Quem já esteve por dentro da grande maquinaria que é a produção do IndieLisboa, sabe bem: quase ninguém se reduz apenas a uma função. Cada elemento desdobra-se em trabalhos, cuidando, com a mesma dedicação, do conteúdo da programação (revista, catálogo, site, etc.), da imagem do festival, da divulgação junto da imprensa, da organização das festas e de todos os outros eventos que envolvem ou complementam as sessões. Isto e muito mais. Todos e cada um dos responsáveis por este festival que inicia hoje a sua décima quarta edição são como um canivete suíço. A obra é feita à imagem do criador. Do programa do IndieLisboa emana a mesma energia proteiforme, faiscante e incansável que caracteriza os arquitectos do festival. Para o espectador comum, adormecido pelo dia-a-dia, embrutecido pelo panorama mediático, a escolha é uma coisa complicada. Há muita coisa, muita coisa diferente e, pressente-se, muita coisa boa, mas não sabemos o que fazer – a ignorância é uma puta e nós não somos canivetes suíços como o pessoal do Indie. A tarefa de “antever” requer alguns cuidados. Não me sinto muito diferente desse espectador que se sente tão entusiasmado quanto intimidado por um programa de cinema que aponta para muitos lados (nem sempre os lados indie convencionais), gritando cinema em cada página. Resta-me, então, não tanto recomendar o que ver, mas somente apontar para o que seria, para mim, uma boa colheita de cinema.
O destaque maior vai para os dois Heróis Independentes deste ano. Escolhas arrojadas, que envolvem algum risco dado o pouco conhecimento que o público português tem actualmente sobre as suas obras. Contudo, e por razões diferentes, tanto Jem Cohen como Paul Vecchiali são cineastas prontos a serem descobertos ou redescobertos. Cohen alterna documentários intimistas, em registo diarístico, que fez em contexto de flânerie pela cidade onde vive, Nova Iorque, ou de viagens que fez pelo mundo com retratos extraordinariamente intimistas de músicos com quem privou, como Patti Smith, Elliot Smith, Benjamin Smoke e os elementos da banda Fugazi. Jem Cohen realizou inúmeros videoclipes para outras bandas, mais celebremente, R.E.M., Sparklehorse, Godspeed You! Black Emperor e The Ex. Face a isto, talvez este ano a secção IndieMusic se tenha tornado desnecessária ao pé de tal Herói Independente. Num outro registo – será? -, Cohen filmou um dos melhores filmes que tive oportunidade de ver no IndieLisboa 2012: essa ficção dócil, gentil, sensível, que também é uma reflexão notável sobre os limites do museu e da vida, chamada Museum Hours (2012) – escrevi sobre o filme aqui.
Paul Vecchiali é um realizador, produtor e crítico de cinema francês. A sua filmografia é extensa, tão extensa que o IndieLisboa mostra nesta sua edição apenas uma amostra da sua obra. Contudo, estarão aqui – dizem-me – alguns dos seus títulos fundamentais, desde logo, Femmes, femmes (1974), um dos seus filmes mais aclamados que mereceu recentemente uma reposição e edição em DVD em França. Pasolini ficou tão impressionado com este retrato cruel sobre o ocaso de duas actrizes francesas, famosas starlets do cinema francês dos anos 30, que o apelidou “o maior filme do mundo”. Não se ficando por aqui, convidou as actrizes do filme de Vecchiali, Hélène Surgère e Sonia Saviange, a entrarem em Salò o le 120 giornate di Sodoma (Salò ou Os 120 Dias de Sodoma, 1975). Vecchiali conta ainda com um documentário bem fresco, na secção Director’s Cut, que tem tudo para ser o “extra ideal” para esta retrospectiva: Un, Parfois Deux… (2016) de Laurent Achard.
Começando pela produção nacional, motivo de orgulho para os programadores do festival, tenho de dizer que os meus olhos são puxados sobretudo para este título: Amor Amor (2017), a segunda longa-metragem de Jorge Cramez, dez anos depois de O Capacete Dourado (2007), obra que não me entusiasmou especialmente – gostei bem mais, por exemplo, da curta-metragem que o realizador estreou em sala, numa sessão colectiva com a chancela O Som e a Fúria, o encantatório Na Escola (2010). Amor Amor, aparentemente concentrado no tempo e no espaço, adapta um texto de Corneille e tem no elenco algumas das melhores actrizes do cinema português: Ana Moreira, Margarida Vila-Nova e Joana de Verona. É uma das obras mais bem referenciadas da competição nacional. Mas há mais coisas boas, começando desde logo pela sessão que abre o festival: Colo (2017) parece ser um ambicioso regresso à boa forma da realizadora Teresa Villaverde depois do falhado Cisne (2011). Retrato sobre a crise a partir do microcosmos familiar que me parece ser uma boa porta de entrada para esta edição do festival.
Sete anos depois do filme mais fundamental alguma vez realizado sobre a experiência da ditadura, 48 (2010), Susana de Sousa Dias assina Luz Obscura (2017), resultado de uma escavação sobre o arquivo fotográfico da PIDE que faz incidir a luz sobretudo sobre a população de crianças vítimas do poder discricionário da polícia política. Nas curtas-metragens, todas as atenções para Um Campo de Aviação (2017) de Joana Pimenta. A cineasta havia assinado em 2014 uma das melhores curtas-metragens em competição no IndieLisboa – As Figuras Gravadas na Faca com a Seiva da Bananeira (2014) acabou por se considerada a melhor curta-metragem portuguesa pelo júri. Escrevi sobre ela aqui.
Mantendo-me conservador quanto às minhas escolhas, desperta-me especial curiosidade a mais recente obra do casal de investigadores-cineastas Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, dupla que deu muito que falar em 2013 quando passou Leviathan (2012) no IndieLisboa – a propósito dessa passagem, fiz esta entrevista. Somniloquies (2017) é, como o seu filme precedente, um filme-experiência produzido “em laboratório”. O tema, desta feita, é insólito: a condição que faz certas pessoas falarem durante o sono. O caso de estudo é o do letrista Dion McGregor, cujos solilóquios nocturnos foram gravados e publicados.
Na secção Silvreste, saúdam-se desde logo os regressos de nomes familiares: Radu Jude, Jean-Gabriel Périot e Matías Piñeiro. O filme do romeno, Inimi cicatrizate (Scarred Hearts, 2016), é uma ficção baseada na novela autobiográfica do escritor romeno Max Blecher. Um romance passado num sanatório que tem os condimentos para ser uma história pungente sobre amor e doença. Radu Jude é o realizador do curioso Aferim! (2015) e do fabuloso Toata lumea din familia noastra (Everybody in Our Family, 2012), dois filmes que passaram pelo IndieLisboa. Jean-Gabriel Périot assina apenas a sua segunda longa-metragem, mas, desta feita, uma ficção ancorada na tragédia de Hiroxima, tema recorrente na sua extensa obra que privilegia o formato da curta-metragem. Alguns espectadores poderão conhecer já a primeira longa-metragem deste francês que foi alvo de uma retrospectiva no IndieLisboa 2016, o documentário Une jeuness allemande (2015), sobre o grupo terrorista Baader-Meinhof. Matías Piñeiro – sobre o qual escrevi aqui e a Sabrina D. Marques aqui e aqui – apresenta a sua quarta adaptação contemporânea de Shakespeare em Hermia & Helena (2016), desta feita, entre Buenos Aires e Nova Iorque. Não é um cineasta – ou um cinema – que me encha as medidas, mas percebe-se dos seus filmes anteriores que qualquer coisa maior pode estar a despontar.
Nas curtas-metragens da secção Silvestre, todas as atenções viram-se para Seguei/Sir Gay (2017), o mais recente ensaio de Mark Rappaport (que entrevistámos aqui) que promete fazer a Eisenstein o que o realizador já fez celebremente a Rock Hudson no famoso – e divertidíssimo – Rock Hudson’s Home Movies (1992): revelar na pele das imagens dos filmes uma homossexualidade reprimida. Rappaport conta ainda com outro ensaio audiovisual neste IndieLisboa, ponto alto na secção Director’s Cut, que se propõe cruzar Tati com Bresson: Tati vs. Bresson: The Gag (2016). Ainda no Director’s Cut está programado Young Mr. Lincoln por Eisenstein (2017), ensaio audiovisual de Guilherme Rodríguez que, com um sentido de humor que deve alguma coisa a Rappaport, cruza Eisenstein com John Ford, ou melhor, que converte num exercício de montagem hábil Ford em Eisenstein. Este filme foi produzido no âmbito do curso livre que ministrei com o realizador Luís Miguel Correia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, “O Ensaio Audiovisual e a Escrita sobre Cinema”, e que teve como parceiro o À pala de Walsh. A minha sugestão é, portanto, parcial. Não posso, ainda assim, deixar de a referir, sobretudo pelo feliz emparelhamento que produz com estes títulos que Rappaport traz ao Indie.
Ainda no âmbito de um cinema de ensaio, mas radicalmente distante das experiências de Rappaport, está o casal Katja Pratschke e Gusztáv Hámos. Os amantes de Chris Marker não vão querer perder este foco especial que o IndieLisboa dedica à obra destes dois realizadores. Tive já oportunidade de ver os filmes e recomendo, especialmente, a sessão com os primeiros filmes de Hámos – com fortes afinidades com o cinema de Harun Farocki, o que não é inteiramente de estranhar já que o realizador alemão foi seu professor. Recomendo ainda a sessão que inclui aquela que é a obra mais exemplar daquilo que os próprios definem como “fotofilme”: Fremdkörper (Transposed Bodies, 2002). Uma narrativa fantástica, contada só com stills, que mistura Marker e Truffaut com Mary Shelley para produzir uma reflexão confrontante sobre amor e biologia. Irresistível. Na secção Novíssimos, um filme português autobiográfico, reflexão punk hardcore sobre o trabalho operário, desafia o conceito de “fotofilme”: We All Die as a Work in Progress (2017) de Zoah Krieger. O meu destaque dado aqui é (de novo) suspeito, porque este foi um filme produzido também no âmbito do curso livre que dei com Luís Miguel Correia e que foi seleccionado para esta edição do Indie. Contudo, a pertinência desta proposta é total quando a colocamos ao lado dos ensaios concebidos pela dupla Pratschke e Hámos.
Por fim, destaco a sessão especialíssima com o filme maldito de Andrzej Żuławski Na srebrnym globie (On the Silver Globe, 1988), ficção científica “tarkovskiana” que é uma experiência estética assombrosa. Tive já oportunidade de ver este filme que nunca chegou a ser terminado, mas que, pelo que se pode hoje ver, teria sido a obra maior do cineasta polaco, desaparecido no ano passado. A sessão terá apresentação do investigador Daniel Bird, que já tinha estado cá no ano passado aquando do MOTELX para apresentar uma sessão e dar uma palestra sobre outro cineasta maldito, por sinal também polaco, Walerian Borowzyk. A coincidência não é coincidência: por trás destes eventos está o mesmo colectivo, que se dá a conhecer pelo nome White Noise e que integra os walshianos Carlos Alberto Carrilho, Miguel Patrício e Sabrina D. Marques.
Para a malta do horror, bem representada pelos filmes da secção Boca do Inferno, os olhos quererão porventura devorar cada bocadinho do filme-choque do momento: Grave (Raw, 2016) da realizadora francesa Julia Ducournau. Houve relatos de vómitos e desmaios aquando da estreia deste filme no Gothenburg Film Festival. A partir daí, toda a gente quis provar um pouco desta fábula moderna sobre canibalismo. As minhas reservas para este filme são as minhas reservas para a globalidade do cinema de terror francês. Ainda assim, fica a nota de relativa curiosidade. Dentro da secção Sessões Especiais, há um filme que me fala mais alto: I Am Not Your Negro (2016) de Raoul Peck. Receio que a forma não seja a mais interessante – é o que me dizem -, mas é o conteúdo aqui que mobiliza a minha atenção: a vida, o pensamento e a prosa do escritor negro James Baldwin. Retrato do homem e da sua circunstância, numa América órfã de Martin Luther King e Malcolm X. Espera-se, pelo menos, alguns momentos de luminosa visitação do presente através da revisitação do passado. Os grandes homens produzem este tipo de movimento.