The Lost City of Z (A Cidade Perdida de Z, 2016) é porventura o filme mais ambicioso na carreira de James Gray. A obra compreende vários anos na vida do explorador britânico Pervical Fawcett durante as primeiras décadas do século passado. A sua história é alimentada pelo espírito de aventura despertado por uma primeira incursão feita na terra virgem da Amazónia, que lhe deu a descobrir indícios da presença passada de uma civilização. Gray filma a história épica de Fawcett com um empolgamento inicial digno de um filme de aventuras. Ainda assim, este é sempre um empolgamento sem pompa e tinha de ser assim porque o filme vai sendo puxado para o coração do sonho e da existência de um homem, um homem que é só um homem. Um taciturno filme de aventuras próximo de Francis Ford Coppola [Apocalypse Now (1979)] ou de Werner Herzog [Aguirre, der Zorn Gottes (Aguirre, a cólera de Deus, 1972) ou Fitzcarraldo (1982)] sinaliza um cinema preso à pele dos sentimentos e das ligações humanas. A verdadeira aventura é o humano em Gray, não a paisagem ou as acções heróicas. O filme convida-nos a esta aventura para, como que nos fazendo submergir lentamente na paisagem interior das personagens, nos oferecer uma outra coisa. Uma coisa simultaneamente maior e mais pequena que “mais um filme de aventuras”.
A grande conquista deste filme de Gray é a de nos aproximar da vida – da respiração – das personagens mediante uma narrativa heróica que cola paisagens distantes entre si tal como instantes históricos que o cinema ainda não havia sabido conciliar desta maneira, como a Primeira Guerra Mundial e as expedições do homem branco na América do Sul, de onde decorreu a descoberta material dos primeiros vestígios das civilizações pré-colombianas e o questionamento filosófico da dignidade humana do índio aos olhos do homem branco. O empolgamento sem pompa, que embala um filme de aventuras adormecido – quase apetece dizer: triste -, dá lugar a um sono fílmico, que é terno, comovente e corajoso. Este sono fílmico faz de “Z”, a cidade perdida, o pano de fundo para a descoberta de uma paisagem agarrada ao corpo e à alma (nesta ordem). A paisagem que é feita da relação entre homem e mulher, entre pai e filho. Damos a volta ao mundo para não sairmos do mesmo sítio, na realidade, para irmos mais fundo naquele que é o universo sentimental – radicalmente anti-sentimentalista – do cinema de James Gray. A cidade esfuma-se num sonho impossível, transforma-se em utopia, em constante promessa de aventura para um homem. É essa cidade, esse sonho, essa utopia, essa promessa para um homem só – para “só um homem”, encarnado aqui por um actor a seguir de perto, Charlie Hunnam – que faz o filme de aventuras recuar em favor de um filme que faltava ao cinema americano. Um grande filme romântico não de aventuras mas pela aventura. Uma ode ao risco, à descoberta de paisagens distantes reveladas muito perto, enfim, uma carta de amor ao explorador que habita em cada um de nós. O amor pode ser isso: catedral do desafio, do risco, do sonho. Irmandade do humano.
Um amarelo caído, dormente, colore este filme de aventuras que hesita em ser um filme de aventuras, porque ele quer recuar e fazer-se ode ao sentido de aventura, ao desejo de conquista do sonho levado, como num rio, pela força do amor.
Portanto, desengane-se o espectador distraído, a narrativa familiar que aparece durante a caracterização dramática de Fawcett não é, de modo algum, um “sublinhado dramático da praxe” que Gray tem de filmar. Ela – vamos percebendo – está no coração do filme. A aventura renova-se a partir daí, nesse lugar que vai unindo e desunindo – chega a desunir de facto? – o marido, a mulher e os filhos. Esta história sobre distâncias faz-se na proximidade – diria quase religiosa – dos sentimentos de um homem pelos que são sangue do seu sangue – as ligações familiares são, como sabemos, o barro de que é feito o cinema de Gray. O que vai pulsando cada vez mais rápido na pele do filme é o desejo de conquista de uma paisagem sentimental que se faz com o espírito – e o protagonista devém isso, puro espírito – a par da outra que se percorre com (e contra) o corpo – e que acaba por ser o “pano de fundo” aqui. Este filme encaminha-nos para esta conclusão como o rio que faz desaguar as personagens no que se julga ser o átrio da grande cidade perdida, “Z”.
Não somos conduzidos para estas paisagens, mas levados até elas, de imagem para imagem, avançando e recuando na história e na História, sempre debaixo do escuro dourado de Darius Khondji que aqui regressa quatro anos depois da obra-prima The Immigrant (A Imigrante, 2013), trazendo outras consequências à “sensação do filme”. Que consequências? A da taciturnidade, desde logo – nunca se viu uma Amazónia tão pouco verde, coberta que está por um soturno e desventurado “manto dourado”. Um amarelo caído, dormente, colore este filme de aventuras que hesita em ser um filme de aventuras, porque, mesmo contra os movimentos da História, ele quer recuar e fazer-se ode ao sentido de aventura, ao desejo de conquista do sonho (e)levado, como num rio, pela força do amor.
Já estamos avançados na história quando o pai diz ao filho mais novo que vai partir numa nova aventura com o seu irmão mais velho, mas que não menos nobre será a missão deste em cuidar da irmã e de sua mãe – esta, interpretada soberanamente por Sienna Miller, é a mais corajosa de todos os “aventureiros” deste filme porque sabe que o destino abraça o sonho, por isso, aceita “patrocinar” a empresa “irresponsável” do marido e filho. Da mesma maneira que a narrativa familiar não é um mero “sublinhado” para Gray no início, estas palavras também não são “de circunstância”. Porque neste filme o tempo passa, os desastres da história e do espírito sucedem-se, como uma locomotiva sem travões, mas há qualquer coisa que não desaparece: a família, esse pilar. Ela é o grande rio. Ela é a grande árvore. As raízes e o fruto. É dela e para ela que a câmara de Gray se co-move. Desaguamos, assim, nos minutos finais, aqueles que levam o filme para outras alturas. E a altura aqui é, como já vimos, o movimento de uma descida. O movimento embalado de um sono (e)terno.
Os heróis foram encurralados e são tornados prisioneiros por um grupo de nativos. Um ritual primitivo vem incensar a noite com morte. Eu amo-te, diz o filho. Eu amo-te, diz o pai. O amor é grandioso, denso como a floresta que se desbrava à procura de tesouros. Já em Little Odessa (Viver e Morrer em Little Odessa, 1994), Gray retratava esta espécie de relação saturniana entre pai e filho – dizer-se “eu odeio-te” é do mesmo tipo de violência que se dizer, assim, em face da morte, “eu amo-te”. Quando revi este seu primeiro filme, tive ocasião de escrever algo na minha crónica Civic TV que me parece relevante recuperar: “Nos dois filmes, Little Odessa e The Immigrant, os seus melhores para mim, Gray fala de relações de abuso e amor e, em ambos, perpassa um intenso sentimento de luto”. Navegamos as mesmas águas, ainda que aqui esta narrativa de abuso e de amor seja perpassada tanto por um sentimento de luto como por um desejo intenso, e profundamente conciliador (moral, religioso), de aventura.
A aventura começa verdadeiramente naquele “amo-te”, quando já não há rio e floresta para percorrer. O espírito levita, o tempo e o espaço são como ele. O grande sono final tem qualquer coisa do desfecho de Apocalypse Now, na medida em que nos sentimos levados para a outra margem. Aqui, contudo, o sono é doce e pacificador – o oposto de um espectáculo de guerra. A morte não encerra a viagem, apenas por ela o amor entre pai e filho se poderá cumprir finalmente. Ele chama pela mãe que desaparece na floresta reflectida no último plano como quem descobre, ali bem perto, a catedral da vida eterna. A catedral da vida eterna é o aventuroso amor à família (a família é o amor ao amor). E chama-se “Z”.