Se tanto o IndieLisboa como o MOTELX apresentam um cardápio excepcional de títulos portugueses e internacionais, entre curtas e longas-metragens, a ficção, o documentário ou o filme experimental, que maioritariamente estão arredados do circuito de distribuição comercial, é inegável considerar o primeiro como um festival generalista, enquanto o segundo centra a sua oferta num género particular, o cinema de terror. Nos últimos anos, o IndieLisboa criou a secção Boca do Inferno, reunindo os títulos, antes dispersos por outras secções, que representam o melhor que o festival tem para oferecer entre o cinema de terror e zonas limítrofes. A maratona de fim-de-semana, uma sessão continua com vários títulos exibidos até à madrugada, repesca um carismático modelo de exibição para recriar um certo clima de festa associado ao género. Não só pelo limite no número de títulos exibidos, mas também por privilegiar a atmosfera em vez do choque, seria inadequado considerar a secção Boca do Inferno como concorrência directa ao MOTELX. Em vez disso poderemos vê-la como um saudável complemento, contribuindo para representar a diversidade que o género exibe ao nível internacional. Por outro lado, a especificidade do MOTELX permite a possibilidade de visitar um maior número de geografias, como a actual produção japonesa, que misteriosamente quase desapareceu da programação do Indie. Em abono da verdade, trata-se de uma incompreensível tendência que acompanha a programação de outros festivais, distribuição comercial e instituições, numa cidade que alberga a Fundação Oriente, que usufrui de benefícios fiscais decorrentes do seu estatuto de utilidade pública e a quem se pedia um envolvimento mais interventivo e menos sectorial com a cultura contemporânea oriental.
No que toca à safra de 2017, a Boca do Inferno repesca títulos emblemáticos de festivais com prestigiadas secções de cinema de terror – TIIF (Orlando), Fantasia (Montreal) ou South by Southwest (Austin) – e de outros generalistas que fazem parte da primeira linha internacional – Cannes, Berlim, Veneza ou Roterdão. Monstros fruto de questões relacionadas com a alienação ou a solidão na sociedade contemporânea servem de ligação entre a maioria dos títulos, em que se detectam interessantes oposições estruturais, mas que reflectem resultados desiguais. Comecemos pelo filme central da secção, Grave (2016) de Julia Ducournau, que vem acompanhado por uma onda de entusiasmo, propagada a partir de Cannes, onde teve estreia internacional e alcançou o prémio FIPRESCI. Quem assistiu à sessão na enorme e lotada sala Manoel de Oliveira do Cinema S. Jorge, diria estar a assistir a uma comédia, com muito público jovem a soltar gargalhadas, em vez de sinais de medo ou de desconforto. Não foram registados anormais abandonos da sala, vómitos ou repugnância, reacções que os órgãos de comunicação social indicam sempre que referem o filme. Entre as décadas de 1960 e 1970, os distribuidores independentes pagavam a jornalistas para criarem reportagens falsas sobre controvérsias, ofereciam sacos para enjoo e convocavam manifestações e ambulâncias para a porta das salas de cinema. Tal como em Grave, a estratégia comercial parece depender mais da curiosidade pública do que da qualidade do produto final.
A história de uma rapariga vegetariana que se transforma em canibal, após ser forçada a comer carne, teria pernas para andar, se não fosse realizada por meio de um fascínio próprio de uma adolescência retardada. O cenário onde decorre a acção, uma escola de veterinária durante o período de praxes, é o ponto de partida para um insuportável percurso, entre previsibilidade e momentos de gosto duvidoso, como a cena, filmada em câmara lenta, em que as duas irmãs lutam, presas por trelas reforçadas usadas em animais perigosos. Longe da New French Extremity, não há preocupação de contextualização social ou política, como se a actualidade francesa não fosse mais palco de questões complexas, pelo que no final somos prendados com uma redundante explicação de herança familiar, pacificando qualquer resto de convulsão, mas susceptível de sugerir um ponto de vista reaccionário. Se tomarmos em conta as declaradas qualidades profiláticas do vegetarianismo, aqui visto como repressor da sexualidade feminina, a mudança de regime alimentar abre portas a formas, eventualmente impuras, de relacionamento com o “outro”, como o canibalismo, a sexualidade, a orientação sexual, as relações étnico-raciais ou o sadomasoquismo. Vegetarianismo ou libertação sexual, venha o espectador e escolha! Numa leitura menos literal, ainda vem à memória The Seventh Victim (A Sétima Vítima, 1943) de Mark Robson, produzido por Val Lewton, e de Dans ma peau (2002) de Marina de Van, o que ainda aprofunda a hecatombe.
Baseado em factos reais, a acreditar no que referem os créditos iniciais, no belo Home (2016), de Fien Troch, é a incomunicabilidade dentro do seio familiar que desperta o mal, através do assassínio de uma mãe neurótica pelo filho ajudado por dois amigos. No entanto, é um elemento estranho aos diferentes núcleos familiares, um rapaz renegado pela própria família, que vem precipitar a resolução do conflito. Filmado com câmara à mão, em estilo de reality show, o mundo exterior das personagens é exposto, mas o seu interior mantém-se distante, resistindo ao deciframento. A emancipação do formato é feita através de planos fugazes sobre expressões de partes dos corpos, como a face, as mãos, os pés ou os olhos, que revelam mais que a linguagem verbal. A passagem pelo coming of age obriga a alianças entre os adolescentes, numa resposta à geração impositiva dos pais. Parafraseando Ace Ventura, o divertido detective de outras paragens, interpretado por Jim Carrey, especializado em crimes contra animais de estimação, “it is the mucus that binds us”. Um rapaz diagnosticado com sintomas sociopatas, a quem cabe deter um serial killer que usa os órgãos internos da vitima para rejuvenescer o corpo, é a curiosa variação sobre o vampirismo que nos oferece I Am Not a Serial Killer (2016) de Billy O’Brien. O filme marca o regresso do actor Christopher Lloyd, o tresloucado cientista de Back to the Future (Regresso ao Futuro), neste caso em luta contra o futuro – a velhice que lhe veda a coordenação dos pequenos gestos de ternura que encantam a mulher que ama.
Um solitário candidato a actor, por via do assassinato procura sarar as fracturas provocadas pela incapacidade de interpretar os sinais do mundo que o rodeiam, é a proposta de Callback (2016) de Carles Torras. Falamos de cinema catalão rodado em Nova Iorque, co-produzido e interpretado por Larry Fessenden, através da sua importante plataforma de produção, Glass Eye Pix, à volta do qual circula o mais importante cinema de terror independente norte-americano. Uma estética que casa bem com o uso de recursos limitados de The Alchemist Cookbook (2016) de Joel Potrykus, visão com contornos sobrenaturais de um realizador branco sobre a América multirracial, em que um jovem negro se isola na floresta, na tentativa de exorcizar os velhos medos que o perseguem. Através de paisagens mais abstractas, posiciona-se como alternativa para quem não ficou convencido com a representação da problemática racial na América pós-Obama, em Get Out (Foge, 2017) de Jordan Peele.
O realizador russo Ivan I. Tverdovsky recorre a elementos fantásticos para abordar questões universais como a identidade e o complexo jogo social a que é remetido o envelhecimento. Em Zoologiya (2016), uma mulher de meia idade a quem cresce uma cauda, vê-se obrigada a reinventar a vida e descobrir a sexualidade, em confronto com uma sociedade que exige a execução de papéis tipificados de acordo com a idade. É um retrato comovente, dirigido por um realizador jovem e interpretado por uma actriz de teatro em estado de graça, marcado por uma respiração e uma gravidade que não sentimos no filme de Julia Ducournau. Numa das melhores cenas, a mulher inicia a descoberta da sexualidade com um jovem médico, numa jaula vazia do jardim zoológico onde trabalha, entre os rugidos dos animais em cativeiro, lembrando novamente o produtor Val Lewton e Cat People (A Pantera, 1942) de Jacques Tourneur, mas afasta-se, recusando ser remetida à condição de animal enclausurado. Numa galáxia distante, em termos de recursos financeiros disponíveis, situa-se outro dos títulos em destaque nesta secção: Free Fire (2016) de Ben Wheatley. Entre dois grupos que traficam armas, a revelação de um abuso sexual espoleta um tiroteio, que desemboca numa matança, que deverá tanto a Quentin Tarantino como ao cinema de acção de Hong Kong ou ao noir norte-americano. Alcançando um nível suficiente de eficiência profissional, ainda que impessoal, o guarda-roupa estilizado está lá para assinalar a diferença entre a cópia e o original. Recuperando as palavras de um amigo, colaborador do realizador de Kill List (Uma Lista a Abater, 2011), porque continuará Ben Wheatley a investir orçamentos astronómicos em desastres comerciais que poderiam ser produzidos com um financiamento bastante menor?