Felicité é uma ficção do franco-senegalês Alain Gomis e, em 2017, valeu-lhe o Urso de Prata em Berlim. A 1 de Junho, chegou aos cinemas portugueses. Na antestreia no cinema Monumental, na passada noite de segunda-feira, a walshiana Sabrina D. Marques moderou uma sessão de Q&A com presença do realizador. A primeira estreia comercial de Alain Gomis em Portugal é, seguramente, um dos maiores títulos do ano – um filme surpreendente e transversal, tão misterioso quanto afectivo. Criado em França com os olhos voltados para África, pela quarta longa-metragem Gomis regressa às suas raízes e vinca o seu nome num cinema em contínua expansão – e do qual, seguramente, vamos ouvir falar muito mais.
(A ÁFRICA QUE SOMOS TODOS)
21h45. Voltado para uma sala repleta, Gomis preferiu não adiantar detalhes sobre o filme antes da exibição, para em seguida responder às perguntas da plateia. A quem estava, deixou apenas um aviso: ‘‘Não se preocupem em perceber tudo.’’
Félicité existe para lá de diferenças culturais, certificando que, de Kinshasa a Lisboa, nada de essencial separa o drama daquela mãe, que prossegue até às últimas circunstâncias, de outra mãe em qualquer parte. A luta da mulher que empresta o seu nome ao título sublinha ‘‘uma mensagem de esperança’’, ressalva Gomis. E se há uma grande ideia que o seu cinema transporta, filme após filme, é a de que, apesar das circunstâncias, a felicidade é activamente uma escolha porque a vida é activamente uma escolha. ‘‘Nos bairros populares de onde venho, crescemos com a ideia de que a vida é o que vemos em imagens. E estas imagens não correspondem ao que vivemos. Isso gera o sentimento de que aquilo que nós vivemos é ‘uma espera por’ e que não é ‘a vida boa’. No entanto, é objectivamente a vida vivida pela maior parte. Isto cria uma violência, algo de verdadeiramente terrível – da ordem do ódio por si mesmo. Como se algo nos tivesse sido roubado. (…) É algo repugnante, criado pelas dinâmicas das sociedades liberais. (…) Com Felicité, sentia a vontade de me reapropriar, de dizer que não só esta vida é a vida verdadeira, como ela vale por si.’’
Félicité parece surgir como um recado para o tempo presente: em horas de tumulto e de antagonismo entre europeus e ‘outros’, esta narrativa aproxima-nos com denominadores comuns. Claro que esta é uma história simultaneamente particular e universal, sobre valores e sobre seres humanos. Claro que este é um filme sobre uma família – uma mulher, um homem e um filho. Mas, se também é certo que este é um encontro, tão duro e tão belo, com as desigualdades de um mundo onde o dinheiro sufoca a continuidade basilar da condição humana, a espessura da experiência cinematográfica, no seu sentido mais absoluto, resgata-nos da secura do drama social, do retrato etnográfico, do manifesto militante ou de quaisquer fórmulas reconhecíveis. Felicité não deixa, no entanto, de ser um objecto activamente político e anti-capitalista desde a génese: a derradeira amputação do corpo jovem porque a sua família não tem dinheiro vem representar a sabotagem geracional da sociedade pela via da estratificação económica. No panorama internacional, explica Alain Gomis, África está largada ao ”que se desembrulhem!”. Discursando sobre uma cidade, um país e um continente mas, principalmente, sobre um sistema global, Félicité é um manifesto lúcido e cru sobre os ciclos de perda social, civilizacional e humana que contaminam, pelos endógenos valores invertidos do neo-capitalismo, o verdadeiro osso da unidade até nas mais ancestrais comunidades.
01h12. ‘‘Há coisas que são indizíveis e que, quando se transformam em palavras, perdem a sua plenitude.’’ Diz-nos Alain Gomis, sentado num bar mal iluminado com uma imperial à frente. No rescaldo da sessão, ali enrola um cigarro enquanto confessa que há assuntos sobre os quais não gosta de falar porque não cabem no discurso. Alto e tranquilo, de longas rastas, olhos rasgados e tez mestiça, Gomis distingue-se nos seus modos gentis, aquela espécie de nobreza recatada em que permanentemente observa, atento, e que convoca a nossa empatia. Ao seu público, ainda agora revelara que a história do filme Félicité, maioritariamente escrito por si, começara com a música ‘‘Ain’t got no, I got life’’ de Nina Simone. A mulher negra da canção não tem casa, nem dinheiro, nem perfume, nem cultura…, mas tem o seu corpo, a sua alma e a sua vida para manter – ‘‘I’ve got my life / and I am gonna keep it’’. Esta resistência é a mensagem profundamente política de Alain Gomis, veiculada por um cinema que existe, como se escreveu um dia no Le Monde, em ”tensão permanente entre identidade e liberdade”. Gomis afirma que ‘‘há um momento em que se toma a decisão de escolher a vida’’ e esta escolha é a derradeira performatividade. Talvez seja por isto que, invariavelmente, cada um dos seus filmes se constrói sobre a travessia imparável de um protagonista que luta e prossegue, em resistência contra as circunstâncias. É, verdadeiramente, um cinema de exaustão posto em marcha. ‘‘Em Dakar, o caminho é algo em si, é um direito’’, explicou Alain Gomis.
Em L’Afrance (2001), o jovem senegalês El Hadj enfrenta o corrupio burocrático dos sans-papiers – desmantelando a hipótese de síntese entre África e França imediatamente proposta pelo título. Em Andalucia (2008), o jovem árabe Yacine (numa memorável performance do actor Samir Guesmi) deambula pelo seu destino incerto, nómada e desenraizado, reflectindo acerca da história dos excluídos em França – os africanos, os árabes e os orientais. Em Aujourd’hui (2013), o último dia de Satché, o homem inexplicavelmente escolhido pela sua comunidade para morrer, é o caminho de um morto-vivo, entre a hipocrisia e a difusão da própria identidade – e mais uma vez, a história de uma juventude que se desperdiça evoca todos os jovens sem saída. Destes filmes de proximidade, construídos como viagens interiores, talvez Félicité seja o mais íntimo e o mais respirado, na lentidão compassada da sua impressão ‘‘documental’’, que fecha o close-up e escasseia em diálogo. Mas todos estes dramas preservam qualidades do conto-de-fadas: a construção assenta na realidade das circunstâncias sociais e temporais presentes, mas protege uma metafísica que liga os personagens a uma origem insondável, mágica e espiritual. Ao fundo, ensaia-se a razão ancestral de tudo, aludindo a outros níveis da consciência e da experiência. Há fantasmas. Há mitos. Há tradição. E claro, há a música, primeira linguagem do inefável em qualquer sociedade humana. E como não é preciso perceber tudo, pouco importa o que significa aquele okapi que revisita os delírios de uma Félicité que se submerge na escuridão ou que magia é essa que continua a personificar a noite, que age sobre protagonistas e caminhos. Arrisco: será Nyx, a deusa grega da noite? ‘‘Não importa. Para mim, a origem de todas as mitologias é a mesma porque todas as cosmogonias têm elementos em comum – das lendas locais do Congo até Dante, das religiões animistas até à Grécia Antiga.’’ Com Alain Gomis, pela mão do mistério, vamos de filme em filme como quem vai de noite em noite.
01h45. Alain nunca se escusa a uma pergunta mas não há resposta que não resuma num ou dois versos, sábia e profeticamente. Pergunto pouco, pergunto em geral… Se foi artista de outras artes? Não poderia, pois precisa da potência cifrada da imagem cinematográfica. Se nem poesia escreve? Apenas nos guiões. E neste momento, ri-se genuinamente, como quem sublinha a sua crença nesses guiões rigorosa a atempadamente escritos: ‘‘Sim, de facto, muitas vezes eles falam como quem diz poemas!’’
Cada narrativa é uma equação de equilíbrios, que tem vindo a ser progressivamente apurada sem deixar de revelar o seu interesse pelas figuras arquetípicas. Encontramos o velho Sábio que fala com extrema lucidez sobre o rumo do protagonista (em Andalucia e em L’Afrance). Encontramos o Destino como uma força que foge ao controlo do protagonista (em Aujourd’hui). E encontramos ainda, em cada um dos heróis de Gomis, vestígios da biografia de um herói da tragédia clássica, enobrecido por um carácter superior que enfrenta os obstáculos com a mesma força moral.
Outra das mais clássicas marcas presentes em Felicité é a existência pontual de um Coro, que funciona como um barómetro oscilante dos estados de emoção da protagonista. Neste filme que partiu de uma canção, a música está ostensivamente presente e actua em polissemia. Manifesta-se como o mais visceral meio de comunicação desta mãe-cantora que, contida nas palavras, assim partilha os seus estados de alma – especialmente no limite em que se recusa a cantar. Mas é através dos sucessivos temas religiosos executados pela orquestra local que a música se suspende com a exterioridade de uma voz divina. A sociedade hostil apresenta-se como uma sinfonia de ritmos contraditórios: tanto ecoa na música festiva, partilhada pelas danças comuns e facilmente alcóolicas, como no solene aguço dramático dessa voz colectiva, a culminar na suprema melancolia que (a noite e) o silêncio instalam.
”Mais celestes que essas estrelas cintilantes parecem-nos os olhos infinitos que a noite abriu em nós.” Novalis (Hinos à Noite)
”Sabes o muito que a manhã faz pela civilização até por cortar o caminho àquilo que começamos a ver com clareza no escuro, quando os sentidos se alteram.” Diogo Vaz Pinto
A construção visual de Félicité é experimental e de um hibridismo difícil de mapear. E se esse realismo dos contextos resulta da efectiva escassez do orçamento (são reais os lancinantes gritos que se ouvem no hospital, que não é um cenário), este é o mais trabalhado dos filmes de Alain Gomis no que respeita à duração dos planos (a transparecer as assumidas influências em Wang Bing ou Apichatpong). A câmara próxima age como um instrumento de subjectividade, que abre o acesso a uma protagonista observada em plano íntimo. Realidade que se sente e se acentua pelo facto da extraordinária actriz principal, Véronique Beya Mputu, ser actriz não-profissional e ter trabalhado meses a fio junto do realizador, na construção da sua personagem, diálogos e guião. Desafio superado, feito numa verdadeira dedicatória à força do feminino. A libertação acelerada desse jazz de Nina Simone parece ter ficado mais vincada em digressões prévias que, mais improvisadas e humorísticas, apresentam as intrigas como performances onde indistintamente se fundem vida e arte. Recordo as incansáveis investigações de Yacine entre as figuras do passado: suspeitando que figurar é ‘‘colocar na História’’, meditou entre os bustos de cera e os personagens dos filmes, entre os quadros dos grandes museus e os muros das ruas, entre a beleza na publicidade ocidental e as paredes preenchidas da caravana onde vivia e onde ensaiava, entre apontamentos e recortes, um inquérito estético sobre a história da opressão dos povos.
–Nós somos belos. (disse Yacine a outro árabe que encontrou no supermercado)
–Nós somos belos, nós somos a verdade. (disse o congolês Tabu ao seu enteado)
Em entrevista, Gomis reconhece que escreveu o que poderia dizer ao seu próprio filho. São várias as cidades e as culturas que se misturam, mas a sensação de inadaptação nunca abandona os seus heróis que, frequentemente, terminam os filmes a sós, mais voltados para si ou para a natureza em bruto (que é uma só e maior do que qualquer civilização).
Vejo todos os seus filmes de uma vez e demoro, longamente, a perguntar-me sobre toda aquela África. Aquela África negra, árabe, sufi, cristã, mística, animista. Aquela África à flor da pele. Aquela África dos sentidos. Aquela África bela. Aquela África alegre e triste. Aquela África em potência. Aquela África verdade. Há ali um continente ao espelho e pareço sentir na minha pele o peso da história que cada pele negra carrega consigo. E essa necessidade de saber conduziu-me até ali, àquela mesa onde, em pele temporária de investigadora de cinema, reconhecia em auto-julgamento que não tinha visto assim tantos filmes senegaleses. (E porquê?) Nesses desabrigos da noite, atrevia-me a perguntar ao autor presente se, em suma, os seus filmes não eram, afinal, meditações sobre ser africano. E, porque tudo o que é verdadeiro é poético (diz a Adília Lopes) foi sucinta e certeiramente, como é hábito seu, que Alain Gomis concordou e rematou com a dureza da verdade: ‘‘Ser africano é o testemunho físico de uma desordem profunda.’’