E se a Mulher-Maravilha for, afinal, um homem, quer dizer, um homem interpretado por uma mulher? As questões de género estão na ordem do dia. O sucesso de Wonder Woman (Mulher-Maravilha, 2017) é só um sintoma da global afirmação da necessidade de desfazer fronteiras no que diz respeito, por um lado, à divisão de oportunidades e poderes (inclusivamente, de super-poderes) entre homem e mulher e, por outro lado, à própria fixidez das noções de masculino e feminino. The Assignment (A Missão, 2016) não é o primeiro thriller a lidar com questões de género e identidade – desde Psycho (Psico, 1960) que há um vasto filão de filmes americanos em que o vilão ou o herói atravessa um qualquer processo de metamorfose ou travestimento. Contudo, este será dos primeiros thrillers a atacar directamente um assunto tão contemporâneo quanto o “transgénero” – ainda há dias apanhei a dar na televisão uma reportagem de Louis Theroux em que este acompanhava o longo e criterioso processo que permite a um rapaz ou a uma rapariga mudarem de sexo.
Walter Hill é um cineasta que está longe de viver os seus melhores anos – aqueles que marcaram a sua estreia, nos anos 70, década em que produz consecutivamente os fabulosos Hard Times (O Lutador da Rua, 1975), The Driver (O Profissional, 1978) e The Warriors (Os Selvagens da Noite, 1979). Transformou-se num tarefeiro do cinema de acção mais recentemente – o veículo para Sylvester Stallone, Bullet to the Head (Bala Certeira, 2012), atesta o estado geral de desinspiração – e, nesse sentido estritamente cinematográfico, The Assignment não é ainda o regresso que todos desejávamos do bom velho Walter Hill. Contudo, está longe de ser uma obra desinteressante. Na realidade, ela comunica de uma maneira particularmente audaz com outro filme, por sinal, subestimado, de Hill: Johnny Handsome (Um Rosto Sem Passado, 1989) – escrevi sobre ele na minha crónica Civic TV. Se em The Assignment o dualismo aparência/essência ou corpo/identidade aparece dissecado dentro da moldura politicamente rica do “transgénero”, no filme protagonizado por Mickey Rourke “a operação” lida com uma noção mais rasteira da aparência como problema de cosmética – história de vingança que responde à sujeição do homem desfigurado, um “freak of nature”, ao poder discriminatório dos outros. Com efeito, em The Assignment o bisturi vai mais longe, isto é, vai mais fundo. Um homem vira mulher (Michelle Rodriguez) por força de um plano diabólico de uma sádica cirurgiã que tem sede de vingança (Sigourney Weaver).
Subcutaneamente, este é um filme que transpira esta espécie de excitação sexual à volta do dilema: quero isto ou quero aquilo?
Sobre Johnny Handsome, havia escrito que a intriga secreta do filme era protagonizada por Mickey Rourke, indo para lá da realidade no ecrã. Este relato ficcional – com laivos fantásticos ou fantasiosos – servia bem de alegoria para o que veio a tornar-se esse “pretty boy” dos anos 80: um rosto inchado e um corpo monstruoso que encontrou em The Wrestler (O Wrestler, 2008) uma muito pessoal versão moderna de A Bela e o Monstro. Como é que podemos passar esta leitura para The Assignment? Talvez atacando o “grande elefante na sala” que podemos mais ou menos reprimir durante o visionamento do filme: a muito propalada – na imprensa cor-de-rosa, aquela que por norma evito, mas que aqui trago porque me parece útil – bissexualidade de Michelle Rodriguez. Em Fevereiro deste ano, a actriz abriu o jogo quanto à sua sexualidade, confidenciando: “I’ve gone both ways. I do as I please. I am too f**king curious to sit here and not try when I can. (…) I wanted to be honest about who I am and see what happens”. The Assignment converte em “entretenimento” estas palavras da própria Rodriguez.
Subcutaneamente, este é um filme que transpira esta espécie de excitação sexual à volta do dilema: quero isto ou quero aquilo? Como pode o macho man, um atirador frio na hora de disparar e um amante fogoso na hora de acasalar, transformar-se numa femme fatale igualmente fria e fogosa, e “ser honesto” quanto a isso? Michelle Rodriguez parece transformar em texto fílmico a sua mais íntima narrativa pessoal. The Assignment diverte por isso até porque, sinto, se diverte metatextualmente com isso (por exemplo, Rodriguez está em casa no papel de Frank Kitchen e é palpável o prazer de Sigourney Weaver a interpretar a vilã, uma frigida cientista toda-poderosa que usa fato e gravata).
Infelizmente, nem tudo são rosas. A montagem é uma manta de retalhos, usando e abusando de uma teia de flashbacks e de uma voz-over manhosa à la film noir, que torna a narrativa numa colecção de sequências mal (ou muito mal) cosidas entre si. Apesar do inspirado – e politicamente incorrecto? – jogo com a nossa consciência contemporânea, e o lado campy (tão mau que é bom) da piscadela de olho “cor-de-rosa”, ainda não foi desta que Hill regressou à sua melhor forma. De qualquer maneira, nice try.