No passado dia 22 de Maio, o ex-cronista walshiano José Bértolo organizou, na Faculdade de Letras de Lisboa uma jornada de estudos intitulada “Fotogenias e Cine-olhos: Vanguardas cinematográficas dos anos 20“. Em duas mesas falou-se do cinema de Vertov, Cocteau e Epstein, por um lado, e por outro, de Jorge Brum do Canto, José Leitão de Barros e Manoel de Oliveira. Exactamente no que respeita a Brum do Canto e ao seu A Dança dos Paroxismos (1929), o José tratou de ler o filme à luz das vanguardas francesas, nas quais Do Canto se terá inspirado fortemente, em particular no modo como tratou poeticamente a subjectividade da personagem principal através de abstracções da imagem: planos desfocados, oscilantes, apontando para as copas das árvores, em tons invertidos. A proposta de leitura de Bértolo é a de que o filme se constrói como a possível alucinação de um homem, poucos minutos antes da morte (isto porque esses planos subjectivos enclausuram o filme entre os créditos de abertura e o desenlace), interpretação que faz tanto mais sentido quando a palavra paroxismo significa exactamente o “momento de maior intensidade de um sentimento, de uma sensação ou de um estado; o auge ou cúmulo”. Faço esta introdução – um tanto ou quanto desviante – por me parecer que The Wall (O Muro, 2017) partilha, pelo menos neste aspecto paroxístico, uma ligação com o filme seminal das primeiras vanguardas nacionais.
O filme de Doug Liman – realizador um tanto ou quanto tarefeiro que assinou recentemente Edge of Tomorrow (2014), outro filme totalmente paroxístico – é um objecto inusitado nos seus modos de produção e na sua miniaturização narrativa. Este não é, definitivamente, o típico filme de guerra (do Iraque): rodado em 14 dias, com apenas dois actores (três, se contarmos a voz, mas se retirarmos o wrestler John Cena, que está inconsciente a maior parte do tempo, fica só Aaron Taylor-Johnson) junto ao homónimo muro do título, perdidos no meio do deserto. Embora os protagonistas sejam dois militares emboscados por um sniper (do qual nunca se conhece o rosto), este é um filme muito mais próximo dos westerns de cerco de Howard Hawks ou, mais ainda, dos filmes-puzzle-de-vida-ou-morte onde se incluem as diabruras do Jig’Saw, mas também Cube (Cubo, 1997), La habitación de Fermat (2007) ou Exam (2009), para só citar alguns – que são no fundo versões violentas dos dispositivos minimalistas de filme teatrais como Lifeboat (Um Barco e Nove Destinos, 1944) de Hitchcock e, claro, 12 Angry Men (Doze Homens em Fúria, 1957) de Sidney Lumet.
The Wall é a definitiva expiação liberal da intervenção militar iraquiana.
Não é, de todo, despiciendo que a guerra do Iraque se tenha tornado espaço para o torture porn pela mão de um sádico atirador furtivo que se delicia a reduzir ao mínimo os pontos vitais das suas cobaias, sem no entanto as deixar morrer. O paralelo entre o filantropismo perverso de Jigsaw e o deste atirador que evangeliza contra os modos neo-coloniais dos EUA não é nada forçado: ambos procuram que o alvo do martírio se reconcilie com o seu passado traumático, ambos procuram nos mecanismos do extermínio uma qualquer forma de revelação interior do torturado, e ambos organizam um plano altamente intelectual do qual não há fuga mas que, ainda assim, dá trela às tentativas de descodificação do protagonista (e do espectador que participa igualmente num jogo onde as peças estão em falta e nem sempre encaixam). A este respeito, The Wall é a definitiva expiação liberal da intervenção militar iraquiana: o militarismo é colocado contra a parede e não há saída possível senão assumir as culpas e aguentar… até que a morte o separe (da vida).
O problema maior do filme está nos modos anónimos de Doug Liman e na escrita demasiado formatada do argumento de Dwain Worrell que expõe (também no sentido de exposition) totalmente as estruturas que apropria: os três actos estão sublinhos a caneta de feltro encarnada, as citações a Poe e Shakespeare surgem a despropósito (para conferir uma verve intelectual desnecessária), o Planting and Payoff é muito denunciado, as variáveis de vida do protagonista são desactivadas de forma totalmente explícita (primeiro a mobilidade, depois a comunicação, depois a alimentação e a hidratação, e por fim a privacidade) e mesmo o evento do passado que perturba a sanidade do militar é finalmente revisitado e iluminado (porque, só assim, com a talking cure, se pode finalmente abater o espécime). É, no entanto, saudável que não haja flashbacks, nem efeitos digitais vistosos, e o dramatismo da empresa seja enxutíssimo (o ocasional grande-plano do rosto atormentado).
Mas regresso à introdução. Disse que havia uma qualidade paroxística no filme de Liman-Worrell e há-a de facto. O primeiro e o último plano do filme são P.O.V.’s [point of view] de uma luneta de espingarda, o de abertura proveniente do protagonista, o de fecho do vilão – e no intervalo entre uma coisa e outra está o filme feito testamento de um homem condenado. A certa altura explica-se que a mira telescópica do nosso militar pertenceu a um colega que já falecera e usam a expressão “dead man’s scope”. Ou seja, simbolicamente o ponto de vista do protagonista é o ponto de vista de um morto e tudo aquilo que ele vê (e nós com ele), fá-lo pelo olhar de quem já não tem o que viver: e é assim anunciada a sua morte eminente, pela transferência dos olhares. Mais até do que anunciada, ela é apenas prolongada por uma espécie de delírio pre-mortem que distende e retorce a continuidade do tempo a favor da expressão diegética da voz da consciência: como tão bem o cinema vem fazendo desde as experiências de Marey e da contemporânea escrita de Ambrose Bierce. Ou, inversamente, o filme pode ser visto como a equivalência essencial entre o olho do morto e o olho do matador, equivalência que se manifesta nos quatro segundos (bem contados) que distam entre o disparo e o alvo.
The Wall coloca-se assim lado a lado (ou lado alado?) com as mais ousadas e virtuosas aventuras pelas subjectividades cinematográficas: das vanguardas francesas, ao terror ontológico de Trigger Man (2007), passando por Halloween (O Regresso do Mal, 1978), The Silence of the Lambs (O Silêncio dos Inocentes, 1991) e Lebanon (2009) de Samuel Maoz – outro filme de guerra minimalista construído sobre a instabilidade do P.O.V. miliciano.
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