O imperdível ciclo dedicado a Kenji Mizoguchi no Espaço Nimas e no Teatro Municipal Campo Alegre entra na sua segunda parte com Yokihi (A Imperatiz Yang Kwei-fei). É uma obra que marcou várias primeiras vezes para o autor japonês: foi o seu primeiro filme a cores, a primeira co-produção com um estúdio estrangeiro (a produtora Shaw Brothers) e a primeira vez que a narrativa tem lugar num país que não o Japão.
O cinema de Mizoguchi não precisava de cor para irradiar o seu esplendor pictórico, mas esse efeito de novidade cromática é parte da explicação porque Yokihi é tão extraordinário. Supostamente, foi a possibilidade de filmar a cores uma das coisas que, no projecto, interessou o cineasta. A outra foi o potencial decorativo que a história oferecia.
Yokihi é um jidaigeki, um drama histórico, mas, ao contrário de outros filmes do género de Mizoguchi, passa-se na China e não no Japão, mais precisamente no século VIII, durante a dinastia Tang. A história que inspira Yokihi é relativamente popular na região: um amor trágico entre o imperador Xuanzong (no filme interpretado por Masayuki Mori) e a sua concubina (não imperatriz!), Yang Guifei [Yang Kwei-fei] – ou Yokihi em japonês – uma antiga criada, Yang Yu-huan, que ascende a concubina de alto estatuto (a actiz Machiko Kyo dá-lhe vida no filme). Como um bom drama de corte, Yokihi tem a sua quota parte de intriga. Ela é levada para o palácio por familiares corruptos que querem ser favorecidos. Quando tal não sucede da forma planeada, é a fiel Guifei que é acusada de quebrar as regras por se ter imiscuído em assuntos políticos. Uma revolta ameaça a posição do imperador e os insurrectos pedem a morte dela para restaurar a ordem interna. E ela entrega-se com serenidade submissa, para salvar o homem e a nação – mas em vão.
O sacrifício de uma mulher de princípios pela vida de um homem não é tópico novo em Mizoguchi. Apesar da localização geográfica atípica, Yokihi partilha várias características com outros filmes seus, tanto temáticas como estilísticas. Os protagonistas de Yokihi já haviam trabalhado com Mizoguchi antes, nomeadamente em Ugetsu (Contos da Lua Vaga, 1953), também ele um filme com uma dimensão fantasmagórica. Espíritos e fantasmas são, aliás, figuras comuns na produção cultural chinesa e japonesa, desde há muito, e continuam a ter estranhos ecos em práticas que ainda persistem (google-se “ghost marriages”).
Apesar da localização geográfica atípica, Yokihi partilha várias características com outros filmes de Mizoguchi, tanto temáticas como estilísticas
Se é verdade que Yokihi resultou de uma co-produção Daiei-Shaw, que tinha em vista o mercado de exportação regional, onde se destacavam centros de audiências chinesas como Hong Kong, Taiwan ou Singapura, também é verdade que a história e o universo de Yokihi não eram estranhos no Japão, onde eram relativamente conhecidos (há uma variante da lenda que diz que Guifei escapou para o país). Esta colaboração na produção deu-se no contexto da formação, em 1953, da Federation of Motion Picture Producers of Southeast Asia, que estabeleceu o Asian Film Festival, precursor dos actual Asia-Pacific Film Festival. Todavia, Yokihi fracassou nas bilheteiras e não teve o sucesso internacional esperado. Em 1962 o estúdio Shaw Brothers produziria um remake chinês do filme, Yang Guifei (The Magnificent Concubine, 1962) realizado por Li Han-shiang e que foi premiado em Cannes.
Vários críticos consideraram Yokihi mais oco e com menos intensidade dramática do que os filmes de Mizoguchi passados no Japão. No entanto, a trama de amores fantasmagóricos e conspirações está repleta de emoções, buscas quiméricas por amor ou poder, constantemente a querer irromper da sua contenção nos sumptuosos cenários quase sempre interiores. De facto, é quando o imperador e a concubina, disfarçados de “plebeus,” saem para o mundo lá fora para assistir às celebrações do festival das lanternas, que o que os une realmente se confirma nessa ilusão de liberdade. Mas esse mundo da rua é ele próprio de pompa e fantasia. A incursão exterior é, igualmente, elucidativa da celebração de diferentes artes que é feita ao longo do filme: música, dança, escultura, etc.
O aparato de teatralidade de Yokihi é parte da força do filme, e não será descabido notar que poderá ter inspirado autores contemporâneos, como Hou Hsiao-hsien – pense-se em Nie Yinniang (A Assassina, 2015), onde elementos como cortinas são usados de forma muito similar. Mizoguchi preparou o filme minuciosamente. Na pesquisa e escolha de objectos houve um enorme trabalho, feito tanto no Japão como com especialistas de Hong Kong. Os créditos iniciais, aliás, surgem sobre imagens de obras de arte. Mas embora a dinastia Tang tenha marcado um apogeu de confluência cultural entre a China e o Japão, Mizoguchi é criativo na sua reconstituição da época. O realizador, que na juventude chegou a ser aprendiz de um desenhador de quimonos, tem aqui uma das mais extraordinárias mise-en-scène da sua carreira. Cenários e figurinos são fulcrais para o filme, talvez tanto quanto as personagens que os habitam.
Em todo o caso, para um filme que revolve em torno do espectáculo visual, duas das melhores cenas são marcadas precisamente pelo que não se vê. Primeiro, a cena da execução de Yang Guifei, onde a câmara nunca se levanta o chão onde ela abandona parte das vestes, os sapatos e, finalmente, as jóias caídas, ela deixando de estar – na imagem filmada e no mundo. A outra cena é o final encantatório com os risos do reencontro celestial dos amantes, que não vemos, apenas ouvimos.
Yokihi pode dividir opiniões, mas é também frequentemente lembrado por ser o filme japonês favorito de Manoel de Oliveira. Só essa “recomendação” já justifica a ida ao Espaço Nimas ou ao Teatro Campo Alegre para aproveitar a oportunidade rara de ver Yokihi no grande-ecrã.
Yokihi será exibido no Espaço Nimas, em Lisboa, nos dias 16, 17, 21, 22, 26 e 27 de Maio e no Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto, nos dias 19, 20 e 25 de Maio, e 11 e 19 de Junho.