Esta crónica demorou mais tempo a sair. Aguardava pelo primeiro episódio da nova temporada de Twin Peaks (2017-). É o grande acontecimento cinematográfico do mês? Sim, mesmo sendo um exclusivo do pequeno ecrã, no caso português, do canal TVSéries. Passou ontem à noite e, com um certo nervoso miudinho, lá fui eu sentar-me no sofá para ver o que esperava ser um grande momento de cinema. Os dois primeiros episódios foram mostrados, com pompa e circunstância, no Festival de Cannes anteontem e não só arrancaram a mais longa ovação do auditório como fizeram ascender um “produto televisivo” a título mais bem cotado do festival para a crítica de cinema. A recepção tem sido tal que a notícia avançada há semanas sobre o adeus definitivo de David Lynch ao cinema mereceu uma importante rectificação – por parte dos jornalistas ou do próprio Lynch? Provavelmente dos dois. A sessão especial em Cannes de Twin Peaks teve mesmo o condão de abafar o interesse pela Palma de Ouro (é só dentro da minha cabeça que ouço a expressão: boooring?).
Neste passado domingo todas as atenções estiveram viradas para o episódio de abertura da terceira temporada de uma série que deixou uma marca indelével em todos aqueles que, no início dos anos 90 do século passado, a seguiram religiosamente na RTP1 e também em todos aqueles que, no início do novo século, a acompanharam com igual fervor na SIC Radical. Eu pertenço a esta segunda geração. Recordo-me bem de procurar ver e gravar cada episódio, mas de levar a devoção até às últimas consequências aquando da maratona televisiva (integral que incluía, creio, as duas temporadas), sem interrupções, que passou naquele canal do cabo durante um fim-de-semana. Tenho ideia que nem as refeições me impediram de estar de olhos – e ouvidos – pregados ao pequeno ecrã. Fui agarrado pelo primeiro episódio, sugado por um mistério abismal: quem matou Laura Palmer? Não, não foi bem isso. Já conhecia Lynch suficientemente bem para perceber que interessava pouco a resposta a essa pergunta; que ele procuraria tornar a grande questão num infindável rol de pequenas interrogações que nos encaminhariam para um mistério maior – muito maior – do que aquele que apenas alimenta um plot. O que interessa a Lynch é a procura e o modo como o mistério se adensa até ao ponto de nos fazer engolir pelos nossos pesadelos e demónios. A atmosfera em Lynch é tudo. A música de Badalamenti, o cenário campestre – os verdes, os castanhos, os vermelhos – de Twin Peaks, as personagens estranhas que povoam a localidade onde Laura Palmer – nome de alguém com corpo ou nome de um mito já sem corpo? – foi vista pela última vez.
A ousadia é grande, mas pode minguar se a sensação de vácuo der lugar ao vácuo ele mesmo. E se a mão que dá um murro nas nossas expectativas virar a mão que esconde o nosso bocejo?
Tinha lido algures que era recomendável ver-se ou rever-se o filme, prequela da série, que Lynch lançou após a “conclusão” da segunda temporada de Twin Peaks: Fire Walk With Me (Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, 1992). Assim o fiz, com gosto – já o tinha como um dos filmes mais subestimados do realizador, experiência traumática de som-imagem que prenuncia Lost Highway (Estrada Perdida, 1997), Mulholland Dr. (Mulholland Drive, 2001) e mesmo aquele que ainda é o seu último filme, Inland Empire (2006). Hoje parece evidente que Fire Walk With Me abria portas novas no cinema de Lynch. O Festival de Cannes não o entendeu dessa maneira. Os apupos foram vários aquando da sua passagem – então, em competição – pelo festival, no ido ano de 1992. 25 anos depois, os apupos transformaram-se em aplausos. Mas nada mudou essencialmente em Lynch. Este continua a (saber) trair as nossas expectativas. O primeiro episódio do novo Twin Peaks começa onde a viagem de Fire Walk Me termina: num limbo vermelho, que se parece com um cabaret, onde as palavras – e os gestos – se revertem temporalmente, ganhando um estranho grão de desconformidade, digo, de “edadimrofnocsed”. Laura Palmer morreu, o mito, esse, está vivo, num além qualquer. Um além-filme ou um além-série. Fire Walk With Me começa com uma televisão destruída. É tempo de colar os cacos e refazer o que nunca feito esteve. Refazer o desfeito para produzir o quê? Acima de tudo o choque de não sabermos ao certo onde estamos. Esta é a primeira grande ironia produzida nesta hora inaugural: voltamos a uma casa que nos acolheu, durante tanto tempo, mas já não a reconhecemos. Não a reconhecemos porque ela não nos faz reconhecimento. “Seja bem-vindo a Twin Peaks”, lê-se na famosa tabuleta. Contudo, Lynch não voltou a Twin Peaks para nos oferecer bom “entretenimento familiar”. Não digo “familiar” como “para toda a família”, digo-o literalmente como algo que, promovendo a nostalgia, revisitamos – e que nos revisita – sem criar desconforto.
Pois então que se desengane o espectador mais distraído – e alheado do que Lynch sempre procurou no seu cinema. O primeiro episódio do novo Twin Peaks é uma coisa além de Twin Peaks. A série antiga sinaliza-se pela presença (quase puramente) simbólica das velhas personagens, mas o grosso aqui é de uma estranheza constrangedora. E diria que nos lembra mais imediatamente menos do que ficou lá atrás suspenso, há 25 anos, do que o que aconteceu entretanto, nomeadamente Lost Highway, Mulholland Dr. e Inland Empire. A estrutura é episódica, lembrando os saltos narrativos destes dois últimos filmes – sobretudo Mulholland Dr. e o seu enredo de “anedotas” que se sucedem como um zapping absurdo, narrativa descontinuada que vai frustrando a resposta à questão “até onde isto nos leva?”, ou melhor, “o que quer ele dizer com isto?” Se o leitor esperava dar de caras com a ambiência de Twin Peaks e uma ligação evidente ao seu “mistério”, pois então esqueça. Isso não aconteceu agora e – estou em crer, mas posso vir a ser enganado, de novo – não vai acontecer nos episódios que se seguem. De nada nos valerão as nossas moles expectativas. O primeiro episódio trai muito. A realização é tão discreta que ousaríamos já dizer – para nossa decepção – que é perto de anónima comparada com o habitual David Lynch. A palete cromática adormece, a paisagem sonora não arranca, a acumulação narrativa – e os seus gags contidos – demora a provocar alguma faísca, a porta para o grande mistério – aquele que nos sugou no primeiro episódio da primeira temporada – não chega propriamente a abrir.
É verdade que Lynch nos dá muita coisa – por exemplo, uma história de crime insólita mostrada como uma espécie de CSI esquálido e desglamourizado. Mas precisamente por nos dar tanto tudo sabe a tão pouco. Não há cores, gestos, movimentos, paisagens (mergulhos no escuro…) que nos assombrem. Assistimos a tudo como aquela personagem que tem como profissão assistir, sentada no sofá, a uma possível aparição de alguém ou qualquer coisa dentro de uma caixa envidraçada. À distância assistimos ao desenlace desta “estória”, desta “anedota” lynchiana inesperadamente mortiça. Tudo é cinzento e adormecido ao ponto de me apetecer dizer que Lynch parece estar teimosamente receoso de, já ou em qualquer altura, “sair da caixa”. Este primeiro episódio é perverso: parece querer dizer-nos que o novo “sair da caixa” é, afinal, um não “sair da caixa”. Lynch recuado, a jogar à distância com a nossa condição. De humanos? Não, de telespectadores nostálgicos. A ousadia é grande, mas pode minguar se a sensação de vácuo der lugar ao vácuo ele mesmo. E se a mão que dá um murro nas nossas expectativas virar a mão que esconde o nosso bocejo?