O tom crítico relativamente aos últimos filmes de Terrence Malick é mais ou menos unânime. A filmografia do autor tem, segundo os seus próprios admiradores, o trigo e o joio. Não há em mim particular vontade de contestar esta distinção – acho-a pertinente. Mas arrancar o joio acarreta o risco de prematuramente recolher também o trigo. É preciso esperar e só na ceifa se poderão separar devidamente os dois.
Não vejo nesta deriva do realizador crime algum – parece-me até um desvio interessante, ainda que o seu resultado, os próprios filmes, não o seja. Ver os trabalhos do norte-americano a partir de The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011), que anuncia, mas não integra esta dita fase má tornou-se, para muitos, um momento de irritação e de cansaço. Para outros tantos, nos quais me incluo, tornou-se sobretudo uma tentativa de justificar como chegou Malick a estes filmes, que têm sido caracterizados como amorfos, um conjunto aleatório de planos aproximados de protagonistas muito belos e muito errantes. Plásticos, de aspecto vulgar, como a publicidade, sem narrativa que os sustente. O meu parcial desinteresse pelos filmes não me impede de achar que os ataques dirigidos contra o cineasta não têm sido feitos nos devidos termos e que deixam de fora elementos importantes – não falarei aqui da maior parte deles.
Se a referida estética se cristalizou, se a aparência dos últimos filmes é reluzente, ofuscante, publicitária, o parentesco limita-se a aspectos formais e esta é uma distinção que importa sublinhar. A publicidade reluz apenas porque é preciso atrair o olhar das pessoas. Já estes últimos filmes do autor, como aliás os primeiros, reluzem por causa do amor que ele tem ao mundo visível (cuja beleza surge para ele como sinal da existência de um outro mundo que não se vê). Que essa distinção não seja evidente é um mal-entendido, da inteira responsabilidade de Malick, que consiste em realizador e espectador não estarem, perante as mesmas imagens, a ver de todo a mesma coisa. Se há alguma coisa a atacar relativamente aos últimos filmes de Malick é o facto de estes serem opacos e, por essa razão, invisíveis e insuficientes.
O que Malick procura na repetição, na disposição pouco esclarecedora de momentos é fixar a intensidade das experiências que aquelas criaturas estão a viver, como se por uma espécie de depuração formal, da redução das vozes, da desobediência a um conjunto de convenções narrativas de que sentimos falta, porque em boa verdade elas nos fazem sentir confortáveis, Malick tentasse chegar a algo que desde a sua primeira longa-metragem, Badlands (Noivos Sangrentos, 1973), parece perseguir – aquela intensidade, precisamente. E se as suas personagens – as antigas e as de agora – lutam constantemente para se desenvencilharem de constrangimentos que os impedem de chegar a um outro lado (que toma em cada caso contornos particulares), também Malick parece agora dedicado a tentar a sua libertação.
Malick está na posição de quem mostra a um irmão, a um amigo, uma música de que gosta muito. O desastre dá-se no momento de passar os auscultadores para as mãos desse amigo, desse irmão.
Que essa libertação possa ser sinónimo de bom cinema é outra história. Malick está na posição de quem mostra a um irmão, a um amigo, uma música de que gosta muito. O desastre dá-se no momento de passar os auscultadores para as mãos desse amigo, desse irmão.
Song to Song (Música a Música, 2017) quer consagrar a possibilidade da passagem – de uma música servir como forma de transmissão de um modo de vida. Mas a passagem depende sempre de um grau elevado de elaboração. E a sofisticação a que Malick nos habituou transformou-se no seu oposto, numa purificação que se tornou incompreensível por ser tão sintética. A beleza dos protagonistas, por exemplo, é esplêndida na exacta medida em que é terrível. Mas nós deixámos de conseguir ver essa ambivalência porque ficámos ofuscados – cada plano de Song to Song desgasta o plano anterior, sobreexpondo-o. Depois dos primeiros vinte minutos de filme apetecia-me fechar os olhos, não olhar mais, ficar só a ouvir a música, que quase nunca cessa e que é, na verdade, a melhor parte do filme.
Na sua tentativa de nos oferecer uma forma de imagem pura, suficiente, essencial, de nos mostrar algo, o ponto a que Malick chegou foi exactamente o oposto – as imagens esvaziaram-se aos nossos olhos, tornaram-se objectos banais. O que se pensou, o que se sentiu ao ouvir uma canção não se pode oferecer de mão beijada. O que o outro ouve é uma sombra muito pálida dessa primeira melodia. Malick entusiasmou-se ao ponto de esquecer isso, como alguém que encontrou qualquer coisa que lhe parece muito, muito importante, mas que não consegue descrevê-la devidamente a ninguém.