“Adorei que o filme fosse a preto e branco”, diz ela. “Sim, há muito tempo que não via um filme a preto e branco”, diz ele. É sábado à noite, Laura e Paterson regressam de uma ida ao cinema que lhes refrescou a rotina. Na grande tela da sala quase vazia – à semelhança de uma cena de Stranger Than Paradise (1984) – projetava-se Island of the Lost Souls (A Ilha das Almas Selvagens, 1932), um clássico do terror, em contraste com a vida doce e fleumática do casal, mas coincidente com sua abstração face à nossa época. Uma época mergulhada no nervosismo tecnológico e esquecida das sensações primárias (no melhor sentido), como as da sala escura. Eles são nossos contemporâneos sem serem, afáveis vampiros que se alimentam da inspiração quotidiana para viver a eternidade a cada instante. Sem pressa. Não há aqui modernices que transtornem a graciosidade nem a estética de Paterson (2016).
Sabemos que o casal leva uma existência tranquila porque antes deste momento já percorremos com eles (Golshifteh Farahani e Adam Driver) todos os dias da semana, habitámos os seus rituais, e conhecemos a sua forma produtiva de estar no mundo. Essa personagem do título, Paterson, é um motorista de autocarro que nas horas vagas escreve poemas a partir dos pequenos enlevos de cada dia. Ela, que nos desperta um sorriso quando revela esse entusiasmo de ter assistido a um filme a preto e branco, é uma apaixonada por estas duas cores, levando os dias a alterar os padrões dos cortinados e das paredes da casa, a cozinhar cupcakes e tartes esquisitas, e a sonhar tornar-se uma artista country, com a guitarra à sua medida. Tudo sob o critério do preto e branco, a que nem escapa a coleira de um omnipresente Bulldog Inglês chamado Marvin.
Vale a pena lembrar que Jim Jarmusch já tinha celebrado a poesia no cinema em Dead Man (Homem Morto, 1995), chamando ao protagonista William Blake, e deixando o filme impregnar-se dos temas ligados à obra do poeta inglês. Por seu lado, em Paterson essa abordagem é mais transparente, imediata, e aproveita as rimas que estão à mão. Sempre com muito bom gosto.
O selo da existência é a poesia que une o homem às ruas da cidade, na acumulação do tempo.
Assim, além do nome do motorista-poeta, Paterson é também o nome da cidade onde vive com a mulher. E do poema épico de William Carlos Williams (não por acaso, o ídolo do protagonista), cujo sentido paira sobre o filme como esta nota do autor na introdução do livro homónimo: “a man in himself is a city, beginning, seeking, achieving and concluding his life in ways which the various aspects of a city may embody.” Paterson, na expressão detalhadamente remansada de Adam Driver, é esse homem-cidade, que em silêncio conduz (eis que o nome do ator encerra outra bela coincidência) os passageiros nas suas próprias rotinas fechadas. Senta-se para almoçar num banco com vista para as quedas de água de Paterson, e escreve com a inspiração que leva também dentro da lancheira. Esses poemas (escritos para o filme pelo poeta Ron Padgett), imprudentemente guardados num pequeno caderno, saltam para o ecrã com o andamento da escrita mental, a que Driver dá uma voz off pausada. Um ritmo que permite a degustação de cada verso, como o sentir de cada espaço, sejam as conversas dentro do autocarro, seja a rua, com o som da grande viatura em movimento urbano, ou um bar.
Com Paterson, Jim Jarmusch desafia-nos para beber uma cerveja. Convida-nos para esse trago lento de quem se senta atrás de um balcão na forma mais pacata e genuína de convívio. Nada de estranho na fibra do seu cinema, afinal. E é mesmo isso que Paterson faz à noite, num bar local, quando leva o cão – cuja importância nesta história sem história não devemos subestimar – no seu passeio diário. Sobretudo nestas cenas noturnas, idealizadas por um cineasta que prima pela composição de universos lacrados, sente-se a solidão tranquila de Paterson – mais uma vez, tal como os vampiros do anterior Only Lovers Left Alive (Só os Amantes Sobrevivem, 2013), que vagueavam por uma Detroit deserta. Aqui, o selo da existência é a poesia que une o homem às ruas da cidade, na acumulação do tempo. E sentimo-nos bem nessa acumulação do tempo.
Segunda, terça, quarta, quinta… seguimos com o olhar atento às pequenas variações, como os cortinados de Laura, até acontecer uma variação maior. Cada dia se desvela pacientemente numa estrutura que se vai incorporando, como o poeta incorpora a cidade. E estamos bem. Francamente bem. A maravilha é isto: ainda o filme não terminou e já sentimos saudades de segunda-feira.