Why are there no black people in horror movies?
Because when the ominous voice says, “Get out!,” we do!
Estreado no Festival de Sundance, Get Out (Foge, 2017) de Jordan Peele, foi distribuído pela major Universal no mercado norte-americano, conquistando um sucesso estrondoso que, nas primeiras semanas de exibição, bateu um impressionante número de recordes, em que se destacam: o primeiro realizador negro a ultrapassar a barreira da receita de cem milhões de dólares com um primeiro filme; e o filme produzido pela Blumhouse que teve o maior volume de receita. Fundada por Jason Blum, a Blumhouse Productions é um caso sério no sector do cinema de terror. Utiliza um modelo de produção que parte de micro-orçamentos, sem o recurso a grandes estrelas, para alcançar invejáveis sucessos de bilheteira – produzindo independentemente os filmes e, posteriormente, utilizando os tradicionais canais de distribuição do sistema de estúdios. James Wan, Mike Flanagan, James DeMonaco, M. Night Shyamalan, Scott Derrickson e Ti West são alguns dos nomes que colaboram regularmente com a produtora. O resultado são hiper-fenómenos populares, como a série Paranormal Activity (Actividade Paranormal, 2007 – ) ou obras-primas do cinema de terror contemporâneo, como The Purge: Anarchy (A Purga: Anarquia, 2014) de James DeMonaco ou Insidious: Chapter 2 (Insidious: Capítulo 2, 2013) de James Wan. Para aferir o nível de sucesso comercial e crítico, da equipa de Blum, atente-se aos primeiros dados de 2017: dois títulos da produtora, Split (Fragmentado, 2017) de M. Night Shyamalan e Get Out, obtiveram receitas por filme que ultrapassam os duzentos milhões de dólares, o que equivale a multiplicar o seu orçamento por cerca de trinta vezes.
Apesar de Get Out ser a primeira obra de Jordan Peele, o nome do realizador não é estranho ao grande público norte-americano, tendo participado como actor em MADtv (1995 – 2016) e Key & Peele (2012 – 2015), populares e premiadas séries televisivas de comédia. Depois de as séries se estrearem, é no YouTube que exibem a estima pública, onde abundam vídeos com sketches de ambas, com números impressivos de visionamento. Jordan Peele é negro, descendente de pai negro e mãe branca, e é casado com uma mulher branca, de origem italiana e judia. O trabalho de composição de Jordan Peele reflecte a complexidade cultural do meio que o rodeia, contrariando a visão segregacionista fomentada pelo actual poder político norte-americano. Cada episódio de Key & Peele, série exibida pela Comedy Central e conduzida em conjunto com Keegan-Michael Key, é composto por sketches de cerca de quatro minutos em que os dois actores interpretam um conjunto de personagens, maioritariamente regulares, inspiradas em figuras reais ou fictícias, que corporizam reconhecíveis estereótipos e imagens da cultura popular. O cabelo e a pele são elementos recriados que marcam grosseiramente a caracterização das personagens, através do uso de perucas e produtos para correcção de cor. Se pensarmos como, juntamente com o vestuário, estes são elementos sensíveis e tomados em conta em polémicas relacionadas com a apropriação cultural, percebemos até que ponto esta fixação pode colocar, em combustão, o centro nevrálgico da sociedade norte-americana.
No entanto, a caracterização adquire nuances com outro grau de subtileza. Tomemos como exemplo a figura de Barack Obama, interpretada por Jordan Peele. Embora o actor seja submetido a um tratamento de rectificação do cabelo e da pele, a evidente não parecença física entre ambos torna esses elementos gritantemente artificiais, repousando no inexpressivo tom de voz e no controlado movimento corporal, as partes a que reconhecemos uma maior semelhança com o ex-Presidente. Assim, o resultado é mais complexo do que poderíamos adivinhar, compondo uma figura anacrónica que exibe excessivamente a artificialidade da composição, mas que, ainda assim, nos leva a acreditar na essência da conexão com Barack Obama. Para reforçar este aspecto, em alguns sketches, Obama é acompanhado por Luther, o seu irascível intérprete, “anger translator”, através do qual o antigo Presidente exprime o verdadeiro significado, politicamente incorrecto, do seu discurso ponderado e conciliatório. Num dos sketches de Key & Peele, Barack Obama, ao ser apresentado aos colaboradores da Casa Branca, prescinde de Luther como muleta, para se exprimir com base em estereótipos raciais que variam de acordo com a cor da pele do interlocutor.
Numa cena fulcral de Get Out, acontece algo de semelhante. Aquando da visita à família da sua namorada branca (Allison Williams), numa festa de recepção, Chris (Daniel Kaluuya) apercebe-se da presença de um único convidado negro a quem se dirige, procurando refúgio face à impositiva whiteness que o cerca. Quando o tenta cumprimentar com um codificado toque de mãos, não é correspondido, pelo que reitera as suspeitas de que algo de estranho se passa com todos os indivíduos negros, incluindo os empregados. Como dizíamos, a cena é fulcral, não só porque cria um novo rumo narrativo, mas também porque é incerto até que ponto Jordan Peele leva a sério as considerações da sua personagem. O amigo Rod (LilRel Howery), que ocuparia o papel de Luther, o “anger translator”, vocifera palavras e emprega gestos que pertenceriam a Chris, mas que lhe estão interditos enquanto aspirar a ser membro da comunidade branca a que pertence a namorada. Ao contrário das séries cómicas de Jordan Peele, não há laugh track que ajude a clarificar qual o caminho por onde o realizador nos quer conduzir, se pela comédia ou pelo terror, assim exprimindo a maior virtude de Get Out. Ou seja, filmar subtilmente a comédia como se fosse terror e o seu contrário – o terror como se fosse comédia. Como se posiciona o espectador? Entre uma certa ambivalência que é a matriz do melhor cinema de terror.
Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968), de George A. Romero, é um dos grandes filmes do cinema de terror moderno, partindo dos tumultos sociais decorrentes da Guerra do Vietname e do movimento hippie para construir uma vigorosa alegoria política. Contrariando a conhecida anedota sobre a presença de negros no cinema de terror, ela própria susceptível de interpretações racistas, em Night of the Living Dead, a expectável “final girl” dá lugar a um homem negro que acaba por ser confundido com um zombie, sendo abatido pelas milícias populares. A brutalidade da sequência documental que preenche os créditos finais, com o corpo negro empilhado sobre os zombies, remetendo para imagens de outros holocaustos, pode constar em qualquer manual de cinema político. Numa sociedade marcadamente racista – Martin Luther King seria assassinado no ano de produção do filme – assim era conduzido o activismo político, apontando directamente o dedo, tocando na ferida sangrante.
Get Out é uma resposta coerente à deriva esquizofrénica do mundo presente, em que as “fake news” e os “bad hombres” assombram uma realidade alucinada que se apelida de multirracial, decretando a plenitude de direitos para todos, mas em que alguns continuam a contar mais que outros. A “solução final” de Get Out não é o secreto desejo de extermínio em massa, nem a mais moderada separação sistemática imposta através de decretos legais ou milícias populares. O que temos é uma segregação refinada por meio de um procedimento de indução hipnótica em que o “outro”, em resposta à sugestão, age de acordo com a imagem que dele se espera, deste modo controlando a imprevisibilidade do seu comportamento. Por mais que uma vez, é repetido que o pai da família Armitage votaria pela terceira vez em Barack Obama. Será que o primeiro “afro-americano” a ocupar o cargo de Presidente dos Estados Unidos é resultado do programa de sono hipnótico desenvolvido pela família Armitage?