Quem são Gusztáv Hámos e Katja Pratschke? A pergunta tem razão de ser na medida em que como realizadores de curtas-metragens experimentais o seu trabalho é recorrentemente deixado de lado – como quase todos os outros realizadores que não pretendem estender as metragens dos seus filmes. Ele húngaro, ela alemã, juntos desde 1998 (na vida e no cinema), são uma dupla de cineastas que trabalham quase exclusivamente o fotofilme (filme composto por fotografias à imagem dos conhecidos trabalhos dos anos 1960 de Chris Marker e Agnès Varda), tanto como realizadores mas também como vídeo-artistas, fotógrafos, artistas plásticos, programadores, curadores e teóricos. O IndieLisboa 2017 dedicou-lhes uma retrospectiva no âmbito do Foco da secção Silvestre e a walshiana Raquel Morais escreveu sobre o programa aqui, já o walshiano Luís Mendonça, no artigo publicado no catálogo do festival, descreve o trabalho da dupla como “As possibilidades são infinitas para a imaginação. O seu movimento é incessante: as fotografias desdobram-se, sobrepõe-se, empilham-se, baralham-se e combinam-se para gerar uma espécie de estereoscopia falsa. O ecrã preto é a superfície de trabalho onde opera a imaginação-que-tudo-pode de Hámos e Pratschke.” Também no âmbito do IndieLisboa fiz a entrevista que se segue. Coisa pequena, é certo, que na verdade se prolongou mais do que se esperava pelo diálogo constante que os dois realizadores trocaram um com o outro, a tal ponto que nem foi precisa uma primeira pergunta: tudo começou com uma “pergunta imaginária”…
Gusztáv Hámos: Os corvos, os corvos…
Katja Pratschke: Nós falámos com os corvos. Queríamos fazer uma reconstrução do Rashômon (Às Portas do Inferno, 1950) do Kurosawa do ponto de vista dos corvos. Foi assim que nos conhecemos. A nossa primeira ideia para um filme… foi na floresta…estávamos na floresta…
GH: Isso está a gravar? É que isto é importante. Diz lá, como é que nos conhecemos?
KP: Não, não, ele é que faz as perguntas…
GH: Ele disse que nós devíamos repetir o final da pergunta…
KP: Mas ele não chegou a perguntar nada. Ah, é como um transferência mental, ele está a enviar-te as perguntas…
GH: Tens que perceber o sistema. Eles têm que editar isto…
KP: Mas eu não ouvi nenhuma pergunta ainda.
GH: Bem, comecemos com uma pergunta imaginária. Como é que nos conhecemos? E os corvos…
KP: Pode ser?
Sim, sim, eu quero saber.
KP: Então… Eu era uma estudante na escola de cinema, e um dia os estudantes — numa escola que era muito totalitária — decidiram fazer uma greve…
GH: Mas isso é muito complicado. E então e os corvos?
KP: Vá, então conta tu a história.
GH: Quando nos conhecemos, na Polónia, estávamos a pensar num filme juntos. Foi assim que nos conhecemos. E nesse filme que pensámos fazer há uma pessoa que conta a história, e nós estávamos preocupados em descobrir quem devia contar a história, porque não queríamos um narrador. Decidimos que devia ser o corvo a contar a história da desgraça humana de Rashômon. Que teria sido outra história diferente daquela que se conta no Japão. Teria sido a história de um conjunto de refugiados que estavam a tentar passar a fronteira. De certo modo reencontrámos isto, dez ou quinze anos depois, em Rien ne va plus (2004).
KP: E conhecemo-nos na escola de cinema. O Gusztáv estava lá para mostrar alguns dos seus filmes, e eu era uma estudante lá. E foi isso… amor à primeira vista. E desde esse dia temos estado juntos.
Os filmes que têm feito juntos são bastante diferentes do trabalho que o Gusztáv fazia sozinho, antes. O que mudou?
KP: Na verdade, desde o primeiro dia eu comecei a trabalhar com o Gusztáv. Fui assistente dele no filme Sex Machine (1995) e o Natural Born Digital (1998) já foi um trabalho assinado pelos dois. E estes foram dois filmes produzidos para o canal de televisão Arte. O segundo estava incluindo num projecto intitulado Digital Spirit e o Fremdkörper (Transposed Bodies, 2002) é a consequência natural desses dois filmes. Os dois são sobre a relação entre o humano e o artificial, entre os seres humanos e as máquinas, e o Fremdkörper é sobre o transplante de órgãos e de cabeças — já tinham havido experiências nos anos 1950, de um médico russo que tentara transplantar cabeças. Por isso para nós foi algo muito fluído, passar de uns projectos para os outros.
GH: Do meu ponto de vista, os nossos filmes juntos não são diferentes daqueles que eu fazia antes. Basicamente não. Todos estes filmes exploram o próprio media, e como este funciona. As minhas primeiras tentativas de explorar isto, logo na fotografia mas também com o vídeo, foram mergulhar e confrontar-me com o media e o que podemos nele encontrar. Eram todos trabalho de análise do media [media analitic work]. A diferença para o nosso trabalho conjunto prende-se com a pergunta que nós nos colocámos: “quantos movimentos necessita uma imagem fílmica?”. E na verdade ainda estamos a tentar encontrar uma resposta para essa pergunta. Para mim, a diferença, basicamente, prende-se no facto de nós termos ido atrás, termos ido juntos às fundações, termos começado a colocar questões muito básicas sobre o cinema. E esta abordagem foi muito produtiva no modo como encarámos o media em geral.
No vosso mais recente filme, Seil (Rope, 2016), há uma descrição do cinema primitivo, das primeiras imagens em movimento…
GH: Eu diria primário, não primitivo.
KP: Ou pré-cinema.
… e aquilo que eu acho muito curioso no filme é que à medida que a velocidade entre cada fotograma do filme se aproxima dos 24 por segundo é quando a personagem morre.
[risos]
GH: Eu gosto muito dessa ideia de que é quando o filme começa a ganhar vida, quando o movimento se aproxima dos 24 fotogramas por segundo, que ele morre. Foi algo em que não tinha pensado. O que tentámos fazer, nesse filme, foi perceber o que é isso de “ocorrer movimento”. E claro, é o mesmo que sempre foi dito ao longo da história do cinema, de que a imagem em movimento é vida e a imagem parada é morte. Eu penso que isso é demasiado simplista, ainda que essa noção ainda esteja presente no nosso trabalho. Estamos a trabalhar nessa área e questionamo-nos se, de facto, as imagens paradas estão mortas, ou apresentam a morte. E se é de facto verdade que as imagens em movimento apresentem a vida. Não estou certo de que as coisas sejam exactamente assim e acho aliás que essa simplicidade não é sempre válida no nosso trabalho.
KP: E nós também queríamos falar do facto de já existir cinema antes do cinema. Pensamos sempre que a fotografia é uma imagem isolada, e quando comparamos cinema e fotografia essa é sempre a primeira conclusão. Mas logo desde o Fremdkörper nós estávamos certos que não só a fotografia não é apenas uma imagem singular como o cinema não é só a 24 imagens por segundo.
Ainda na questão do pre-cinema, o filme cita o trabalho de Étienne-Jules Marey. Mas havia vários outros, o Eadweard Muybridge e por aí fora. Precisaram de olhar para trás, para os primórdios do cinema, para poderem progredir no vosso trabalho?
GH: Bem, o trabalho deles é cronofotografia. Ou seja, é um registo que inclui tempo. Por isso é muito óbvio que devemos pensar no cinema como algo que lida com o tempo. No entanto, o mais interessante na cronofotografia é a forma como exibe o modo de registar o tempo, ou o movimento que está ligado ao tempo. Isso foi a primeira coisa que tentámos explicar em Seil. Mas depois, recuámos ainda um pouco mais, e tentámos perceber quando é que a ideia da representação de movimento primeiro ocorreu. E descobrimos que por volta de 1760 já havia representações de imagem em movimento. A pergunta que tentámos responder foi então “que condições são necessárias para representar o movimento em imagens?”
KP: E é também muito importante lembrar que Seil é uma reconstrução do conto de Ambrose Bierce, intitulado An Occurrence at Owl Creek Bridge, e este conto foi publicado em 1890, a altura em que Marey estava a fazer as suas experiências com a cronofotografia. E o Marey foi capaz de dar a ver coisas que o olhar humano não pudera até então ver. E isso ocorre igualmente na história, na medida em que mergulhamos num momento em que a duração é muito distendida, muito mais que o tempo da vida. E essa diferente percepção do tempo, que vem do conto, é também encontrada no trabalho do Marey. Pensamos que o Ambrose Bierce só conseguiu escrever a história daquele modo porque ao seu redor existiam todas estas descobertas e invenções que lidavam com a distensão do tempo – ele certamente não teria sido capaz de escrever aquele conto um século antes.
Nos vossos foto-filmes ficcionais, Fremdkörper, Rien ne va plus e Seil, as histórias das vossas personagens reflectem a natureza do próprio cinema. Gostava de saber por onde começam, pela narrativa ou pelo dispositivo que pretendem desmantelar.
GH: Por onde começamos… pelo pequeno-almoço [risos]. Sentamo-nos e falamos sobre os nossos sonhos da noite anterior. Eu só posso falar por mim, mas o que posso dizer é que eu não tenho qualquer tipo de imaginação. O que eu faço, ao longo de toda a minha vida, é pegar nalguma coisa e fazer outra coisa. Por exemplo, pego numa câmara e tiro uma fotografia, não a imagino, tiro-a, simplesmente. E depois penso, “o que raio é isto?” E tanto quanto sei, este é o modo de trabalho em que fazes coisas para as perceberes melhor. Não é algo que recebes de uma entidade divina – como diria Platão, que todas as ideias pertencem aos céus, e que apenas alguém com uma percepção divina poderia aceder às ideias e apontá-las –, é sim a capacidade de nos inspirarmos um ao outro e ter um diálogo, do qual surge a história. E isto é algo que fazemos em conjunto mas também algo que fazer com o media com o qual trabalhamos, as imagens. Mas não apenas as imagens, também as palavras, as frases, a escrita. Todo esse processo resulta nos filmes que acabamos por fazer.
KP: Penso que somos muito abertos… Na verdade, estamos à mesa do pequeno almoço e falamos, não sei… O Gusztáv esteve a ler qualquer coisa do Roland Barthes e põe-se a falar e o pequeno-almoço dura uma ou duas horas. E depois outra ideia surge e nós nunca ficamos sem ideias. Aliás, a montagem também ajuda muito a ter ideias para outros projectos, porque tens tempo para pensar, para encontrar outros caminhos. E também há as vezes em que as pessoas vêm ter connosco: o Fiasko (2012) surgiu assim, uma pessoa [Janet Riedel] estava numa conferência onde nós também estávamos e veio ter connosco e perguntou-nos se não queríamos fazer algo com ela. Nós trabalhamos muito bem com outras pessoas, não só entre nós. Há mais de dez anos que fazemos esta série de foto-filmes, não só os dois, mas também com um cientista de Hamburgo, que escreveu muito sobre o Chris Marker. Creio que nós discutimos menos sobre trabalho do que sobre as nossas coisas privadas, temos ideias muito opostas sobre a lavagem da loiça, mas sobre o trabalho há uma grande abertura, sem nunca minorar o outro. Experimentamos e tentamos encontrar soluções, e por isso é que trabalhamos juntos há mais de vinte anos.
Nos vossos trabalhos sobre as cidades [Cities (Verborgene Städte) (Hidden Cities, 2013) e Cities (Potential Space) (2014)] há um outro aspecto, no que respeita as diferenças entre fotografia em cinema, que é a questão da planura da fotografia e a sensação de tridimensionalidade do cinema. E vocês literalizam isto através da construção de um objecto poliédrico formado por fotografias. Pergunto então se depois da questão da vida/morte do cinema/fotografia, a questão seguinte era a planura/profundidade do cinema/fotografia?
KP: É um rombicuboctaedro.
GH: É um objecto tridimensional que representa um espaço. Um dos filmes das cidades trata esse aspecto directamente, o Felicita, onde tens essa qualidade estratigráfica da imagem, onde colocas umas imagens sobre as outras, mas o sol é sempre o ponto central inalterado da imagem conjunta. Esta ideia da imagem estratigráfica, inventada pelo Gilles Deleuze, é um dos principais assuntos do Seil, menos até do que nos filmes das cidades. Mas lembrei-me agora de que, num dos filmes das cidades, o Betaville, já estávamos a explorar de algum modo com este problema. Nele pegámos em fotogramas de Berlin: Die Sinfonie der Grosstadt (A Sinfonia de Uma Capital, 1927) do Walter Ruttmann e sobrepusemos uns fotogramas uns sobre os outros, criando o movimento manualmente. Isto foi inspirado pelo facto de, antes da tecnologia digital e dos ecrãs tácteis, não podias tocar nas imagens em movimento, sendo que ali é algo que está literalmente nas tuas mãos. Basicamente esta ideia, ainda que haja muitas camadas de leitura, mostra o que acontece a uma imagem quando alteras o seu contexto media. Assim que fazes uma fotografia crias um objecto palpável, mas se fizeres muitas fotografias podes afinal brincar com elas. Por exemplo, podes virar um objecto do avesso, como fizemos com o rombicuboctaedro. Mas tudo isto é sobre o media ele mesmo: se registas algo, por exemplo o som de uma palavra, já estás a mediar algo, ou quando registas uma imagem crias uma snapshot. E essa é a ideia do Henri Bergson, que a percepção humana não é capaz de compreender movimento, precisas sempre de um snapshot, de algo ao qual te possas agarrar, algo que possas agarrar. E será um trabalho mental o de justapor as várias imagens paradas para formar o movimento. O que Bergson argumenta é que toda a nossa percepção funciona desse modo, que toda a nossa compreensão e capacidade intelectual resulta do modo como compreendemos imagens em movimento – possuímos um cinematógrafo interno que ao colocar as coisas em movimento as torna compreensíveis.
KP: Nos filmes das cidades nós também começámos a trabalhar de modo distinto do Fremdkörper e do Rien ne va plus, com muitas imagens num fotograma. Essa também foi uma questão que nos pusemos, “o que acontece fora de uma imagem?” Estamos a falar da questão da tridimensionalidade do espaço e diz-se que na imagem fixa não há movimento, mas isso não é verdade, assim que a imagem pára inicia-se um movimento é que o dos teus olhos, eles percorrem a imagem. E lembro-me que várias das pessoas que viram o Fremdkörper, na altura, me dizerem que nem se tinham apercebido que não havia movimento. Assim, nos filmes das cidades a ideias era também abrir o filme, literalmente. Representar o espaço que nos envolve, não o panorama, mas todo o espaço. E depois experimentámos dobrar o espaço, e para isso é preciso retirar imagens, e há um intervalo entre a representação e a forma como eu vejo o espaço quando o ocupo. Estamos agora a trabalhar no terceiro filme da série dos filmes das cidades, Territory and Ocupation no qual estamos a trabalhar há muito tempo, e ao longo do processo e da nossa constante reflexão sobre as questões da fotografia e do cinema, começámos a questionar-nos sobre o nosso lugar dentro das fotografias que tirávamos (aparecíamos por vezes reflectidos). Será em parte também sobre isso.
Eu vejo uma diferença bastante grande entre os vossos primeiros foto-filmes, em que a sucessão de fotografias se prende os problemas da mise en scène, ao passo que nos filmes mais recentes, o problema é já de mise en place, de como preencher o rectângulo negro.
KP: No caso do Seil, por exemplo, não tínhamos planeado o modo como é que as fotografias seriam montadas quando estávamos na rodagem. Foi algo que surgiu no processo de montagem, e recordo-me que isso surgiu na cena em que ele corre por entre as árvores. Mas só tive essa intuição por estar a trabalhar com imagens digitais. Como a imagem é muito mais “perfeita” e não tem grão nem imperfeições, senti a necessidade de as colocar em camadas transparentes. O que descobri, nesse processo, é que se as colocas desse modo, em camadas, tens que encontrar os pontos fixos das imagens com os quais as relacionar. A partir desse ponto o espaço começa a flutuar, e por exemplo, na sequência do baloiço, à medida que acompanhas o movimento a paisagem começa a surgir diante dos teus olhos. Para mim tinha algo que ver com a pintura, como que a cada pincelada a imagem começa a surgir, como se já lá estivesse, por debaixo. Essa foi a principal descoberta sobre a natureza do fundo negro. E sobre aquilo que o Gusztáv estava a referir há pouco, sobre a estratigrafia, é importante recordar que o Seil tem mais de 3000 fotografias, por comparação, o Fremdkörper tinha apenas 300. Na sequência da ponte eu queria que se vissem todas as imagens que já lá estavam antes. Como o Takashi Ito, do Japão, ele colocaria as fotografias como que numa pilha e percebes o número de imagens que aquela animação implica. Mas em digital fazes o mesmo, só que o digital é plano e o que acontece é que tens essa noção de pilha a partir da margens não sobrepostas das imagens.
GH: O que gostava de acrescentar é que o mais importante para mim é ter a liberdade de quando desenvolves uma ideia seres capaz de, por um lado, fazê-lo de modo a formar uma afirmação muito forte sobre o media, e por outro, é livre o suficiente para encontrar uma solução surpreendente. E só o conseguimos fazer se estivermos em diálogo com o media, e um com o outro. Esta é a razão pela qual podes desenvolver algo de forma tão hilariante, porque tu queres explicar uma série de ideias mas o divertido é perceber como o podes fazer. Neste caso mais recente, com a cronofotografia do Marey o que descobrimos, através da fotografia e da montagem, foi que podíamos mostrar movimento de uma forma que traz o espaço para a imagem. Algo que não estava de todo planeado, que foi descoberto no processo.
Há pouco a Katja referiu um pouco isto, mas quando os vossos foto-filmes eram em película as imagens paradas não o eram de facto…
GH: Sim, o grão.
KP: E o próprio projector.
… ao passo que agora, com a projecção digital, as imagens são realmente paradas. Isso é algo contra o qual tentaram trabalhar, a fixidez do digital?
KP: Sim, o Seil é a resposta. E nós não queríamos imitar a sensação da película de 35mm, com tremeliques da imagens ou grão ou riscos ou coisas dessas. No Seil encontrámos uma boa solução para lidar com a imagem digital. Creio que o o que acontece neste período digital é que tens mais imagens – todos falam da torrente de imagens – e por isso a direcção que decidimos tomar foi aproximarmo-nos da animação fotográfica, mas ainda assim não é animação (as imagens não estão lá a 3 ou 6 fotogramas por segundo, estão muito mais tempo). As pessoas da animação têm dificuldade em lidar com o nosso trabalho, em aceitá-lo como animação.
GH: Mas isso depende do que consideras como animação. Eu acho que é animação, porque para mim a palavra remete para anima, soprar vida. Assim que dás vida a uma imagem estás já a fazer animação.
KP: A outra coisa é a transparência. A transparência permite-te continuar a ver o movimento, através. Diferentes momentos do movimento. E como disse, esta também foi uma tentativa de destruir a imagem digital, destruir a sua cintilação, a sua beleza. As camadas ajudaram-nos a destruir as imagens.
GH: É curioso que estejas a falar de destruição, para mim é muito mais construção, o que podes construir com essa qualidade digital – que é de facto muito questionável.
KP: É engraçado isto, porque nós trabalhamos em casa. O Gusztáv faz as fotografias e é sempre um perigo estar a fazer estas sobreposições. Nós discutimos sobre isto várias vezes, porque eu queria cortar várias coisas, queria alterar os enquadramentos e para ele isso era problemático, porque ele tinha tirado as fotografias daquela maneira. É preciso ter sensibilidade para não magoar o outro. Quando fiz as primeiras tentativas não estava muito confiante porque tinha receio que não gostasse nem concordasse. Mas é assim que nós nos surpreendemos um ao outro.
GH: Há sempre este balancear entre a curiosidade e a compreensão. Se tens princípios muito estritos eles não te permitirão mover, e como tal nunca conseguirias desenvolver um projecto como este, como o Seil.
KP: E já agora, decidimos depois do Natural Born Digital não voltar a trabalhar com as televisões, e passámos a procurar financiamento de cinema para os nossos trabalhos, que nunca têm mais de meia hora. Isto permitiu-nos que apenas nós os dois tenhamos a palavra no nosso trabalho, não há ninguém envolvido que nos diga o que fazer, e mesmo nós não sabemos ao certo o que resultará de cada filme.
GH: Até há pessoas envolvidas, mas ninguém controla o que fazemos. Esse é um ponto muito importante: nós estamos a trabalhar de modo totalmente independente e a produção não se deixa influenciar por qualquer tipo de opinião vinda do financiamento — não estamos preocupados com o que o espectador supostamente quer ver. E a esse respeito, quero frisar, eu estou-me a cagar para o que o espectador quer ver, prefiro muito mais fazer algo que eu quero ver, que eu quero mostrar a alguém e que talvez a possa inspirar. Porque deverá a maioria das pessoas ver aquilo que quer ver? Não os deveríamos tentar surpreender? Eu e a Katja estamos sempre a surpreender-nos um ao outro e sabemos o quão importante isso é. Deves sempre surpreender o espectador e não estar a tentar servir outra pessoa qualquer.
Ainda a respeito destes últimos filmes, os das cidades e também o Seil, as sobreposições de várias imagens e sua disposição no ecrã negro remetem-me muito para a forma como as janelas de um ecrã de computador se sobrepõem e dispõem. Os vossos filmes reflectem um pouco esse novo modo de consumirmos as imagens, nos ecrãs?
KP: Para mim não foi essa a ideia. Foi na verdade um trabalho que surgiu da minha grande admiração do trabalho fotográfico do Gusztáv. O que eu gosto nisto é que há certas coisas que fazes de propósito e outras que encontras no (ou és conduzido pelo) material. Nos filmes em que partimos das fotografias do Gusztáv percebemos que havia, no trabalho dele, já um programa – uma espécie de partitura musical para o filme – e isso talvez se possa ligar ao computador, mas pelo lado da programação (que conduz), e não tanto as janelas. E além disso, os filmes de certo modo reconstroem os processo fotográfico: eu procurei seguir a ordem cronológica com que as fotografias foram sendo tiradas. Eu queria perceber o movimento dele como fotógrafo, em 1977 e 1978, o movimento dele pelos espaços. Qual foi a primeira fotografia? De que modo ele continuou? Como é que ele não se perdeu? Isto era interessante para nós: há um programa e tu segues o programa, segues a linha. Tiras fotografias dentro desta linha, que fotografias surgem? E essa linha é uma espécie de ideia de uma imagem, como se essa ideia te conduzisse a sítios aos quais não terias chegado intuitivamente.
GH: É isso.
[risos]