Somos sempre pela ideia feliz de que os filmes devem apresentar, em primeira mão, os seus autores. Contudo, Paul Vecchiali é um nome ainda demasiado desconhecido do público português – mesmo o mais cinéfilo. Assim sendo, sentimos ser nossa missão motivar os nossos leitores a acompanharem a retrospectiva que se avizinha de alguns filmes do realizador francês, organizada pelo IndieLisboa e que terá lugar na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. O número zero desta rubrica, Recortes do Cinema, deu-nos a conhecer melhor Kenji Mizoguchi pelos olhos de Paulo Rocha. A dimensão do realizador nipónico permitia o acesso por este olhar estrangeiro que nos é próximo. No caso de Vecchiali impõe-se a primeira pessoa do singular; pô-lo, através de recortes, a apresentar os seus filmes e as ideias que os enformam. Vecchiali é um cineasta cinéfilo com uma carreira notável, que oscilou sempre entre a escrita, a produção e a realização. As questões de escrita serão, como se vê nestes recortes, questões de produção e realização.
Colaborou com várias revistas, começando pelos Cahiers du cinéma, mas mais recentemente também com publicações online tal como La Furia Umana. Afirma-se no mundo da “prática do cinema” enquanto produtor das primeiras obras de Jean Eustache e Chantal Akerman. Fundou em 1976 uma produtora chamada Diagonale, de onde surgiram nomes como Jean-Claude Guiguet e (também crítico) Jean-Claude Biette. Durante todo este tempo realiza, curtas e longas-metragens, mas o seu primeiro grande sucesso de culto é Femmes, femmes (1974). Tem mais de 50 obras no currículo, uma das mais recentes é Le cancre (2016). O IndieLisboa traz à Cinemateca Portuguesa uma excelente amostra do cinema deste cineasta obscuro que nunca se deixou vencer pelas modas do seu tempo. O primeiro – e talvez o principal – traço característico do seu pensamento e imagens é exactamente esse: a irreverência. Os recortes que se seguem – que procuram compreender as facetas de crítico, produtor e realizador – atestam-no.
O primeiro recorte que trago remete-nos para a origem proderosamente cinéfila da obra de Vecchiali. Em particular, ele é demonstrativo do intenso amor do cineasta, desde a sua infância, pelo cinema francês clássico, sobretudo dos anos 30, começando pelas suas stars. Algumas delas foram, mais tarde, convocadas directamente no espaço do seu cinema – desde logo, Hélène Surgère e Sonia Saviange em Femmes, femmes e a sua paixão mais antiga, Danielle Darrieux, participa no seu primeiro filme, Les petits Drames (1961), e em En haut des marches (1983). É por causa dela que Vecchiali decidiu passar da escrita à realização. Na edição número 700 dos Cahiers du cinéma, de Maio de 2014, ele foi um dos vários convidados – realizadores, produtores, actores, críticos, teóricos… – a responderem ao desafio de elegerem um filme ou uma sequência de um filme que os tivessem emocionado profundamente. Eis o começo da resposta:
Primeiro choque: Danielle Darrieux na cena da ópera face a Charles Boyer [em Mayerling]. Tive a sensação de que ninguém poderia ir mais longe na expressão de um fascínio, de facto o amor. Mas eu era demasiado novo. Ainda assim disse a mim mesmo: ‘eu quero ter esta profissão’. Essencialmente por Darrieux.
Paul Vecchiali, Cahiers du cinéma, Maio de 2014, p. 18.
Este amor resistente pelas actrizes e também por autores – como René Clément, Marcel Pagnol e Jean Grémillon – dos anos 30 era e é de tal ordem que Vecchiali lhes dedicou uma obra monumental: a sua enciclopédia biográfica e cinéfila intitulada L’encinéclopédie, editada em dois tomos (à venda na livraria da Cinemateca Portuguesa, Linha de Sombra).
Passamos do cinéfilo babado por autores e actrizes para um cineasta babado por autores e actrizes. Vecchiali nunca traiu os seus ídolos. De tal maneira que os levou – como já referi – para o grande ecrã sempre que pôde. Um dos seus primeiros grandes sucessos foi Femmes, femmes, comédia negra musical, algures entre Aldrich, Fassbinder e Demy (este último um amigo de Vecchiali), que passou no Festival de Veneza e deixou uma forte impressão em Pier Paolo Pasolini, que sobre ele disse ser “o maior filme do mundo”. Aquando do lançamento em DVD do filme de Vecchiali, em Abril de 2010, os Cahiers du cinéma recuperaram a história do filme e foram falar com o realizador. O excerto que se segue dá-nos a ver aquela que sempre foi a postura de Vecchiali enquanto crítico e realizador. Alguém fortemente preocupado com as questões de mise en scène ou, como diz, da “escrita fílmica”.
O que eu deploro nas críticas a Femmes, femmes é que nunca se fala de cinema. Fala-se das mulheres, do desemprego… Sim, está no filme. Mas a escrita fílmica é mais importante. Porque é que faço um plano-sequência a abrir? Para ser virtuoso? Não. Porque em todo o resto do filme vão existir temas e variações sobre a situação do primeiro plano. (…) [P]arece-me que um crítico de cinema deve falar de cinema, não do velho conceito obsoleto do conteúdo. Jean Louis Bory via coisas no plano do cinema. Ele viu a cadência, viu que eu utilizava por vezes meios do cinema dos anos 30, por vezes as sacudidelas da Nouvelle Vague. Eu preferia que se falasse assim sobre o filme. Porque é isso que me interessa, a escrita fílmica. Como espectador também.
Nicolas Azalbert, “‘Le plus grand film du monde’: Entretien avec Paul Vecchiali”, Cahiers du cinéma, Abril de 2010, p. 57.
Como produtor, a grande obra de Vecchiali teve um nome: Diagonale. Esta produtora ocupou um lugar algo lateral no meio do cinema francês. Era um “bando à parte” do cinema pós-Nouvelle Vague, composto por nomes – alguns tão desconhecidos em Portugal como o é Vecchiali – como Jean-Claude Guiguet, Marie-Claude Treilhou e Gérard Frot-Coutaz (para saber mais sobre a Diagonale, recomento a leitura de este texto de Philippe Azoury). No seguinte recorte da entrevista de Vecchiali dada ao jornal Libération o próprio localiza a Diagonale na história do cinema moderno.
Tínhamos em comum um horror ao naturalismo e à ‘cerebralidade’ [cérébralité]. Os gostos, esses, divergiam, porque tínhamos personalidades diferentes. Mas essa rejeição aproximou-nos fortemente. Quando levámos adiante esta espécie de contra-revolução pós-Nouvelle Vague, foi totalmente espontânea, não foi voluntária. Nós todos gostávamos da Nouvelle Vague, não tínhamos nada contra. [Jean-Claude] Biette estava muito ligado a Rohmer, e eu gostava muito do Chabrol por exemplo, mesmo se ele era demasiado trapaceiro para os seus filmes me agradarem. Pelo contrário, nunca deixei de adorar Godard. Para mim ele era a perfeição, cinema puro, uma poesia e uma heterogeneidade constantes. Ele nunca é suave. Eu digo sempre: ‘quando eu não gosto de um filme de Godard, sou eu que estou errado.’
Julien Gester, “J’ai Tourjours Voulu Rester Dans L’Instinct”, Libération, 7 de Fevereiro de 2015.
E como realizador? Que princípios orientam a práxis artística de Vecchiali? Em entrevista aos Les Inrocks fala de uma ética e – palavra importante para si – de uma dialéctica que mantém.
Você tem uma moral de cineasta intangível.
Eu diria mesmo uma ética do cineasta, e esta é incontornável. Se eu sou muito violento com os meus confrades, é porque eu acho que na maior parte das vezes, eles traem esta ética. Esta ética é estética (na linha da frase de Godard, ‘o travelling é uma questão de moral’): desde o meu primeiro filme, Les Roses de la vie [este não foi exactamente o primeiro filme de Vecchiali, como já escrevemos atrás, mas sim Les petits Drames, todavia esta obra é dada como perdida], Truffaut disse que se encontrava aí a coisa e a crítica da coisa, eu sempre me mantive nesta dialéctica. Mas esta ética é também de uma outra natureza: ela deve-se a uma certa relação com as personagens. Eu respeito as minhas personagens. Para mim, uma personagem maldosa é uma personagem inacabada.
Jean-Baptiste Morain, “Paul Vecchiali : l’éthique d’un cinéaste”, Les Inrocks, 11 de Fevereiro de 2015.
Os recortes aqui trazidos (traduzidos livremente por mim do francês) foram escolhidos a partir de uma pesquisa realizada na Biblioteca da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, uma segunda casa e o meu “Google do cinema” favorito. Nem tudo está na Internet, na realidade, há uma memória crítica em papel que importa ter em consideração. Esta rubrica, Recortes do Cinema, tem o objectivo de instaurar uma relação profícua entre a actualidade cinéfila e o arquivo como lugar primeiro da investigação.