Fico sempre algo perdido quando inicio um diálogo em torno de uma série televisiva. Se embarco no hype generalizado e cada vez mais “da praxe”, a troca de impressões flui naturalmente. Mas se há resistência – e isso tem-me acontecido com muita frequência dada a minha pouca queda para séries – acabo por ouvir o seguinte: “espera até ver o episódio X”. Que é como quem diz: “a partir de X tudo é diferente, para melhor”. Claro que isto significa duas coisas: que as séries são consumidas em ritmos diferentes consoante o espectador – muito graças ao mercado, mais ou menos pirata, do streaming – e que este novo espectador das séries de televisão está mais do que preparado para “falsos arranques”. Portanto, a pergunta que este espectador que agora escreve coloca é: a partir de que momento podemos opinar sobre uma série de televisão? Como a devemos seguir e o que faz de uma série uma boa série no contexto de uma verdadeiramente global “economia da nostalgia”? Comecemos pelo meu caso: tenho reproduzido com o novo Twin Peaks (2017-) o ritual de visionamento que marcou toda uma geração aquando da passagem das duas temporadas originais na RTP, há mais de 20 anos. Como era Portugal na altura? Como nos encontra hoje – e o que diz sobre “nós e o mundo” – a renovada série de David Lynch e Mark Frost?
Nos anos 90, Portugal era uma espécie de Twin Peaks à beira-mar plantado, uma aldeola isolada do mundo, para mais, se tivermos em conta o contexto mediático europeu. Televisão única do Estado e um contexto cinematográfico perfeitamente incipiente. A coisa começava a mudar quando ouvimos falar de Laura Palmer pela primeira vez: entrada em cena do primeiro canal privado, a SIC, em 1992, e da nova geração do cinema português, chefiada por Pedro Costa e Teresa Villaverde, que começa a dar cartas durante a última década do passado milénio. Prometiam-se mudanças profundas, mas os rituais de consumo, cinematográfico e televisivo, mantinham-se intactos, desde logo, entre os mais jovens, aqueles que acabariam por ser apelidados de “geração rasca”. Antes de ter visto a série de David Lynch e Mark Frost pela primeira vez na SIC Radical – contei a história na crónica anterior -, ouvi histórias acerca do entusiasmo que era seguir, semana após semana, os seus estranhos desenvolvimentos. Contam-me os mais velhos que entre um episódio e o seguinte milhares de ideias e especulações circulavam nas cabeças e nas conversas entre amigos. Nos dias de hoje o consumo é bulímico: quando o regressado Twin Peaks estreou no canal TVSéries já estavam disponíveis na Internet vários episódios. Eu fiz – e faço – questão de reproduzir o ritmo antigo – antiquado? – de ver um episódio por semana, ao domingo, à hora marcada (bem, neste ponto não sou muito cumpridor e lá viajo na timeline disponibilizada pela box). Como corolário, quando escrevi pela primeira vez sobre o regressado Twin Peaks já o leitor poderia estar “mais por dentro da série” do que eu.
Chego, portanto, ao quarto episódio da série, mas continuo sem saber ao certo se “já é justo” avançar com algumas ideias sobre os caminhos que Lynch trilha aqui. Parece-me que ainda mal saímos de uma longa exposição, das velhas e novas personagens, das velhas e novas paisagens. Mas penso que já dá para agarrar qualquer coisa mais, nem que seja confirmando ou expandido as minhas ideias iniciais. Desde logo, creio que a minha primeira impressão – continuo a achar as primeiras impressões decisivas, pese embora estas estejam tão subvalorizadas nos tempos que correm – não foi má conselheira. Fico, aliás, contente por constatar que um crítico como Richard Brody não escreveu algo muito diferente de mim, após ter visto os dois primeiros episódios. Apesar do estilo cinzento reconhecido por mim e pelo crítico da New Yorker, a mão de Lynch atinge com estrondo as expectativas do telespectador mais nostálgico. Nesse sentido, é bem-vindo este assalto ao que chamo de “economia da nostalgia”, lugar onde, hoje e por todo o lado, chovem tantos dólares e euros. Essa nostalgia manifesta-se, globalmente, na recuperação de mitologias pop que marcaram a adolescência dos tais “jovens rascas” dos anos 90, os mesmos que na qualidade de pais estão hoje mais arredados das salas de cinema.
A caixa transparente – a que ficou lá atrás, nos primeiros episódios – continua verdadeiramente a não dar nada sem ser aquilo que projectamos nela. A caixa vazia, claro, é a televisão e a televisão, claro, é nostalgia.
É preciso trazer os pais e os filhos ao cinema. Para tal, nada melhor do que piscar o olho às memórias sentimentais dos novos progenitores. Como tal, a indústria aposta em remakes, sequelas, prequelas e reboots de fórmulas que tiveram sucesso no passado (o exemplo mais acabado são os filmes de super-heróis ou as continuações de sagas populares, tais como as que alimentam os franchises do Star Wars, do Indiana Jones ou do Jurassic Park, só para citar três casos). Ainda há dias, numa ida ao cinema para “limpar a cabeça”, deparei-me com esta situação: antes do novo capítulo da saga Alien, passava no grande ecrã o trailer do novo Blade Runner (Blade Runner: Perigo Iminente, 1982). Nele um Harrison Ford envelhecido passa o testemunho à estrela hot juvenil Ryan Gosling. Ford e Gosling como pai e filho. O passado e o presente de mãos dadas. A economia sabe bem o poder que isto tem. No filme que me levava até ali – também eu fora vítima de uma certa “nostalgia”? E porque não? – a heroína original – encarnada por Sigourney Weaver – tinha um pequeno cameo, mas já só enquanto “boneco” cadaverizado. Depois, numa conversa com o walshiano Ricardo Vieira Lisboa, apercebi-me que promover a nostalgia significa também – de modo reaccionário? Ah, mas não… a nostalgia quer-se ideologicamente asséptica, cool e relaxada! – promover a (des)mumificação dos nossos heróis passados. Ah, o suspiro da nostalgia, esse doce veneno!
Em Portugal, a “economia da nostalgia” tem uma expressão significativa, dentro e fora do cinema. Fora do cinema, é fácil de identificar quem tem lucrado mais com ela: Catarina Portas e o seu negócio de “portugalidade antiga” chamado A Vida Portuguesa. No cinema, os pontas-de-lança são Nuno Markl e Filipe Melo. O primeiro tem investido na recuperação de memórias da sua adolescência, prestando culto aos ícones dos anos 80, tanto nos filmes em que participa – como actor e/ou argumentista – como no seu trabalho enquanto programador e homem da comunicação (por exemplo, o seu nome costuma estar associada às sessões do Cinepop no Fórum Lisboa). O segundo é o organizador das “Sessões de Culto”, experiências de transmissão geracional do gosto por certos filmes ou por certo cinema que têm arrastado multidões até à sala do Nimas, em Lisboa, sobretudo dentro de uma lógica de dar a rever (aos pais?) ou, por arrastamento, a ver (aos filhos?) as obras que marcaram uma qualquer adolescência cinéfila – “a adolescência de todos nós”, apetece escrever. Todo este – chamemos-lhe assim – “grande movimento” é irresistível, mas não deixa de ser interessante ver como é que ele pode ser contrariado bem “por dentro” do sistema.
Derivo para esta questão da “economia da nostalgia” para precisamente dizer que o regresso de Twin Peaks não lhe é, de modo algum, indiferente. Desde o primeiro episódio que Lynch avança a contrapelo sobre as nossas expectativas. Avança em ritmo baixo – mas firme – até ao momento em que a coisa estala numa gargalhada soluçante. Alerto: um ataque de riso em Lynch pode ser um ataque de choro. No quarto episódio – o último exibido no TVSéries – a certa altura uma personagem – agente da polícia em Twin Peaks – não consegue conter um choro convulso quando dá de caras com a fotografia de Laura Palmer – a mesma que aparece na capa do DVD da série. Como era bela e como foi trágico o seu destino! Ah, que suspiro avassalador! Mas… a (des)mumificação de Laura é tão lenta quanto o gosto perverso de “não nos levar a lado nenhum” que impera em Lynch. Diz o primeiro episódio que “alguma coisa falta” na esquadra de Twin Peaks, liderada pelo xerife – o chefe índio “Hawk” – interpretado por Michael Horse. O que falta…? As reticências são o espaço deixado em branco que nos faz suspirar. Outra vez. É preciso ocupar os lugares deixados vagos – a força “maléfica” da nostalgia impõe que os velhos ocupantes dos lugares regressem e que “renovem” as suas posições. Um jogo de cadeiras – não podia haver coisa melhor para o perverso David Lynch, ele que é especialista em tirar personagens do lugar, em criar duplos ou reflexos distorcidos com um mero estalar de dedos.
O agente especial Cooper (Kyle MacLachlan) voltará, mas, até lá, quantas realidades – quantas realidades feitas carne – terá ele de atravessar? “Mas que terrível (des)mumificação!”, queixa-se o telespectador irrequieto. Cooper, antes de ser Cooper, terá de ser um assassino letal, um marido panhonhas ou um “Mr. Jackpot” que diz “olá” à sorte sempre que a quer conquistar – não tem ele o “thumb up” e a “inclinação para o jogo” dignos do papalvo que habita hoje a Casa Branca? Se Twin Peaks procura uma imagem daquilo que é, cá está ela: uma slot machine de variação irrelevante, um constante e provocador – um constantemente provocador – zero-sum game. Ao mesmo tempo, tudo mudou para ficar na mesma. A secretária do xerife interpretada por Kimmy Robertson desmaia durante o quarto episódio, porque ainda não percebeu como raio podem os telemóveis – essas modernices – permitir a comunicação em pleno andamento. Em Twin Peaks – chamemos assim à localidade, à série e ao cinema de Lynch – o presente ainda não chegou. Mas nós, espectadores, estamos – ainda estamos – aqui, a sós com a nossa ansiosa nostalgia tão século XXI. A caixa transparente – a que ficou lá atrás, nos primeiros episódios – continua verdadeiramente a não dar nada sem ser aquilo que projectamos nela. A caixa vazia, claro, é a televisão e a televisão, claro, é nostalgia. Ou melhor, a nostalgia é uma caixa vazia. Por isso, pode tudo: do muito bom ao muito mau. Tudo depende de si, caro espectador.