Em filmes colectivos onde vários realizadores assinam curtas-metragens sob um chapéu agregador – mais ou menos amplo – há o hábito de as dissonâncias que as obras provocam num conjunto polifónico do filme serem maiores que os acordes que se estabelecem entre cada uma delas. Eros (2004) é uma dessas obras colectivas, assinada por Wong Kar-wai, Steven Soderbergh e Michelangelo Antonioni sob o chapéu – titular – do erotismo. Na verdade este omnibus (como lhe chamam os anglófonos) tem origem no desejo de encontrar um espaço para o então nonagenário Antonioni fazer o seu último filme – ele que já estava bastante doente à altura, quase cego mesmo. Não é pois por acaso que os segmentos de transição que separam cada uma das curtas sejam acompanhados pela voz de Caetano Veloso cantando, nem mais nem menos, “Michelangelo Antonioni“. Mas dizia, é comum nestes projectos que a singularidade de cada autor envolvido prejudique a unidade da empresa, na medida em que os filmes se vêem obrigados a comunicar (de forma por vezes forçada) mesmo quando têm pouco a dizer uns aos outros: como as gentes que quando não têm o que dizer falam da atmosfera e do comer. Não é (totalmente) o caso, em Eros, onde as três curtas-metragens trabalham sobre uma ideia de cinema fundamental: o fora de campo.
The Hand, o tomo de Kar-wai, é disso um exemplo claro. Nos seus mais de 40 minutos o filme conta a história de um alfaiate apaixonado por uma prostituta, um amor consumado no momento em que se conheceram e nunca depois prosseguido. Estamos em território Kar-waiano puro: a chuva cai lá fora, ocupamos quartos e corredores de hotel mal iluminados, ouvimos conversas trocadas em murmúrio, os violinos tocam, os homens envergam delicados bigodes e a brilhantina cobre-lhes a fronte, os rostos iluminam-se levemente contra a negrura dos fundos sedosos e a câmara enquadra, com igual destaque, a acção dos personagens e o papel de parede (a mão do director de fotografia Christopher Doyle). The Hand enquadra-se na obra do realizador de Hong Kong na ressaca estética de 2046 (2004) – a sequela (nos dois sentidos da palavra) de Faa yeung nin wa (Disponível Para Amar, 2000) – e antes da sua funesta incursão americana My Blueberry Nights (My Blueberry Nights – O Sabor do Amor, 2007). É portanto um filme que de certo modo marca o momento de declínio popular e crítico do realizador que tivera nos anos 1990 a sua fase áurea. Como ponto de viragem manifesta as qualidades que elevaram Kar-wai a grande autor mundial e, simultaneamente, as fragilidades do estilo que o consagrou (ou o estilo como fragilidade). Há, neste The Hand, a cristalização de um modo de fazer que, ainda assim, tem a ousadia insubmissa dos seus primeiros filmes.
Mas regresso ao fora de campo, uma das primeira cena do filme (e que espoleta – literalmente – toda a narrativa) é o tal encontro consumado entre o alfaiate e a prostituta que se faz através da homónima mão do título. Posto doutro modo, Gong Li acaricia Chang Chen através de uma mise en scène obscura que só nos dá a ver os rostos e as suas reacções àquilo que a mão faz no fora de campo. Mas já antes Kar-wai usara o fora de campo nas cenas do telefone, dos gemidos por detrás das cortinas ou como forma de nos escudar da decadência da prostituição e esse será o signo do seu olhar: a câmara que esconde a mão e a mão que tapa da vista. Um jogo de gato e rato feito exercício de prestidigitação erótico onde o que se esconde na manga é mais que a agulha do alfaiate. Aliás, The Hand é um freudiano sonho molhado sobre os mecanismos das substituição fetichista que encontra o seu auge perverso no fisting de tafetá em que Chang Chen penetra o vestido nunca estreado de Gong Li. As nuances de Kar-wai desfazem-se quando tudo se explicita num final onde se ouve que a mão do alfaiate conhece melhor o corpo da cliente, do que a mão de qualquer amante. Mas gostoso é o facto de essa mão conhecedora ser, afinal, guiada pela memória da outra mão: a punheta da máxima inspiração. Um conto que mais parece uma exploração linguístico-psicanalítica das significações da palavra “mão”.
Nem de propósito o segundo episódio, Equilibrium de Steven Soderbergh, passa-se quase integralmente no divã do psicanalista. Como é comum no cinema de Soderbergh tudo aqui é uma anedota contada com um virtuosismo elegante e frio – coisa improvável quando o erotismo é a charneira do projecto, mas expectável quando se compreende que esse é o veio comum do cinema do realizador. Ao longo da carreira, e de forma mais pronunciada depois de Traffic (Traffic – Ninguém Sai Ileso, 2000), os seus filmes vêem-se distanciando dos seus personagens num acto de desprendimento, cada vez mais pronunciado, ajudado pelas tramas: os trabalhadores do sexo – The Girlfriend Experience (Confissões de Uma Namorada de Serviço, 2009) e Magic Mike (2012) –, o perigo de contágio mortal – Contagion (Contágio, 2011) –, a coolness dos seus protagonistas que permitia ver pouco mais do que as próprias estrelas a gerirem o seu brilho – a trilogia Ocean’s –, a cinefilia autofágica – The Good German (O Bom Alemão, 2006), já anunciada nesta curta que é uma ode à fotografia dos noirs e à década de 1950 –, a droga como a forma mais eficaz de nos desligarmos do mundo – Side Effects (Efeitos Secundários, 2013). Muito do seu cinema se “liga” ao alheamento do mundo, talvez pelo medo que tinha dos seus personagens.
Equilibrium é mais uma vez um filme feito sobre o fora de campo, desta feita um fora de campo de dupla natureza: referente ao protagonista (Robert Downey Jr.) e a nós, espectadores. A sessão de auto-análise organiza-se, afinal, segundo dois eixos aparentemente opostos, a profundidade de campo (que dá a ver) e o fora de campo (que esconde): através da primeira temos acesso àquilo que se passa nas costas do protagonista, através da segunda é nos negado conhecer o que se passa além da janela (negação semelhante à do personagem). A brincalhona manipulação soderberghiana ganha novo revés quando este exercício formal se verte no binómio sonhar-a-dormir/sonhar-acordado, isto é, quando o filme se transforma num confronto entre as fábulas do inconsciente e as efabulações do consciente (a oposição entre o sonho recorrente do paciente e o voyeurismo do terapeuta – Alan Arkin). Um humor fino e finamente escrito que termina com uma punchline descabelada (literal e formalmente – já que na sucessão de aviões de papel também o filme se desfaz do seu manto de credibilidade revelando todos as tomas necessárias para criar um plano eventualmente cortado – o outro e definitivo fora de campo do cinema).
Se The Hand trabalha o que não se vê e Equilibrium reflecte sobre os diferentes graus de obstrução, Il Filo Pericoloso Delle Cose, o terceiro e último tomo de Michelangelo Antonioni (último também no sentido de derradeiro), explora a ideia do erótico como fora de campo pelo sentido mais improvável: a frontalidade, ou melhor, a frontalidade do nu. A pedra-de-toque do cinema de Antonioni está repleto de mulheres desnudas (João César, foste tu?) que se passeiam sob cedas transparentes e proferem linhas de diálogo misteriosas. À estreia a maioria da crítica norte-americana arrasou o episódio do italiano (louvando unanimemente o do chinês): Rosenbaum descreveu-o como “clumsily acted and closer to standard porn than anything else he’s done”, A.O. Scott vê-o “between a Mad magazine satire and a Maxim photo spread” e Roger Ebert concluiu com “The result is soft-core porn of the most banal variety”. Aos dias de hoje o filme constitui-se como um objecto de surpreendente força e estranheza (forte porque estranho): começando pela dessincronia dos diálogos – piscadela de olho à trilogia dos casais tristes –, que juntamente com a banda-sonora pornô à anos 1970 e a resplandecência da alta-definição digital tornam a curta-metragem num objecto anacrónico sem referente no cinema contemporâneo. Aliás, das maiores maravilhas de Il Filo Pericoloso Delle Cose é o modo como, a espaços, se encontram planos que podem facilmente tornar-se independentes. Essa singularidade em potência manifesta a contemporaneidade do olhar de Antonioni (que depois de fundar o olhar moderno, procurou encontrar, nos seus últimos trabalhos, a vibração do novo milénio), que procura a sublimação em pequenos gesto, em certas vista e em certos olhares.
Il Filo Pericoloso Delle Cose sucede-se em composições de grande pujança dramática e simbólica: o plano de abertura da mulher dormindo ao sol, outra cavalgando à beira mar, o copo que cai da mesa e rola no solo, as musas cantando na água, o pé que antevê a masturbação, os bailados nus no quebrar das ondas, o plano final onde uma mulher faz sombra na outra. Esta desagregação formal do filme a partir de dentro é a mesma da narrativa. Há, nesses planos, uma ideologia do olhar que vagueia fora dos trâmites narrativos clássicos e que não anda muito longe de alguns filmes tardios de Jean-Luc Godard ou mesmo (o horror!) Andrzej Zuławski: uma força simbólica que se desconstrói através do excesso, uma pureza anti-interpretativa que encontra em certos planos uma estética paroxística. Isto porque do mesmo modo que vemos um filme em que o realizador sabe que se encaminha para a morte, as próprias imagens parecem já destituídas de uma vida concreta, parecem já apenas signos de gestos, apuramentos formais extremos (Antonioni à Straub? à Costa? vice-versa?) do real que o destituem da sua concretude. É daí que se justifica (ou melhor se compreende) a aproximação ao soft-porn e ao euro-trash erótico, porque aí tudo aparecia já refinado pelos esquemas explorados ad nauseam pela pornografia, refinamento esse que, por um caminho mais longo e tortuoso, não é muito diferente do rigoroso lirismo epopeico de Straub e Costa. Desse confronto irónico surge Il Filo Pericoloso Delle Cose, um louvor ao fim das coisas, contente de as ver partindo. Ou como diz, a certa altura, um dos personagens, “andas sempre à procura da pureza, mas acabas sempre na merda” – ou como encontrar na merda a pureza.
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Este texto, continua a rubrica Cinema em Casa onde regularmente o À pala de Walsh fará os destaques de lançamentos DVD/Blu-Ray /VOD no mercado nacional. Eros pode ser visto em streaming na mais recente plataforma de VOD nacional, a Filmin. O À pala de Walsh, em colaboração com a Filmin, dá a possibilidade ao leitor de se habilitar ao acesso temporário à plataforma de forma a ver o filme. Eros está acessível para visionamento na plataforma streaming Filmin. Para se inscrever no sorteio de dez códigos que temos para oferecer basta que partilhe nas redes sociais o link desta crítica e envie um mail para apaladewalsh@gmail.com com o seu primeiro e último nomes e a resposta à seguinte pergunta:
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