O ciclo Mizoguchi no Espaço Nimas e no Teatro Campo Alegre prossegue em Junho com mais alguns filmes, dos quais destacamos Zangiku monogatari (O Conto dos Crisântemos Tardios, 1939), o único do programa que é anterior aos anos 1950. Filme sobre teatro, sobre crescimento artístico e sobre sacrifício, é considerado uma das obras máximas do realizador japonês.
Zangiku monogatari foi o primeiro filme de Mizoguchi para a Shochiko, das mais importantes produtoras japonesas que, curiosamente, começou por estar ligada ao teatro antes de se voltar para o cinema.
Excepcionalmente para Mizoguchi, o filme centra-se numa figura masculina. Shotaro Hanayagi, famoso actor de shinpa (teatro, muitas vezes melodramático, da “nova escola”, que procurou modernizar o teatro japonês em oposição à “velha escola” de kabuki) dos anos 1920-1930, sem experiência prévia no cinema, dá vida às desventuras de Kikunosuke Onoe, um actor de kabuki do período Meiji (1868-1912) – daí o filme ser considerado um Meiji-mono (filme passado nesse tempo).
Pertencente a uma reputada família de artistas e sentindo a pressão das expectativas, Kikunosuke aprende a aperfeiçoar o seu talento, ao início pouco promissor. Para tal conta com o apoio incondicional de Otoku (Kakuko Mori), a ama do filho do seu irmão, a única pessoa que é honesta com ele e com quem foge num episódio de revolta. Deixando para trás Tóquio, centro de kabuki por excelência, Kikunosuke descobre-se como artista através de experiências duras noutras cidades, nomeadamente num grupo de saltimbancos que não poderia estar mais longe da vida fácil que antes levava. As dificuldades valem a pena, porque fazem dele o actor que nunca antes fora. No final, ele regressa triunfante a Tóquio e à família, mas não sem antes abandonar a principal obreira do seu sucesso. É esta mulher que o exorta a desenvolver o seu potencial e ela que pede, e consegue, uma nova oportunidade para ele na performance que lhe salva a carreira. Mas enquanto Kikunosuke é aplaudido em apoteose, Otoku sucumbe à doença, isolada na casa da sua família. É uma cena extraordinária que alterna a animada procissão de barcos, onde ele está, com a penumbra e solidão do quarto dela.
Otoku surge, pois, como a típica figura feminina do cinema de Mizoguchi que se sacrifica pelo sucesso de um homem egoísta (há até um momento em que ele lhe bate quando ela se recusa a dar-lhe dinheiro mas ela não vacila no seu encorajamento). Não terá sido a figura feminina mais complexa que Mizoguchi filmou mas, ainda assim, ela acaba por desviar as atenções do egocêntrico Kikunosuke e em vez do cliché da mulher por detrás do grande homem, quase a vemos como a sábia mestre que observa escondida o bom trabalho de um aluno que ajudou a progredir.
A exaltação do sacrifício não está em dissonância com as obras de glorificação patriótica que dominaram a paisagem artística do Japão em guerra embora o filme suscite múltiplas leituras, incluindo um retrato subversivo dos propósitos de obediência à família
Zangiku monogatari baseia-se numa peça de Sanichi Iwaya, por sua vez inspirada num romance de Shofu Muramatsu. Foi o primeiro de uma série de trabalhos de Mizoguchi sobre artes tradicionais (geido-mono). Há quem tenha visto nesta viragem temática uma forma de Mizoguchi tentar escapar à censura (uma rígida lei do cinema fora promulgada dias antes da estreia do filme) e evitar filmar propaganda durante os anos sombrios da Segunda Guerra Mundial – que para o Japão começou com a invasão da China. No entanto, a obra de Mizoguchi não escapou inteiramente aos tentáculos do impacto cultural do militarismo da época. Em 1932, realizou um filme propagandístico sobre a Manchúria (nome que designa a região composta por três províncias do Nordeste chinês anexadas por forças militares japonesas em 1931 e depois promovida como um Estado “independente” sob o nome de Manchukuo, embora na prática controlado pelo Japão). Em 1938, realizou um outro filme de propaganda, Roei no uta (O Canto da Caserna). Em 1940, tornou-se presidente da Associação de Realizadores do Cinema Japonês e chegaram a encomendar-lhe um trabalho sobre o regime colaboracionista chinês liderado por Wang Jingwei, que não viria a ser feito. No último ano da guerra, seria um dos realizadores da obra de propaganda Hissho ka (Canto da Vitória). Embora Zangiku monogatari pouco tenha de político, a exaltação do sacrifício não está em dissonância com as obras de glorificação patriótica que dominaram a paisagem artística do Japão em guerra (o Ministério da Educação até o distinguiu com um prémio!) embora o filme suscite múltiplas leituras, incluindo um retrato subversivo dos propósitos de obediência à família.
Tecnicamente, Zangiku monogatari destaca-se pelos planos-sequência de longa duração. A primeira conversa entre Kikunosuke e Otoku, com a câmara a segui-los enquanto andam pela rua de madrugada, é um exemplo paradigmático. Há uma geometria algo flutuante no filme, em que linhas horizontais, verticais e oblíquas (por exemplo, através de escadas, barreiras e cortinas), nem sempre rectas, estruturam o plano. Todo o filme está envolto numa certa penumbra e contenção espacial, por vezes, quase claustrofóbica (veja-se, por exemplo, a cena na carruagem de comboio). Nem sempre é permitido ao espectador mais do que um olhar fragmentado, com as personagens obstruídas por elementos cénicos ou de costas. Há uma notória ausência de grandes-planos, que se explica, em parte, pela necessidade de esconder o facto de Hanayagi ser bastante mais velho do que a personagem que interpretava. Vários planos são autênticos prodígios de fotografia, quase podendo ser apreciados independentemente do resto do filme. A montagem, nomeadamente nas cenas de kabuki, é outro elemento a destacar.
Esta beleza de sombras e distância não é apenas visual. O filme tem, também, um meticuloso trabalho de som, resgatando sonoridades urbanas – além, obviamente, da música das performances de kabuki. Pregões de vendedores de rua, o ruído da chuva a cair ou simplesmente uns ligeiros burburinhos de fundo contribuem para a riqueza audiovisual deste filme.
Tal como outras obras-primas – por exemplo, Xi meng ren sheng (The Puppetmaster, 1993) de Hou Hsiao-hsien – Zangiku monogatari explora de forma atmosférica as camadas e máscaras que interligam teatro e cinema, fantasia e “real”. O resultado é um filme de esplendorosa beleza visual, força emotiva e alguma ambiguidade política que continuam a captar admiradores muitas décadas depois da sua feitura. O ciclo no Espaço Nimas e no Teatro Campo Alegre permite agora (re)descobri-lho em ecrãs à medida da sua grandeza.
Zangiku monogatari passa no Espaço Nimas nos dias 4, 5, 9, 10, 15, 18 e 21 de Junho e no Teatro Campo Alegre nos dias 12 e 20 de Junho.