta bela aventura a três. Em português tem uma tradução mais simplificada que não se presta a esta troca de sentidos, ficando com um enunciado mais reduzido: Uma mulher para dois. O núcleo principal conta ainda com os dois protagonistas masculinos: George Curtis, na pele de Gary Cooper, e Tom Chambers, interpretado pelo actor Fredric March.
O filme é livremente inspirado numa peça de Noël Coward, com o mesmo nome, em cena na Broadway, com a qual Lubitsch, e o argumentista de renome solicitado para a adaptação, Ben Hecht, foram muito pouco fiéis. É aliás conhecida a dificuldade de adaptação tendo em conta o temor da recente entrada da Comissão Hays, o filme ainda está na fronteira da aplicação da censura, em acção mais directa em 1934, sendo considerado pré-código. A comédia romântica está em alta nos anos 30 com Lubitsch e outros cineastas, como Cukor, McCarey ou Capra, como género bem característico do momento que vai explorando as intrigas mundanas, os casais que se formam ou se desfazem, os amores e desamores, adultérios, confronto entre sexos opostos, a denominada ‘’batalha dos sexos”, tudo recheado de diálogos cheios de brilhantismo e muito espírito. Era ainda um estilo típico de evasão, muito importante para a época em que se vivia, permitindo esquecer as angústias sociais e a terrível crise económica. One Hour with You (Uma Hora Contigo, 1932), e Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova, 1932), imediatamente anteriores a Design for Living, têm um apimentado temático já muito bem lançado e impertinente. Em One Hour with You, temos um casal casado que gosta de ir para o jardim namorar às escondidas, a acrescentar a sedução cerrada da melhor amiga da mulher do casal ao marido dela, tudo isto com a elegante malandrice que Lubitsch sabe tão bem manejar. Diz-se a partir daqui ter-se consolidada o seu imparável “touch”. Um bom caminho traçado para chegar a Design for Living que surge como um objecto atraente e provocador, bastante assumido na sua intenção libertária: uma mulher assume a sua atracção por dois homens e na incapacidade de escolher um, o melhor é ficar com os dois. Equação simples que vai dar pano para mangas e dinamizar uma triangulação soberba, bem concentrada nas personagens que se entregam com o corpo e a alma à aventura de uma história que as leva inteiras à cumplicidade de um desejo comum a partilhar.
O arranque do filme é incrível lançando-o fantasticamente na velocidade certa no interior de um comboio, espaço de trânsito e lugar fechado que constrói uma intimidade ditada pelo acaso que junta os três protagonistas. De caminho para Paris a distância faz-se com os dois homens abandonados ao sono, seguidos pela mulher, que num primeiro tempo ainda os perscruta como ‘’material’’ interessante para traçar a lápis. Ficam no vagão como belos adormecidos no torpor de um desejo latente que vai emergindo naquela forma inconsciente em que o corpo se vai movendo sem comando. E Lubitsch lá está atento a filmar este desejo, fragmentado o corpo, com mãos e pés a aproximarem-se, a tocarem-se, como um manual de instinto que progride e se instala promissor, logo ali nos inícios. Parece funcionar como presságio eloquente de uma fatalidade imperiosa, muito desejosa, que surge primariamente possuída por uma força natural. A ausência da palavra vem sublinhar mais a intensidade dos gestos e concentrar esta intimidade dormente de suspiros e bocejos.
Depois lá falarão todos, lá se picarão animadamente, eles contra a representação das suas figuras caricaturadas por ela, ou manifestando a desconfiança do desenho de um Napoleão em ceroulas publicitárias. A viagem une-os, sexos confundidos, e a cumplicidade circula abundantemente pelo trio. Numa paragem caminham pelo cais para desentorpecer as pernas e lembramo-nos imediatamente do Jules e Jim (1962) de Truffaut que parece ter visto Design for Living inúmeras vezes até chegar ao seu filme.
George é pintor e Tom dramaturgo, ambos artistas sem reconhecimento e sem dinheiro vivem numa chambre de bonne, num 5.º andar, em Paris. Muito típica e cliché a presença da capital europeia em voga (Paris vai aparecendo em muitos filmes de Lubitsch), passagem obrigatória dos artistas que não escapa neste décor sem se perder nele, pois interessa muito mais as personagens. O que aconteceu no comboio, a atracção dos três não se perde em Paris e vai ser preciso tomar as rédeas da desmultiplicação da conduta de Gilda, ora nos braços de George, ora nos de Tom. Mete-se também ao barulho o endinheirado amigo publicitário da rapariga, Max Plunkett (com o actor, Edward Everett Horton), a querer controlar os apaixonados. O humor atravessa os diálogos e máximas irresistíveis engrenam a narrativa e alimentam o espírito sagaz dos diálogos. Quando Tom estimula Max (em visita ao dramaturgo para proteger a sua amiga) à comunicação espontânea lança com desenvoltura: “A delicadeza, como dizem os filósofos, é a casca de banana sob os pés da verdade”; Max encontrará noutra máxima a melhor imagem para defender a rapariga dos “dois rufias pseudo-artistas” (como lhes chama): “A imoralidade pode ser divertida mas não substitui a 100% a virtude e três refeições por dia”. Esta frase será imediatamente aproveitada por Tom como fala para a peça teatral que tem em mãos e vai circular pelo filme.
Um encontro marcado no 5.º piso dos rapazes vai pô-los a discutir o difícil caso que leva Gilda ao desespero, e a atira para a cama numa bonita mise en scène em que confusão e desejo se juntam e se projectam no dilema vivido. Lubitsch vai usando a cama várias vezes servindo-se desta figura do décor, bem dramática no sentido teatral, como forma sugestiva para colocar as personagens em abandono, confusão ou prazer. Um clima erotizado paira no espaço, não unicamente pela existência simbólica da cama, mas pelo movimento das personagens e pela tal fisicalidade posta em acção, estetizada, de alguma forma, com uma certa carga sexual implícita.
Vai ser preciso fazer uma análise muito séria à situação, pôr a cabeça a pensar, como dirá Gilda: “Agora vamos analisar isto de todos os ângulos, com muita calma como se fosse um armistício.” O cessar fogo anuncia-se com um arranjo proposto, por ela, segundo “um acordo de cavalheiros” (gentlemen’s agreement), em que as condições dizem que não haverá sexo e fica-lhe a ela reservado o papel de “mãe das artes”, impulsionadora da carreira deles. Tudo parece correr bem até ao dia em que o acordo será quebrado, e mais tarde virá de novo a tentação espreitar permitindo ao desejo interpor-se. Nada a fazer, Gilda vai ter ainda uma terceira hipótese como solução: casar com Max Plunkett. Por entre as elipses características de Lubitsch, as portas fecham-se e abrem-se, ocultam-se alguns pormenores de forma a melhor pontuar outros, sugerir, imaginar, ou sub-textualizar.
Como dizia Truffaut: “no gruyère Lubitsch, cada buraco é genial”. Envergar um smoking ao pequeno almoço diz-nos que houve história – sexo à noite. Uma cama numa vitrine e a medição da largura dos corpos enunciam um casamento que não é preciso ver. O bulício por trás de portas constroem imagens de pessoas e confusão. Lubitsch tem gosto em ocultar para melhor activar o imaginário. São as impressivas imagens-situação deleuzianas em acção com os seus indícios reveladores, que se tornam o suco da comédia traçada pela mão habilidosa do mestre, um verdadeiro príncipe da comédia moderna. As imagens-situação para Deleuze partem de uma acção, de um comportamento, para uma situação parcialmente desvendada, em que o signo pelo qual as reconhecemos é o indício (Deleuze, 1983). Transgressão e invenção, fantasia e audácia, Lubitsch propõe tudo com um delicioso arrojo, onde prima a vitória da vontade mais crua (e daí mais pura), mais simples, e finalmente mais honesta: vamos seguir a liberdade da vontade. Dar à mulher esta ousadia, na personagem de Gilda, afirmar a sua posição no feminino, comportamento inabitual, um verdadeiro golpe de mestre para a época que mostra uma gigante visão sem preconceito. Aqui a mulher tem voz própria e assume-se inteira e autonomamente sem deixar que nada a limite e argumente, com sexismos à parte. Lubitsch foi admirado pela crítica e pelo público, e também pelos colegas de profissão, de Wilder a Hitchcock ou Renoir, foram muitos a reconhecê-lo.
Lubitsch é viciante e a partir do momento em que se entra no seu universo delirantemente sofisticado, cada filme lança uma gargalhada, um sorriso, uma reflexão que pode viver da provocação, mas também vive de um trabalho intenso à volta das pessoas, das classes sociais, das relações e dos desejos mais profundos, deitando fora os sentimentalismos baratos para ficar o essencial. Interessa o prazer, como interessa não trair a vontade e o guia pode ser o desejo. Apetece ver todos os seus filmes, deliciosamente ligeiros e animadamente contundentes. Design for Living vive bem destas coisas todas, vive de uma possibilidade de ménage à trois, picante, surpreendentemente provocador, inesperado na resolução e ainda nada moralizador. Vale mesmo a pena ver ou rever Design for Living. Lubitsch sempre!
Design for Living passa amanhã (quarta-feira), às 19h00, no Espaço Nimas, em cópia 35mm. A seguir à projecção haverá uma conversa com a programadora da Cinemateca Portuguesa Maria João Madeira e a investigadora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto Cláudia Coimbra. A moderar estará o walshiano Luís Mendonça.