Não deixa de ser surpreendente, mas ao mesmo tempo revelador, que o cineasta experimental americano Bill Morrison tenha dito que uma das suas obras mais famosas – Decasia (2002) – era uma espécie de resposta a este filme produzido por Walt Disney a abrir a década de 40. Surpreendente pois o filme do primeiro, ao contrário da animação, é sobretudo habitado e construído sob o signo da degradação, mais concretamente da “morte física” progressiva da película e de como a partir dessas fendas que o tempo vai abrindo nas imagens de outros, se pode circular (no tempo, na criação) para novas coisas e novas associações de imagens e sons. E aqui começa a diminuir a estranheza, pois chegamos ao som, ou melhor à música. É que se Fantasia (1940) só a espaços de deixa encaminhar pela escuridão (o mal, a noite, a tormenta, a soberba tudo está presente no filme, mas com doses terapêuticas) ele também é, como o filme de Morrison, um filme musical. No caso de Decasia, a montagem dos diferentes segmentos de película é determinada pela peça musical que Michael Gordan fez para o filme. No caso de Fantasia o processo foi mais complexo, variando em cada segmento: ora a história vinha primeiro, como no pedaço da adaptação do poema de Goethe ” O Aprendiz de Feiticeiro”, ora era a música que sugeria as imagens, as cores, os movimentos.
Mas se pode dizer-se que a música está no centro de ambos os projectos, existe ainda um outro ponto onde eles se conectam. Face ao cinema experimental a problemática da brecha no todo diz respeito às imagens originais que o suporte película guardou e que foram depois reconfiguradas pelo dedo de Morrison. Em Fantasia a audácia é maior: não se trata (apenas) de usar a animação como forma de prolongar o campo da historia do cinema que procura tornar a música em algo visual, mas sim em fazê-lo num contexto fora do cinema experimental e numa sala cheio de famílias que 3 anos antes haviam visto Snow White and the Seven Dwarfs (Branca de Neve e os Sete Anões, 1937). É aqui que um público formatado no cinema narrativo iria deixar que as notas do “O Quebra Nozes” de Tchaikovsky ou o “A Sagração da Primavera” de Stravinsky, para dar apenas dois exemplos das peças trabalhadas, dessem origem a massas coloridas, a sombras, flores dançantes ou formas indefiníveis, numa fluidez próxima do sonho, de abertura da mente pelas relações expansivas e, em muitos casos fracturantes, entre as notas musicais e as sequências animadas.
Uma das pistas na qual se pode ler a audácia de um projecto como estes é a presença do critico musical Deems Taylor que faz de mestre de cerimónias e que, entre cada segmento, vai explicando para a câmara, para o espectador, os “ovnis” que se iam seguindo, o que iriam ver, comentando por antecipação, dando pistas de visionamento. Se hoje em dia essa dimensão explicativa, de “visita guiada” a Fantasia nos soa a ridiculamente didáctica e desnecessária, não é sem surpresa que mesmo assim, o poder evocativo de cada segmento resista na sua delirante fantasia a uma prévia explicação. A presença física da orquestra, as sombras dos músicos e dos seus instrumentos, a imagem-rima do maestro que conduziu a gravação das peças, Leopold Stokowski, sempre de costas, funcionam como “bóias de salvaguarda” para não nos afogarmos na cor e no movimento de um filme-concerto que dança, que paira, que ilumina sem parar.
E o trajecto que seguiremos é da abstracção ao inefável. Começamos com a Tocata e Fuga em D Menor de Bach com linhas de cor e cordas de instrumentos, sombras, efeitos de luz no céu rosa, azul, é com ele que passamos, pela primeira vez, do live action à animação. O segundo segmento acompanha a circularidade das estações ao som de Tchaikovsky, as flores bailarinas em coreografias rodopiantes como num filme de Busby Berkeley, os cogumelos feitos silhueta asiática, as flores ondulantes debaixo de água, os peixes desconfiados, as pétalas feitas folhos de vestido, as teias iluminadas pelos pirilampos, as folhas que caem, o gelo que desce até à Primavera seguinte. Segue-se o já referido momento, que foi o ponto de partida inicial para o filme, o segmento que deveria avivar a decaída popularidade da personagem do Mickey aos olhos de público. Neste, o famoso ratinho, encarna, ao som da música de Paul Dukas, o problema do aprendiz que se deixa deslumbrar pela magia, uma tecnologia descontrolada corporizada nessa imagem tão poderosa que é dada pela vassoura que continua a levar em braços baldes de água para dentro de um poço, ele próprio já submerso em água.
Ao som das diferentes tonalidades de “A Sagração da Primavera” de Stravinsky assistimos, no quarto episódio, ao início da vida na terra, primeiro com as explosões de lava e de percussão, a invasão dos violinos e da água, as formas primitivas de vida, os sopros de esvoaçantes dinossauros, os violinos dos dinossauros terrestres de olhos fino, apenas interrompidos pelos gongos e sons graves das irrupções do grande predador T-Rex. Talvez o segmento mais conseguido seja o seguinte, quando o monte Olimpo, povoado de unicórnios, pégasus-cisnes e centauros (e centauras), se abre ante a Sinfonia Pastoral de Beethoven. Elas ajeitam as crinas em trança e pintam os lábios, eles surgem de peito hirto e confiante, oferecendo flores e beijinhos. Aqui o antagonismo, a interrupção do puro prazer do vinho e das orgias de Baco, provém dos relâmpagos de Zeus, que corta com a tempestade a bonança. Mais estritamente ligado à dança é a penúltima parte, em que surgem as avestruzes em pontas e os hipopótamos e elefantes de tutu, em que vamos ouvindo a “Dança das Horas” de Amilcare Ponchielli, ora leves na manhã, ora pesadas ao anoitecer.
Mas disse que tudo terminaria no inefável e assim é. Depois da oposição entre o frio e o calor das estações, entre o pesado e o leve das horas, entre os dinossauros e a vida que se lhe seguirá ou entre a diversão e a tempestade, tudo culminará entre a escuridão e a claridade. Entre a noite – em que as chamas, os fantasmas e esqueletos se erguem para dançar ao seu amo demoníaco Chernabog (ao que se diz inspirado em Bela Lugosi), ao som de “A Night on Bald Mountain” de Modest Mussorgsky – e a procissão ao compasso de Ave Maria, de Schubert. Sinos que começam por perturbar o negrume e acompanham, desfocadamente, compassadamente, o caminho para uma nesga de luz, um paraíso em que se entra nas vezes da palavra “fim”.
Acabo, repegando na questão da necessidade de explicação ao público de Fantasia do que iriam ver. Se hoje abundam as animações que logo à cabeça se anunciam inexplicáveis, mal educadas, sujas e ousadas (pelo menos segundo os moldes do politicamente correcto) e depois evoluem para um relativo convencionalismo, com o filme da Disney acontece exactamente o oposto. Em 1940, como hoje, pode começar-se por explicar algo do que vamos ver, mas tudo permanece sempre oculto, pois o que se vê é o que se ouve e o que se ouve é o que se vê. Inversão poderosa, inversão ainda inexplicável.