Fala-se amiúde da falência da vaga de cineastas dos anos 1990. E em boa verdade vários são os nomes que se eclipsaram com a entrada do milénio: Chen Kaige evaporou-se (e ainda bem), Zang Yimou tornou-se decorativo, Panahi está preso (literalmente, o que não o impediu de ir fazendo grande cinema), Kiarostami e Kieslowski faleceram, Lars von Trier é afinal um provocador semi-oco, Almodóvar de vez em quando acerta (mas só de vez em quando), Jane Campion fica-se pela delicadeza desinteressante, Mira Nair é uma realizadora de um só filme, Kusturica é um pindérico levado em ombros, Haneke não é humano, Zhangke virou-se para a telenovela, os Coen cristalizaram-se num pastiche de si mesmos e os Dardenne estão presos no ciclo vicioso da sua autoria, Leigh, Moretti e Tarantino são a excepção que confirma a regra, Kitano tem mais que fazer assim como o artista plástico David Lynch. David Lynch: The Art Life (David Lynch: The Art Life – A Vida Arte, 2016), de Jon Nguyen, Olivia Neergaard-Holm e Rick Barnes, fala desse artista plástico que a certa altura se desviou pelos caminhos enfermos do cinema e demorou três décadas a conseguir voltas às pinturas. Aliás, fala da criança-adolescente-jovem-adulto que outrora fora – antes do dito desvio – segundo a perspectiva de quem olha para trás (para as próprias memórias refundidas pelo cinema).
David Lynch: The Art Life é um documentário que pouco acrescenta, de facto, à figura que qualquer cinéfilo formou do realizador norte-americano. Centrado no intervalo que vai da infância à rodagem de Eraserhead (No Céu Tudo É Perfeito, 1977), o filme realizado a seis mãos recusa paulatina e sistematicamente as imagens de cinema de Lynch (se por vontade ou imposição pouco importa) e acrescenta, a essa estratégia de concentração, um olhar que apenas se interessa por Lynch, as suas palavras (o filme funciona quase como um monólogo auto-biográfico), os seus desenhos, as suas pinturas, os seus cigarros, as suas lembranças. No entanto, é importante afirmar que no filme de Nguyen, Neergaard-Holm e Barnes nunca se propõe uma visão narrativa linear sobre a história de vida de David Lynch, pelo contrário. Parece-me que ao invés de se construir uma história pessoal com um arco bem delineado, o filme e Lynch – enquanto extraordinário contador de anedotas – promovem a ideia do episódio como elemento fundacional do percurso lynchiano.
A maior singularidade de David Lynch: The Art Life é este fazer-se qual ramerame psicanalítico que, pelo condão da fadiga, nos emerge no modo de pensar lynchiano.
De facto The Art Life apresenta-nos uma série de episódios desgarrados (em ordem cronológica) mais ou menos reveladores da experiência do mundo segundo David Lynch (e que iluminam, de certo modo, o seu cinema posterior – e provavelmente à luz deste): o momento em que o pai o chama, e aos irmãos, para jantar e surge nos relvados uma mulher nua, ensanguentada, num enorme pranto, que se vai sentar na berma da estrada; ou aquela situação em que, a meio da noite, um estrondo enorme se faz ouvir na casa dos vizinhos da frente e depois… Lynch não chega a contar o que se passou; ou a primeira vez que o cineasta-pintor (ou pintor-cineasta) fumou um charro e as linhas da auto-estrada continuaram a passar-lhe ao lado embora já tivesse estancado o movimento do carro – antecipando os múltiplos planos da sua cinematografia em que as luzes narcóticas dos faróis iluminam os traços intermitentes que dividem ao meio o alcatrão.
Mas se dificilmente se pode dizer que nos foi revelado algo de novo sobre a personalidade do mito (ou a mitologia da personalidade), também é certo que este filme se propõe a uma estranha operação de conquista metódica do espectador pelo cansaço. The Art Life é um filme com um ritmo soporífero e à medida que os minutos se estendem e Lynch nos conta as suas histórias, entre o banal e o macabro, vamo-nos instalando num sedativo onirismo auxiliado pelas profusas baforadas de cigarro que chegam a encher toda a tela de branco. Este estado de alma que nos acolhe trabalha a favor de duas coisas: uma, importar o universo surreal do cinema de Lynch para a própria experiência de um documentário sobre a juventude do realizador (quase como que se um pressagio se tratasse); dois, levar-nos a encontrar no trabalho plástico inicial de Lynch as sementes do seu cinema, ou inversamente, encontrar no trabalho plástico recente de Lynch o paroxismo do seu olhar fílmico.
Servem estes vários exemplos para argumentar a favor daquela que me parece ser a maior singularidade de David Lynch: The Art Life: fazer-se qual ramerrame psicanalítico, ou moinha auto-novelizadora, que pelo condão da fadiga nos emerge no modo de pensar (se é que é sequer um modo pensante) lynchiano. O resultado não é pois uma transferência de conhecimento sobre a natureza do cinema — da arte, da vida, da arte-vida – do realizador, antes o ensaio de uma forma de sentir de outrem que se desenvolve em hora e meia e se esgota no correr dos créditos finais. Uma espécie de partilha sensível (logo não-analítica) desse adjectivo que já quase perdeu o referente, lynchiano.