Agora que decorre, nas bandas francesas, o canónico evento de Cannes, aproveito para, da banda de cá, falar de uma das características do certame que cada vez mais me arrelia. Aquém das passadeiras encarnadas, das flashadas fotográficas, da competição sempre feita em modo automático e autofágico (em que nenhuma casa de apostas ganha um cêntimo que seja, dada a previsibilidade da programação) há o pequeno gueto das curtas-metragens – competição vencida, faz uns anos, pelo Arena (2009) de João Salaviza. Nesta secção do festival as regras são estritas, entre elas, nenhum filme pode exceder os quinze minutos. Fazendo um levantamento rápido e mais ou menos empírico das fornadas dos últimos anos percebe-se que há já uma fórmula para uma curta de competição em Cannes (fórmula que o filme de Salaviza integra perfeitamente), a saber: trama centrada em personagens muito jovens (crianças e adolescentes, na maioria), normalmente dois rapazes, o filme abre quase sempre com um episódio de violência que não só antecipa o desfecho como espoleta o arco narrativo, a história inscreve-se sempre num contexto nacional ou regional quase sempre com pendor exótico, são também quase sempre filmados numa sobriedade de planos lentos e longos mas pouco vistosos e, por fim, o desfecho retoma a normalidade, mas sempre com o protagonista mais próximo da idade adulta (isto é, a violência serviu como lição), mas claro, com um final aberto semi-elíptico a piscar o olho à longa-metragem.
Esta formatação vem transformando um certo cinema de autor num objecto enlatado que ganha características de género cinematográfico – filme de festival — e os jovens realizadores (em Portugal esta tendência é mais ou menos evidente num significativo número de filmes de escola) cedo percebem que o modelo é funcional e como tal a mimesis impõe-se como ferramenta vitoriosa – note-se que a competição de curtas de festivais de classe A como Berlim ou Veneza são muito mais diversificadas, assim como dos eventos paralelos em Cannes, como a Quinzena dos Realizadores e a Semana da Crítica.
Faço esta análise para referir finalmente Hvalfjörður (Whale Valley, 2013), uma das curtas que Guðmundur Arnar Guðmundsson realizou antes de se lançar no filme de fundo Hjartasteinn (Corações de Pedra, 2016), que agora se estreia nas salas portuguesas. Whale Valley competiu na referida secção e foi aliás galardoado com uma menção especial do júri. É um exemplo acabado da curta típica (ou arquetípica) daquela competição: dois irmãos, um pré-adolescente, o outro adolescente depressivo, vivem numa gélida e deslumbrante paisagem nórdica. Tudo começa com uma tentativa de suicídio por parte do mais velho e do modo como o mais novo lida com o segredo, terminando numa conciliação fraterna que sana as referidas tendência auto-destrutivas. O filme cumpre rigorosamente (ao fotograma) os quinze minutos de duração e só o refiro para promover o argumento de que a formatação da curta se prolonga para este Corações de Pedra.
Os lugares-comuns acumulam-se em Hjartasteinn, como se Guðmundsson mais do que se mostrar como bom aluno, se orgulhasse de cumprir com (in)distinção as indicações do professor.
O islandês Guðmundur Arnar Guðmundsson surge então, a partir deste dois filmes, como um realizador que cumpre, com notas obsessivas, as formatações do moderno cinema de autor, em particular o seu sub-género delico-doce, o coming of age (e mais ainda o sub-sub-género, coming of age LGBT). Isto é, já se viu este filme dezenas de vezes nos últimos anos em múltiplos festivais de cinema, e não sendo propriamente um mau exemplo (muito pelo contrário), há nele um automatismo narrativo e estético que, antes de qualquer outra coisa, aborrece. Os lugares comuns da mãe-solteira, do amigo reservado, do interesse amoroso, do bully da aldeia, do pai austero, dos pequenos gestos de vandalismo e da descoberta sexual acumulam-se em Corações de Pedra, como se Guðmundsson mais do que se mostrar como bom aluno, se orgulhasse em cumprir com (in)distinção as indicações do professor.
Ainda assim há que olhar além deste esquema de leitura algo constrito (como o próprio filme…) e encontrar o que há de especificamente inteligente nele. Dois aspectos (que se comunicam) parecem-me de especial relevo: o primeiro prende-se com os modos como o desenlace violento se prenuncia no tratamento dos animais; o segundo com o retrato de uma pequena comunidade rural isolada e do peso desta nos modos de vida individuais. No que diz respeito ao primeiro ponto, o filme abre com uma sequência de pesca onde quatro rapazes pescam à linha vários peixes que logo tratam de esparramar contra postes de ferro ou sob as solas dos sapatos e pouco depois temos ovelhas ensanguentadas abatidas a tiro (repetindo o tema da curta onde o gore vinha do esquartejamento de uma baleia que dera à costa). Quanto ao segundo ponto, há que salientar que além da crítica à relação entre os dois rapazes (de novo um mais infantil e outro mais adulto, na fronteira entre a amizade e o amoroso), também as relações da mãe com outros homens são criticadas, assim como a subentendida homossexualidade do pai, ou a sensibilidade poética de uma das irmãs – tudo o que é diferente, ou não-normativo, é alvo de destaque negativo pelos olhares e pelas conversas daquela comunidade piscatória perdida numa das múltiplas ilhas da Islândia.
Estes dois aspectos são assim representativos de uma mesma ideia maior no filme (e provavelmente maior na concepção de cinema de Guðmundsson), a qualidade dúplice da Natureza: por um lado as paisagens deslumbrantes da estepe islandesa parecem conferir àquelas gentes uma qualidade poética e uma calma purificante (que serve como elemento exótico, muito comerciável), por outro, é dela (ou por ela) que surge o choque que é tanto físico – o sangue e as vísceras dos animais, a crueza do mar e a ameaçadora arriba – como social — as referidas formas de discriminação que surgem exactamente pelo isolamento que a Natureza impõe na povoação. É nesse vai-e-vem, algures entre as líricas espigas malickianas e o torture porn natural de Castaing-Taylor e Paravel, que Corações de Pedra se mostra mais dotado de individualidade (pena que a zombieficação narrativa e formal coloque tudo isso num torpor automático), mais ainda quando anuncia, subliminarmente, que é da mesma natureza/Natureza a dissemelhança e a semelhança que a estigmatiza: a eterna luta sado-masoquista entre o humanismo natural e a naturalidade da humanidade.