Terceiro ano do AR – Festival do Cinema Argentino e terceiro ano em que o À pala de Walsh se debruça sobre os pontos altos da programação deste festival que apresenta algumas novidades: a sua localização divide-se entre a Biblioteca de Marvila e o cinema São Jorge e, para mais, um grupo magnífico de realizadores nacionais, composto por João Rosas, Rita Azevedo Gomes, Rui Simões e André Godinho, estará presente para apresentar e discutir os filmes. Este terceiro AR começou ontem na Biblioteca de Marvila, com a projecção de Hermia & Helena (2016), a mais recente “encenação” de Matías Piñeiro – a walshiana Sabrina D. Marques escreveu sobre o filme aqui. O filme volta a passar no dia 6 de Julho, desta feita, no cinema São Jorge. Mas há mais para ver e descobrir. Da colheita deste ano destacamos para análise três títulos: La idea de un lago (2016), Kékszakállú (2016) e La larga noche de Francisco Sanctis (2016).
La idea de un lago, filme a ser apresentado pelo realizador João Rosas, é um retrato intimista que vagueia entre um tempo presente, de grandes mudanças, e o tempo da memória, ela que emerge como uma ferida que tarda em sarar. Escrevendo de outro modo: esses dois tempos habitam o espaço do íntimo da protagonista, uma mulher à beira de se tornar mãe pela primeira vez e prestes a lançar um livro de fotografias acerca das imagens que guarda do seu pai há muito desaparecido (suspeita-se que foi perseguido pela ditadura argentina nos anos 70). Os tempos habitam a protagonista e o filme é atravessado por essa teia mnésica, alternando instantes do passado remoto, acedidos através de fotografias ou filmes em super-8 antigos, com flashes de um passado sonhado ou alucinado com ainda momentos de um passado recente que se cola a um presente de onde o filme parte. A realizadora Milagros Mumenthaler revela uma sensibilidade apurada no transporte das imagens e linguagem poética da artista argentina Guadalupe Gaona para o filme, impedindo que La ideia de un lago seja um lacrimejante dramalhão sobre a perda.
Há uma serena mão que afaga o passado não resolvido da protagonista – o idílio ferido da sua infância – com esse tempo presente que funciona como momento-ombreira na sua vida. A linguagem dos media antigos – a fotografia e os home movies em super-8 – é integrada na pele do filme com delicadeza e inventividade, sinalizando uma temporalidade perdida quando contraposta ao ambiente digital de um chat. O passado aparece assim marcado por uma dada matéria e uma certa textura que moldam, enfim, a maneira como regressamos a esse tempo encantador, mas nem sempre pacífico, da infância. Conta-se aqui, portanto, a história da infância de uma personagem, mas também da infância de formas de acesso ao tempo. O tempo do íntimo e o tempo da memória. Os dois são fluxos de uma mesma ideia aqui.
Kékszakállú, filme que contará com a apresentação de Rita Azevedo Gomes, é uma ópera moderna sobre vidas sem rumo. Inspirado em O Castelo do Barba Azul de Bartok (o título do filme alude ao nome em húngaro da obra operática), este filme de Gastón Solnicki tem todos os bons condimentos do cinema de autor contemporâneo, de Carlos Reygadas a Lucrecia Martel: uma construção narrativa estilhaçada por elipses, uma dimensão coral que leva a que não haja um só protagonista, mas uma variabilidade de presenças (ou, palavra-chave muito cara, “corpos”), e uma atracção por tempos vazios e paisagens bucólicas oferecidas à contemplação. Kékszakállú começa numa estância balnear paradisíaca onde jovens esbeltos – uma beleza muito Benetton – espraiam o seu fare niente. O filme vive na e da suspensão de uma das suas primeiras imagens. Uma miúda prepara-se para se lançar à piscina. Só que a montagem omite o splash. A partir daqui percebemos que estamos dentro da instituição mais bem cotada do filme de autor “para festival ver”: a elipse. Ocupar os tempos mortos, enchê-los de duração e elidir os splashes dramáticos – esta é a receita que aqui se segue e, sem dúvida, com relativo know how.
A segunda parte do filme mergulha no dia-a-dia da cidade, longe do éden bucólico tão Benetton. Aqui as personagens vão revelando a sua muito “contemporânea” falta de orientação na vida. Uma delas não sabe o que quer para o futuro. A certa altura descobre alguém que partilha a mesma falta de norte e deixa escapar um sorriso como quem enuncia a possibilidade de que não ter futuro pode ser o lugar ideal para o seu futuro. Há, de facto, em Kékszakállú um comprazimento pela partilha de tempos mortos ou esvaziados. Este mundo bonito, “de catálogo”, está rendido à constatação de que há uma opereta pronta a ser encenada na queda, e prostração, dos corpos contra a paisagem de uma, como se lê numa das sinopses, “recessão cultural”. Uma opereta sem splash, claro. O filme, vítima do seu próprio “cânone de autor”, ofuscado que está por toda a sua high art, também nunca chega a mergulhar fundo nas suas intenções.
Por fim, deixo uma nota de curiosidade acerca de La larga noche de Francisco Sanctis, uma espécie de After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985) ambientado nos tempos da ditadura argentina dos anos 70. É um drama concentrado numa personagem, um pai de família de vida pacata que se vê envolvido subitamente – “fora de horas” – no submundo da resistência política ao regime – por esta razão, a projecção deste filme será acompanhada pelo documentarista português Rui Simões. Esta é uma obra de estreia assinada por uma dupla de realizadores, Andrea Testa e Francisco Marquéz, filmada de modo conservador, sem riscos ou grandes pretensões. Essa pouca, diria, ambição formal não prejudica uma coisa: o objectivo que este filme nitidamente tem de mostrar a experiência da clandestinidade política como lugar de um espaço off omnipresente, que só escapa aos “adormecidos”.
La larga noche de Francisco Sanctis fez-me lembrar um filme português que vi há exactamente um ano no Curtas Vila do Conde: Menina (2016), fabulosa curta-metragem de Simão Cayatte. A diferença está nisto: a obra do português, filme de terror doméstico sobre a experiência totalitária portuguesa, é formalmente desafiante e leva a sua premissa até ao fim, ao ponto de nos enregelar a espinha. Pelo contrário, há qualquer coisa em La larga noche de Francisco Sanctis que se volta contra si mesma: a “cobardia” da personagem é a “cobardia” dos seus realizadores receosos de arriscar, presos a um cinzento e anónimo bem-fazer. Apesar da ligeira curiosidade, tem de haver mais e melhor no cinema argentino contemporâneo.