Ma non è questa forse la cosa più importante.
Estamos em 1957 e a região onde actualmente se encontra a costa eslovena vive um momento de profunda mudança. Depois da Segunda Guerra Mundial, o território costeiro de Duino a Novigrad (na altura conhecida como Cittanova) foi constituído como estado independente, baptizado como Território Livre de Trieste, e dividido em duas zonas: a A, administrada pelos britânicos e americanos, e a B, gerida pelo Exército Popular Jugoslavo. Em 1954, esta região é dissolvida e o respectivo governo entregue a Itália, ao norte, e à Jugoslávia, ao sul, integrando a província da Eslovénia. Socialmente, esta zona também vive fraccionada entre duas realidades contrastantes: a dos pescadores e trabalhadores das salinas, que lutam diariamente pela sobrevivência individual e familiar, e a da elite europeia que passa férias na região desde os tempos gloriosos do Império Austro-húngaro e que transformou a Ístria eslovena numa das mais luxuosas estâncias balneares do Adriático. La ragazza della salina (1957), distribuído em Portugal no ano da estreia italiana (e novelizado, na “Colecção Cinema”) como A Rapariga das Salinas, é um filme feito por essa elite sobre o mundo do trabalho, e uma curiosa obra representativa do cinema positivista europeu dos anos 50.
A distância entre os criadores e o universo representado começa na figura do próprio realizador, František Čáp, um prolífico cineasta checo que, depois de anos de trabalho na Alemanha, onde assinava os seus filmes como Franz Cap, se muda para a Eslovénia. A convite da Triglav Film, Cáp inicia a sua carreira jugoslava em Liubliana, onde realiza a comédia romântica Vesna, que é, ainda hoje, uma das obras cinematográficas eslovenas de eleição, marco inamovível do cânone nacional. Seis anos mais tarde muda-se para Portorož, comunidade balnear particularmente sumptuosa, desenvolvida em torno de um mítico hotel (Palace Hotel, actualmente Kempinski Palace Portorož) que acolheria a realeza austro-húngara e que seria particularmente cobiçado, ao longo do século XX, por figuras ilustres do cinema europeu e americano, como Orson Welles ou Yul Brynner, para estadias de repouso. Ou ainda Marcello Mastroianni, estrela masculina de La ragazza della salina, que aí ficará alojado durante as rodagens do filme de Cáp. É a partir deste ostentoso reduto que o projecto é organizado, e é na distância social existente entre o hotel e as salinas que reside, simultaneamente, a mais embaraçosa fraqueza desta obra e a sua maior, e surpreendente, força.
Assim, produzido com significativo investimento financeiro entre a Itália (Rizzoli Film), a Alemanha (Bavaria-Filmkunst) e a Jugoslávia (Zagreb Film), o filme retrata a dura vida dos pescadores e trabalhadores nas salinas eslovenas, vítimas das vicissitudes dos elementos naturais e do despotismo da exploração capitalista, sem, contudo, manifestar qualquer entendimento profundo das implicações sociais em jogo na realidade apresentada. Fá-lo, ao invés, através de uma mundividência arraigadamente positivista, crente no progresso e reflexo inegável do excitante conforto que produzirá a cultura americana neste período, dissimulando os horrores da Guerra da Coreia com a tinta brilhante dos Cadillacs e as melodias excêntricas de Elvis Presley. Nesta abordagem, La ragazza della salina poderia facilmente rever-se na representação do desespero da vida do mar em Nazaré (1952) de Manuel Guimarães ou nas danças semi-despidas e frenéticas de Et Dieu… créa la femme (1956) de Roger Vadim. Apesar de radicalmente diversos no que toca às abordagens compositivas e narrativas, estes três filmes unem-se num ponto: todos tratam a vida costeira com a mesma ingenuidade, aliando uma profunda compaixão manifestada pelo drama individual a uma completa incapacidade de formular um discurso sobre as causas políticas e sociais da desgraça.
A longa-metragem desenvolve duas intrigas paralelas: uma história de amor protagonizada por Mastroianni (Piero) e pela diva austríaca Jester Naefe (Marina); e a trama ligada à exploração da salina por um capitalista fraudulento (Alberto, interpretado pelo alemão Peter Carsten), que rouba dinheiro aos funcionários e que não se coíbe de maltratar a companheira e assediar constantemente as trabalhadoras. Apesar de a cada uma corresponder um género diferente bem definido no cinema italiano deste período (a comédia romântica ao primeiro e o drama social ao segundo), os fios narrativos cruzam-se: Mariana e Piero acabam por trabalhar nas salinas de Alberto e liderar uma revolta fracassada contra o autoritarismo e desonestidade do patrão. Este conflito oferece o exemplo perfeito para a compreensão de La ragazza della salina e da sua singularidade. Na cena em que a personagem de Mastroianni reúne os trabalhadores para organizar o motim, e em que a cobardia destes deita a perder a iniciativa, a inverossimilhança da encenação das motivações e desenvolvimentos políticos do encontro contrasta veementemente com o interesse gráfico que a cena suscita.
O agasalho diegético faz com que a difícil realidade do mar e das salinas nos anos 50 no Adriático seja devolvida ao espectador como um belíssimo parque temático, onde as linhas e as cores, que buscam compulsivamente o pitoresco, oferecem algumas sequências graficamente fascinantes.
A organização do décor, em que dezenas de figurantes estão sentados em pilhas de sacos vazios, com diferentes tamanhos, destinados à recolha do sal, faz com que todos estejam em alturas diversas. Num momento crucial da reunião, por exemplo, duas pernas podem ser vistas a cair por cima do rosto de um dos intervenientes, enquanto noutro as roupas brancas das figuras constroem claras manchas que organizam, confortavelmente, o espaço. Aqui está o primeiro motivo de interesse do filme, produto da sua visão tendencialmente conservadora sobre o real: a revolta é retratada com múltiplas atenuantes estéticas que provocam uma associação, mesmo nas cenas mais violentas, a uma dimensão de aconchego que tinha estado completamente proscrita do cinema italiano da década anterior. Com a lição neo-realista aprendida e ostensivamente desaprendida, Cáp regressa assim ao belo na representação do conflito e, simultaneamente, conjuga-o com uma tentativa de demonstração da fatalidade inerente à vida do trabalho manual, que, na sua perspectiva, se pode questionar, mas nunca evitar.
La ragazza della salina é, então, um filme que injecta na provinciana melancolia do Sul da Europa um optimismo frenético e aparentemente desconexo da realidade representada. É um filme da adversativa, do “porém”, que tenta convencer o espectador de que a vida pobre é trágica, “mas que, apesar de tudo…”. Este tom ambíguo, aparentemente disfuncional, é construído sobretudo com recurso a dois tipos de investimento: no pitoresco e na comédia, ambos fortemente ligados. Na cena em que as duas personagens femininas principais, Mariana e a namorada de Alberto, se envolvem numa luta na lama, sequência típica de um certo e célebre fetichismo masculino (que, aliás, é representado, e muito levemente criticado, no filme), a violência da cena, que é real e que tem pesadas implicações narrativas, é completamente aniquilada pelo virtuosismo da composição. Por outro lado, os múltiplos momentos de rixa nos bares, reminiscentes das inofensivas querelas de bêbedos dos westerns de John Ford, servem muito mais o propósito da comédia que o do realismo, oferecendo espectaculares coreografias onde a estilização dos gestos, por muito rápidos que sejam, dilui imediatamente qualquer intensidade dramática que neles pudesse residir. Finalmente, o retrato do bando de Piero, a que os habitantes da vila chamam “Os Piratas”, invoca imediatamente, e sobretudo a um espectador dos anos 50, toda uma genealogia de românticas e extravagantes aventuras de flibusteiros construídas no ecrã e avidamente consumidas em Itália neste período, nomeadamente as adaptações cinematográficas dos romances de Emilio Salgari, criador do Corsário Negro. Tal como nestes filmes, o romantismo da vida deste grupo de inofensivos mafiosos do mar fará esquecer todas as dificuldades pelas quais qualquer grupo de pescadores passaria neste período na região.
Poderíamos assim considerar que La ragazza della salina é um filme de apologia do “playtime”, ou seja, uma obra que, constatando (e defendendo) uma fatídica imutabilidade social, preconiza uma sobrevivência no mundo através do jogo. Tal como o que acontece, por exemplo, em grande parte da banda desenhada deste período, lida pelo mesmo tipo de espectadores (ou pelos seus filhos) que veria o filme de Cáp, as imagens são construídas como protectoras do real que figuram, investindo tanto na sua beleza como na sua legibilidade. Dispensando um grande esforço cognitivo por parte do espectador através de uma poupança de elementos ilustrativos desnecessários, bem como empregando um estilo narrativo linear que renuncia a qualquer tipo de anacronismo ou obstáculo à narratividade, a película oferece uma diegese completamente limpa e simples, construída como uma obra de linha clara que traduz o real através de poucos traços essenciais. É este agasalho diegético que faz com que a difícil realidade do mar e das salinas nos anos 50 no Adriático seja devolvida ao espectador como um belíssimo parque temático, onde as linhas e as cores, que buscam compulsivamente o pitoresco, oferecem algumas sequências graficamente fascinantes. Aqui, dois exemplos se impõem: o regresso de Marina a casa, sozinha no seu barco, acompanhada por uma multidão emocionada no cais que procura saber as razões do seu desaparecimento, é filmado através de um longuíssimo travelling a partir do mar, que, enquanto explicita a comoção do momento, contribuindo para a compreensão da importância desta personagem na comunidade local, revela também a beleza do espaço em que circula, o encanto da costa eslovena; ou o trabalho nas salinas, que são cinematograficamente edificadas como um bizarro tabuleiro de xadrez, onde a minuciosa composição dos elementos naturais e humanos forma um padrão cromático e geométrico singular.
No filme, a revolta de Piero falha pelo acobardamento dos trabalhadores, mas, no ocaso da longa-metragem, o patrão maléfico é de qualquer forma destituído, por razões completamente colaterais desvendadas de forma aleatória. La ragazza della salina assenta a sua ideologia nesta crença numa ordem insondável e cujas regras o ser humano está longe de conseguir perceber, e que, no final (que final?), “poria tudo no sítio certo”. E é por aí que, provavelmente, este filme se perdeu na História do cinema italiano. Entre a forte crença ideológica do neo-realismo nos anos 40 e o niilismo de um Antonioni ou a teoria do caos de um Fellini nos anos 60, que nunca acreditaram que uma instância superior à individualidade pudesse pôr qualquer tipo de ordem na Terra, perde-se este filme claro de Cáp, que morreu, praticamente à nascença, pela sua (falsa?) inocência.
Contudo, como diz Alberto em conversa com a namorada, “Mas não é esta, se calhar, a coisa mais importante”. Obras como La ragazza della salina são, por um lado, fundamentais para a compreensão de ainda obscuros capítulos da história cinematográfica europeia, que não são alvo de estudo ou crítica pelo seu fraco cariz interventivo ou pela sua aparente inocuidade criativa. Mas, frequentemente, as hábeis estratégias de representação proteccionista de um mundo de durezas, onde a tragédia familiar, económica e social é substituída por beijos fogosos de corpos bronzeados, ultrapassam em muito a esfera do pitoresco, e, se olhadas de perto, poderão revelar poderosas estruturas de composição gráfica e de narratividade, tais como as que servem a representação do microcosmo das salinas. La ragazza della salina é, finalmente, um curioso documento histórico: apesar do seu revestimento ficcional, coloca em evidência o trabalho de uma prática com mais de setecentos anos, ainda activa na costa eslovena, que produz o sal que, hoje em dia, é vendido a preços exorbitantes como produto gourmet em exóticos saquinhos acompanhados de um certificado de origem elegantemente desenhado.