No ido ano de 1934, durante a ascensão dos vários fascismos europeus (depois da ressaca da Grande Guerra que não era ainda primeira), no Instituto de Estudos do Fascismo em Paris, um tal de Walter Benjamin proferiu uma comunicação sobre os modos esteticizantes da fotografia – “a pobreza mais abjecta, ao ser tratada de uma maneira actual e tecnicamente perfeita, é transformada num objecto de fruição” – e de como estes podiam ser minorados através da introdução da palavra. O recurso à legenda seria assim uma ferramenta que podia resgatar a fotografia da sua propensão para o belo. Susan Sontag refere esta comunicação, no seu ensaio «O heroísmo da visão», na medida em que vê em Benjamim um moralista (pseudo)marxista [cit.] que espera negar a natureza de um olhar fundado na tecnologia fotográfica através de um desejo revolucionário-humanista – Sontag procura explicar que um novo modo de visão se instaurou com/pela fotografia e que ele é irrevogável (independentemente da legenda que se lhe acrescente, diz ela, “não há legenda que possa de modo permanente restringir ou fixar o significado de uma imagem”). Wonder Woman (Mulher-Maravilha, 2017) de Patty Jenkins é, se assim o quisermos olhar, um filme-legenda – como o são por exemplo, de modos muito distintos, Letter to Jane (1972) de Godard e Gorin, The Shining (1980) ou Cavalo Dinheiro (2014) – por se construir todo como o justificativo contextual de uma fotografia, em preto-e-branco [esta aqui em baixo], que abre o filme e espoleta uma narrativa em analepse.
O filme começa na actualidade com a nossa protagonista, uma conservadora de arte do Louvre, recebendo uma encomenda de um tal Bruce Wayne onde se conserva a dita fotografia. É a partir desta imagem que percorreremos, em velocidade acelerada, a biografia da Mulher Maravilha, da infância mitológica à idade adulta, terminando a história do filme mais ou menos no momento em que a fotografia foi tirada (algumas horas depois). A realizadora Patty Jenkins oferece então uma imagem mais ou menos anónima e sem particular força emocional ou narrativa, e trata de, nas mais de duas horas de filme, revestir esse retrato de um lastro histórico, social e pessoal. Daí que lhe chame de filme-legenda, por só no final dele sermos capazes de atribuir àquela captura uma qualquer significação propriamente cinematográfica*. Os modos como se lá chega, esses, são menos lineares que esta proposta. Aliás, o problema maior de Wonder Woman está exactamente no modo como contém em si uma série de contradições e paradoxos, nunca totalmente resolvidos, que contaminam uma vontade – até que bem-intencionada, creio – de promover uma mudança de paradigma nos modos de representação da mulher num universo do filme de super-heróis – e por me parecer que esse é um dos seus intentos, procurarei olhar o filme segundo esse mesmo padrão de leitura fílmica.
Essa vontade identifica-se, a espaços, na forma como se inverte ou contornam vários dos episódios tipificados do filme de super-heróis. As origens míticas do herói (neste caso heroína) remetem aqui para o período helénico e a Mulher-Maravilha é criada numa espécie de paradisíaca Lesbos, parada nos tempos, onde nunca um homem entrou e onde todas as mulheres são guerreiras (todas falam com um estranho sotaque de inglês não nativo e há mulheres de todas as raças, formas e feitios – da bruta sapatona à elegante femme). Nesse episódio originário há uma deliciosa sequência em que Gal Gadot trepa a uma torre para roubar uma espada-falo, assistindo nós deste modo a uma rapunzel-invertida onde é a princesa que irá roubar a virgindade masculina que se resguarda no topo de um torreão. Noutro ponto, mais adiante, quando o filme se metamorfoseia, por artes mágicas (literalmente), em comédia de costumes no início do século XX (durante a referida Grande Guerra que não era ainda primeira), assistimos à inversão cómica dos mecanismos do cinema clássico do agenciamento das personagens femininas pelas masculinas – ele começa uma luta para a defender, mas é ela que a termina, ele tenta argumentar numa reunião a favor dos interesses dela, mas é ela que os manda todos para o beleléu, etc.. Momentos como estes revelam esse desejo de Jenkins levar ao seu moinho uma representação que ostensivamente se demarca dos mecanismos narrativos que dominam, e dominaram, a produção cinematográfica mainstream norte-americana.
A salganhada anacrónica que é a história de Wonder Woman está igualmente presente na sua salganhada estilística, e também na sua salganhada ideológica — ao menos nisso é coerente.
Nessa segunda porção, a melhor do filme (sendo o gag do pénis-relógio particularmente inteligente na descontrução da imagem do macho), forma-se um grupo que irá acompanhar a protagonista ao típico combate final com o vilão. A trupe é composta por ela, a Mulher Maravilha, ele, um espião inglês (e o facto de ser um espião, que mente, que engana, que não tem espinha dorsal nem princípios é significativo), e depois um marroquino, um irlandês e um índio norte-americano e uma sufragista baixinha e gordinha, que fica em terras de sua majestade auxiliando, à distância, a logística do grupo. Ou seja, de um ponto de vista feminista/queer poderia argumentar-se que Wonder Woman retira do eixo central o gang de homens-hétero-cis-brancos que formam quase sempre os pentagramas do cinema de acção popular, e os substitui por: uma mulher (super-)poderosa, uma activista dos direitos das mulheres, um negro que não consegue alcançar o seu desejo de ser actor (e por isso faz a vezes na vida do embusteiro), um emigrante alcoólico depressivo (que o filme insinua vagamente ser homossexual) e um tolerante representante de um povo exterminado, feito salteador de uma guerra que não é a sua e… um homen-hétero-cis-branco. Esta é a provocação/inversão mais forte do filme e é ela, afinal, a legenda mais significante da fotografia que inicia toda a narração — outra seria o desenlace que revela que, afinal, o mal não está necessariamente no belicismo xenófobo cego, mas primeiramente, nas pequenas formas de burocracia, nos jogos de salão, nas luvas dos endinheirados e nas sugestões subreptícias de uma ideologia propulsionada pelo ódio.
Mas esta empresa ideológica que procura inverter lugares-comuns e estratégias fílmicas recorrentes é, por fim, vítima de uma empresa maior e massificadora: os contabilismos dos grandes estúdios de Hollywood que trabalham o sub-género hiper-lucrativo dos filmes de super-heróis exactamente na gestão das fórmulas que se sabe à partida resultarem… sempre. Assim, Wonder Woman, apesar das suas nuances feministas/queer, pouco se diferencia de todos os outros filmes de super-heróis: as mesmas câmaras lentas, os mesmos efeitos especiais, as mesmas batalhas “épicas” intermináveis, a mesma wagneriana música, a mesma higienização digital, os mesmos debates de filosofia-de-vão-de-escada sobre a natureza humana, etc..
Mais que isso, o filme de Patty Jenkins tem o problema adicional de conter signos contraditórios, como seja a espada-falo tornada (literalmente) espinha dorsal da heroína, o velhinho paradoxo do super-herói que procura a paz pela violência, o diálogo em que ela afirma “trata-me como um homem”, os seus super poderes serem afinal a sinopse da sua adolescência — mas o filme cast(r)a quase totalmente os seus desejos —, ou como o homen-hétero-cis-branco é afinal o verdadeiro herói que sacrifica o mais alto valor pelo bem de todos. Ou seja, a salganhada anacrónica que é a história (do presente para a Grécia clássica para a Primeira Guerra Mundial, de volta para a actualidade) está igualmente presente na salganhada estilística (que saliento com agrado, do peplum ao filme de trincheira, passando pela comédia vitoriana e pela integração do bom selvagem), e também na sua salganhada ideológica — ao menos nisso é coerente.
Regressando a Sontag, chamo de novo uma das suas citações do referido ensaio, “Numa sociedade de consumo, mesmo as fotografias mais bem-intencionadas e devidamente legendadas acabam sempre por revelar beleza. (…) A tendência esteticizante da fotografia é tal que o meio que comunica a angústia acaba por a neutralizar. As câmaras reduzem a experiência a miniaturas, transformando a história em espectáculo. As fotografias, embora provoquem simpatia, também a eliminam, também afastam as emoções. (…) Portanto, limpa o nosso olhar.” E como corolário disto, onde se lê fotografia pode ler-se filme de super-heróis, onde se lê esteticizante (beleza) pode ler-se (atitude) política.
*De notar que esta estratégia, da fotografia como catalisador narrativo é recorrente em filmes de super-heróis. Hellboy (2004) de Guillermo del Toro inicia-se com uma fotografia semelhante, igualmente tirada em cenário de guerra, desta feita, a Segunda.