Quando um filme tem pouco cinema – ou quando o tem em grande quantidade – o olho tende a distender-se por aspectos laterais à própria natureza do objecto. The Mummy (A Múmia, 2017) de Alex Kurtzman é um desses casos: um filme que tem muito poucas ideias de cinema (apesar de ser um idiota noutros aspectos), e como tal há nele muito espaço para pensar além disso. É isso que proponho, três notas sobre três ideias que o novo filme de Tom Cruise pode suscitar. Mas antes um parêntesis. [Quero apenas referir um (dos pouquíssimos) momentos em que se encontra um plano, uma ideia de montagem, uma referência e uma ousadia que são, antes de mais, pensantes no que ao medium diz respeito. A certa altura, quando o sarcófago é transportado, de avião, uma avalanche de corvos possuídos pelos poderes malignos da múmia despenham-se contra a fronte do aparelho. Nesse momento Kurtzman faz um delicioso cruzamento de icónicos momentos hitchcockianos, por um lado o ataque dos pássaros negros de The Birds (Os Pássaros, 1963), por outro, a torrente quebradeira de pára-brisas de Foreign Correspondent (Correspondente de Guerra, 1940). O que se segue é o despenhar da aeronave, numa já típica sequência demonstrativa do virtuosismo dos efeitos especiais e da dedicação – sempre à beira da morte – dessa estrela sorridente chamada Tom Cruise.]
1. O filme como espelho da indústria. Este The Mummy é o primeiro tomo de um – auto intitulado – Dark Universe, uma marca do estúdio Universal que pretende dar nova vida à famosa série de monstros que o estúdio criou nos anos 1930. Assim, depois de vários reanimações das múltiplas criaturas ao longo dos anos (entre Coppola e Verhoeven há um mundo de insignificâncias) agora a proposta é sistematizar o filão e operacioná-lo segundo o esquema do filme de super-heróis. Um universo contíguo com personagens partilhadas que saltitam de filme em filme e justificam sequelas, prequelas, remakes, reboots, spin-offs e trinta por uma linha. Neste sentido o filme de Kurtzman é particularmente escancarado nas suas intenções: pouco se demora a introduzir a personagem de Dr. Henry Jekyll, que será o patrono das monstruosidades (qual Professor X), ou, mais evidentemente, quando a monstruosidade é revestida de questão moral (os poderes do bicho que podem ser usados para o bem ou para o mal) e se anuncia, no fim, um transfigurado Cruise como um vigilante que percorre o mundo protegendo os inocentes. A juntar a isso, The Mummy é também um desfigurado ramalhete de géneros populares, filme de super-herói, filme de zombies, filme de acção slapstick, comédia romântica, filme de terror juvenil, filme de época, investigação arqueólogo-policial… Mas tudo composto por via de automatismos mais ou menos anónimos que o tornam num carreirinho de previsíveis situações e soluções formais e narrativas. Há, por tudo isto, muito pouco de sincero na celebração dos 85 anos de The Mummy (A Múmia, 1932) de Karl Freund com Boris Karloff, estando afinal a empresa mais próximo do camp dos filmes de Brendan Fraser (que de si já tinham esta mesma variedade de género).
A perspectiva mais interessante para ler The Mummy passa por encontrar nele uma alegoria sobre os modos de escrita da História.
2. O filme como espelho da mitologia Cruiseana. Dado o esquematismo de todo o projecto, será no mínimo curioso encarar-lo como uma espécie de meta-filme-de-Tom-Cruise. Explico: os filmes que o actor americano vem estrelando nas últimas décadas parecem comprovar que o seu carisma – auxiliado pela sua inata presença e pela gestão sábia dessa(s) mesma(s) presença(s) – se vem tornando imagem de marca (ideia que não está muito longe do conceito de autor quando empregue a um realizador). Essa autoria cruiseana faz-se notar no modo como em quase todos os filmes o seu papel é identicamente plano, um bad boy, que afinal é um anjo, sempre desejado por uma doce e pouco marcante pretendente e que inevitavelmente se verá em apuros num (introduzir meio de transporte, local/monumento icónico, falésia ou local com equivalente grau de perigosidade) o que dará origem a uma série de acrobacias arrojadas que o actor se orgulha de completar sem o auxílio de duplos. Pois bem, em The Mummy isso é levado ao paroxismo (literalmente). Isto é, a queda para o abismo de Cruise, o palhaço-contente, ganha aqui contornos macabros pelo facto de narrativamente o personagem já não morrer. Assim inicia-se uma sucessão de esfaqueamentos, torturas, tiroteios, quedas, explosões e demais pirotecnias que parecem sublimar os próprio limites da persona cruiseana (não muito longe da persona lloydeana). O resultado é o destrinçar da fórmula ao ponto em que se lhe revelam todos os mecanismos internos. Porventura sinal de um desespero ou, talvez, de um novo rumo (os filmes de final de ciclo têm sempre essa qualidade mística). É que Cruise não vai para novo e o filme problematiza isso ao terminar com o seu rosto desfigurado (que nunca chegamos a ver) coberto por uma veste, como que demonstrando (mais uma vez) a capacidade do actor gerir a sua imagem e tentar antecipar neste filme o inevitável fluir do tempo (na sua carinha laroca).
3. O filme como espelho da escrita da História. Mas talvez a perspectiva mais interessante para ler The Mummy passa por encontrar nele uma alegoria sobre os modos de escrita da História. Tratando o filme de arqueologia e de uma princesa egípcia que foi riscada dos anais da memória (princesa essa que, sob o manto da maldição, regressa em modo múmia), a sua vingança e a sua força surge como manifestação da violência dos processos de (des)canonização histórica. Ou seja, podemos ver na trupe de Cruise a figura da trindade odiada pela Escola de Annales da História Factual, da História Narrativa e da História (da) Política e a múmia dando corpo ao não-factual (coisa não propriamente improvável quando o debate contra o ‘historiador deambulador de mãos nos bolsos’ de Marc Bloch e Lucien Febvre coincide exactamente com o The Mummy de 1932). E, como nos processos historiográficos, ainda que o cânone não seja definitivo o seu derrube é coisa sanguínea. A múmia alastra a sua semi-vida como um vírus que transmite pelo beijo, e é exactamente como um beijo de judas que o historiador recebe o não-factual (“os eventos ainda não consagrados como tais: a história das localidades, das mentalidades, da loucura ou a procura da segurança através dos tempos”, citando Paul M. Veyne). Essa fúria da re-escrita que o passado não-canónico solta sobre os anais é um que só se impõe pela violência, pela deposição – veja-se, por exemplo, o caso de António de Macedo. A fragilidade da múmia está, portanto, na crença que a sua re-introdução histórica se poderá fazer segundo uma possível reparação, que é naturalmente impossível. A correcção de uma falha da História torna-se, também ela, uma distorção dessa mesma História distorcida, como são, afinal, todas as histórias, enclausuradas pelos próprios limites epistemológicos. O resultado de todo esse processo é uma História Narrativa e Factual desfigurada, vulgo Tom Cruise de lenço.