Crimes sans fer ni poison.
De Sade
A função do crítico (…) consiste em prolongar maximamente possível na inteligência e sensibilidade dos que o lêem o choque da obra de arte.
André Bazin
O que é um filme cruel? Para mim, é um filme que excelsamente “dá a ver”. Mas afinal o que seria excelsamente ver? Antes de me debruçar sobre Elephant (1989), excelso dentre os excelsos, eu enumero alguns paradigmas de experiment in cruelty no cinema (sim, pois do que falamos aqui senão de experimentos científicos?): Le vampire (1945) de Painlevé, Las Hurdes (1933) de Luis Buñuel, Les maïtres fous (1955) de Jean Rouch, Le sang des bêtes (1949) de Georges Franju, Tarahumaras 78 (1979) de Raymonde Carasco, Con uñas y dientes (1979) de Paulino Viota, Faustrecht der Freiheit (O Direito do Mais Forte à Liberdade, 1975) de Fassbinder, Anna (1975) de Alberto Grifi, Nuit et brouillard (Noite e Nevoeiro, 1956) de Resnais, Ordet (A Palavra, 1955) de Dreyer, Le rideau cramoisi (1953) de Alexandre Astruc… vocês viram que já não se trata de opor documentário à ficção, ou mesmo documento feérico surrealista (Le sang des bêtes) a épico-etnográfico (Carasco). Não: a crueldade, como pode se depreender dos filmes escolhidos, é um laboratório de presenças, e portanto se prova como um affaire de evidência lapidar, de industrioso axioma, de causalidade soberana e de teleologia quod erat: deduzo, logo existo. Talvez seja um anti-expressionismo a nota estilística comum para estes filmes que, da soberania de um olhar escrutinador, empreendem (também) uma operação cognitiva sobre o ser.
Os diretores excelsamente cruéis são aqueles que refinam o olhar entomológico que é o gênio natural do cinema segundo um grau superior de Método (sim, Sade, como Kant são nossos maîtres à penser ancestrais), e o destinam não mais ao naturalismo, arte já um tanto cansativa da Bild tanatoscópica, do estudo mortificante do tipo. Não: a Crueldade é uma arte tardia, que captura o ente sem paralisar seus movimentos, mesura-lhe o escopo de ação sem enrijecê-lo sob a mediação como o fixa sob a categoria sem a pressão adstringente do conceito; então, os nossos monstros refinados esperaram todo este tempo pelo cinema para enfim efetivarem o experimento supremo, ens trancendus onde todos os outros se esclarecem exemplarmente? Sim, pois foi nesta arte que o “experimento de campo” que a ciência sempre se colocou como o telos indispensável de sua cooptação carnívora do real enfim conheceu a grandeur nature do mundo, e a destinou a uma demiurgia total. Elephant de Alan Clarke é talvez o ens do ens, como o caso onde os outros se iluminam, pois não é aqui que a vivissecação do real que a Ratio totalitária almeja enfim se realiza num shot fatal, que é também uma incisão de bisturi? Sim, um experiment mori.
Revejam com atenção estes travellings intermináveis que no contexto do cinema de ação foram lancinantes, e aqui antes esposam esta sobranceria de quem se debruça sobre um universo de coleópteros e, lupa à mão, prepara-se para renovar a descarga elétrica que há de lhes provar a resistência; este découpage “give and take” que, da distância averiguadora, recua para um plano médio onde se confere o cadáver; reparem sobretudo que esta distância não é mais a de Deus, como na retórica sub species clássica, nem mesmo se aventura diabolicamente “no mundo”, como no caso dos Filhos modernos, mas antes se identifica ao inconsciente maquinal da steadycam expedita: sim, Clarke quer que experimentemos em campo o ponto de vista psicopático da máquina; e o que mais seria o olhar científico senão a tradução valorativa desta gélida perspectiva? Esta distância infinita, mas que o steadycam torna plástica às anfractuosidades da pulsão mortífera, é antes de tudo um índice de que o universo de res agora é um cubo laboratorial de cultura; e que os médiuns “plano sequência e locação” de que, segundo Bazin, ontem se serviu o cinema moderno para centuplicar a incandescência da presença e exaltar a imanência do real, hoje, um tanto perversamente, o submetem ao cálculo de uma razão que se apoderou da pulsão de morte e instrumentalizou seus penchants de conversão do ente em premissa de uma cadeia dedutiva, de que o mundo será o silogismo apodícto; sim, um experiment mori.
Elephant é uma Lição não apenas de Método, como de recepção; ele é anti-anedótico, anti-novelesco e anti-pitoresco, estas três pragas de origem televisiva que infectaram o cinema de hoje.
É claro que o terrorismo, à época ainda “aquele elefante na sala que insistimos em não ver”, é o subtexto unheimlich de tudo; sim, este documentário é antes de tudo uma aplicação “em campo” da tese da guerra tópica, cujo propósito cirúrgico consiste em retirar o tumor cancerígeno (a Inglaterra!) sem liquidar o paciente. Mas sob o casual aleatório dos crimes que a câmera diligente inventaria, podemos inferir que há a causalidade eminente não apenas das raisons d’état da minoria, mas da causalidade trágica de uma tese que enfim se revela determinante: um apocalipse. Sim: o mundo está acabando, como esta Londres polivalente em matéria de décors e classes nos revela; não se trata de delírio interpretativo, não, mas de coerência de todo crítico de arte de saber que são a matéria e a forma a plataforma do sentido na arte. Afinal, esta vista semi-aérea da câmera, este recuo abstrato da profundidade de campo, este passo autômato dos assassinos são significantes de que senão que o mundo é diegeticamente um stand de tiro, como transcendentalmente um tubo experimental?
A “tese” de Elephant – e todo filme de gênio experiment in cruelty é antes de tudo um filme de tese – antes evoca-nos o sistema das bonecas russas: uma tese política (o terrorismo como guerra tópica, que o shot súbito mimetiza) encapsulada pela visée metafísica do apocalipse. A psicopatia, de que a steadycam implacavelmente precisa é o medium cirúrgico, é esta relação predatória com o ser que se modula de acordo com suas necessidades heurísticas: ora romanceiro edipiano freudiano, ora invisibilidade fantasmática do objeto a em Lacan, ela nos permite trafegar do tópico libidinoso do sonho de Dora ao megalômano demiúrgico do presidente Schreber, como da tese política à escatológica em Elephant, côncavo e convexo de uma mesma aspiração niilista que este cristal teoremático, neutro e pontiagudo, experimenta exemplarmente.
A tese o mundo está acabando é figurada da forma mais acabada possível por esta fatalista malha cerrada, que o plano sequência sutura inapelavelmente, através da qual se converte todo décor citadino em abatedouro: o jogo de futebol “casual” de fim de tarde, a parada no posto de gasolina, a conveniência da loja à mão, tudo deve ser subsumido à Ideia apocalíptica, de que o terrorismo é a versão, digamos, topicamente histórica; o bazinismo é pervertido aqui segundo um diapasão que certamente aprazaria ao Bazin do texto elogioso sobre “teatro filmado”, porque não é exatamente o realismo que é presentificado na tela pelos meios de ampliação dinâmica do espaço-tempo, mas a Ideia de que o cinema, arte do campo, possui também a profundeza inacreditável de inferir, da violência hic et nunc (epocal, aí) uma escatológica e, apesar da limitação analógica da imagem, pensar excelentemente segundo os arcanos do conceito. E ainda e sempre da psicopatia: o que quer o conceito, esta máquina vivissecante, senão submeter a presença vária e acidentada ao sistema Uno e eterno? Clarke nos mimetiza a sua operação mortificante aqui, e a ironia genial é que o faça segundo “o plano sequência e locação” que ontem foi dom epifânico, e hoje é conteúdo categorial.
Elephant é uma Lição não apenas de Método, como de recepção; ele é anti-anedótico, anti-novelesco e anti-pitoresco, estas três pragas de origem televisiva que infectaram o cinema de hoje; é um banho de eugenia cientificista, radicalmente necessário para renovar um olhar pervertido pela auto-complacência estéril e pela obscenidade da rubrica “para amigos”. Mas em Clarke não foi sempre assim. Em suas fastidiosas sismografias sociológicas sobre instituições de recalque, que o “approach experimental” de uma arte materialista permitia identificar como containeres de barbárie, Clarke na minha leitura nunca “acertou a mão”; era tudo muito calculado natimorto para, sob o aparente impromptu de um estupro, uma revolta incendiária, desencadear a revelação da tese.
Aqui, tese há, e inclusive de proporções metafísicas, mas o acesso a ela se faz segundo a grandeza epistemológica deste olhar cristalino que, de Las Hurdes a The Act of Seeing with One’s Own Eyes (1971), autopsiou a nossa condição: sim, uma comunidade de insetos, um cosmo de coleópteros, mas devedores de sentido; daí a necessidade do Método, de que este filme maniacamente demonstrativo é sem dúvida devedor. O Método é indispensável numa ultra-entomologia do bicho simbólico pois, como naquela Física em que o observador é necessariamente afetado pelo objeto “coletado”, um cineasta é também um homem, embora possa tudo ver segundo a distância de Deus. É neste estranho mas conseqüente final, em que Clarke nos oferece este assassino que no último minuto consente em ser assassinado, que se afere que a ubiqüidade tentacular do Método, em um experimento de crueldade radical, não deve poupar a ninguém.
2 Comentários
No meio de tanta referência e de tanta masturbação, um erro de palmatória : unheimlich e não unheimlish.
Caro Vitor, obrigado pela correcção.