O festival Filmes do Homem, que traz o mundo a Melgaço, começa amanhã, dia 1, e estende-se até dia 6 de Agosto. O À pala de Walsh vai estar lá, apresentando sessões e interagindo com os realizadores e público. Este evento organizado pela Câmara Municipal de Melgaço e pela Associação Ao Norte tem o intuito de alargar as nossas mundividências, mostrando filmes de pendor documental e com preocupações humanistas. Esta selecção de obras procura fazer uma espécie de raio-x ao estado do mundo, atravessando continentes, mas insistindo nas mesmas questões fundamentais, a saber: como nos podemos manter humanos em situações de conflito ou de injustiça? Como pode o cinema ser um instrumento de resistência contra o ódio, a opressão e o esquecimento? Como podem os filmes servir a memória e o enraizamento? Luís Mendonça (LM) e Ricardo Vieira Lisboa (RVL) serão os walshianos a marcar presença e são eles que, aqui, fazem a sua antevisão do festival.
Estreado faz cerca de um ano, no Festival de Locarno, Manodopera (2016) de Loukianos Moshonas é um filme de uma tranquilidade surpreendente dado o seu tema: o descontentamento borbulhante da sociedade grega. Montado num exercício dialético que intercala, de uma banda, uma conversa de grupo (propulsionada por um charrinho que saltita de mão em mão e umas cervejas que refrescam a sufocante atmosfera helénica) onde se discutem livremente as noções de poder, de orquestração social, de dependência dos povos, das dívidas e dos empréstimos, do valor do trabalho, entre tantas outras coisas, com, na outra banda, gestos laborais (uma parede que se desfaz à martelada, uma chave que se replica, um mosaico que se assenta no solo) que caminham na direcção da remodelação de um apartamento. O propósito é simples, mas subtilmente colocado: a refundação de um país que se faz pelas coisas pequenas do dia-a-dia, pela casa que cada um constrói com as suas próprias mãos. Moshonas transforma vários desses momentos através de inesperados movimentos de câmara elegantíssimos que conferem às coisas mais simples (um par de luvas que descai de um banco) num momento de enorme gravidade dramática e poética. Mas, claro, o final levanta a ponta falaciosa da empresa, colocando tudo em causa: que futuro existe na precariedade dos pequenos gestos, por mais poéticos que eles sejam? (RVL)
Poucas têm sido as tentativas azadas de satirizar em cinema a retórica do terrorismo islâmico [Four Lions (2010) é, portanto, a excepção que confirma a regra]. Sabemos como a comédia pode atingir mais ferozmente a sensibilidade do inimigo – basta lembrar o caso dos ataques à redacção do Charlie Hebdo. Ora, The Art of Moving (2016), da realizadora alemã, com costela portuguesa, Liliana Marinho de Sousa, interroga-se – e interroga-nos – sobre isso: como é que é possível desmontar a guerra absurda do Daesh e de Assad por via do humor? Um grupo de videoactivistas sírios, chamado Daya El-Taesh, parte do seu país para a Turquia com o projecto de criar um programa – ao jeito de Daily Show – que faz pouco dos temas quentes da actualidade síria e turca, rindo-se, se for caso disso, na cara do totalitarismo, da guerra e do fanatismo. Contudo, talvez o passo seja maior que a perna. Na Turquia, este grupo depara-se com uma série de obstáculos. Perseguido pelas forças que ridiculariza, está permanentemente “on the go” para não ser detectado. Diz a realizadora em entrevista: “Os meus protagonistas foram ameaçados, a sua casa foi destruída, a polícia turca andava atrás deles. Eles foram ameaçados tanto pelo regime sírio como pelo ISIS.” Talvez o Médio Oriente não esteja pronto para eles, talvez rir não seja, afinal, o melhor remédio. O filme, que é sobre a comédia como activismo, lida com o desenraizamento, a insegurança e o ódio – não tem, portanto, piada nenhuma. The Art of Moving é um relato seco e angustiado de um dia-a-dia de resistência contra o preconceito e a intolerância. (LM)
Não é todos os anos que o “cinema português” recebe um Urso de Ouro, no entanto, pelo segundo ano consecutivo foi isso que aconteceu: depois de Leonor Teles, foi a vez de Diogo Costa Amarante vencer a competição internacional de curtas-metragens na última edição do Festival de Berlim com Cidade Pequena – estreado no ano anterior no Curtas de Vila do Conde. Galardão ainda mais valioso quando o filme não teve financiamento, foi auto-produzido e o realizador é também argumentista, montador, director de fotografia e de som. O que primeiro espanta no filme é o formato. O ecrã largo serve para filmar caixões e cobras, dizia Lang. Para Costa Amarante serve para filmar o sobrinho, dormindo. Este aparente choque entre a largueza do formato e a miudeza íntima do assunto é apenas um de vários choques que o filme convoca. A saber: a forma como a imagem se compõe – sempre na vertigem da desmontagem – qual puzzle onde é impossível reconhecer as costuras das peças. Dessas estranhas e improváveis composições surgem imagens, cenas e sequências que afirmam o poder da fantasia infantil (que a manipulação digital permite – na sua candura mas também na sua violência) e a forma como esta se vai desvanecendo, descaindo, tornado-se abstracta. A juntar a isto há também uma qualidade musical que nos faz saltitar de plano em plano, numa constante descoberta de soluções e rimas internas – uma complexidade, em abismo, que partilha (pelo menos aí) ligações com As Rosas Brancas (2014), o anterior filme do realizador, e com o seu simbolismo lírico-implosivo. Cidade Pequena é um objecto raro, pela estética que convoca, pelo panorama do cinema nacional (onde dificilmente se insere) e na própria obra do realizador. Mas é exactamente na margem (ou à margem) que o filme parece sentir-se melhor. (RVL)
Como se sabe, a Primavera Árabe foi tudo menos primaveril. O jovem realizador egípcio Christophe Magdy Saber viveu a revolução à distância, a partir da Suíça, mas o seu país nunca deixou de chamar por ele. As ameaças recentes de que são alvo os seus pais cristãos levam Christophe a pegar numa câmara antes de regressar a casa. Ele sabe que haverá matéria para um filme. Porque, desde logo, um novo, e muito instável, Cairo – o do muçulmano Mohammed Morsi – está à sua espera. “O Cairo estava irreconhecível”, confidencia em over o cineasta sobre imagens de um país debaixo de um processo revolucionário de desfecho muito imprevisível, provavelmente condenado à radicalização islâmica. Num ambiente tenso de perseguição e intolerância religiosa, os dias sucedem-se e o “diário de câmara” de Christophe vai reunindo os sinais de uma segunda revolução por vir, a que viria a ditar o fim do regime de Morsi. A utopia revolucionária é como o vale de sal ou o oásis verde no deserto onde a família encontra o refúgio possível. Quo vadis, Egipto? La Vallée du Sel é um documento valioso, retrato de um país em ebulição desenrolado a partir de um olhar privado. Estamos sempre em trânsito, entre o grande movimento da História e o interior mais íntimo de uma família que, como tantas, apenas procura manter-se unida, ainda que o pai, ameaçado de morte, assegure que está preparado para morrer. É aqui que La Vallée du Sel comove: este filme é também, antes de tudo, uma carta de amor – verdadeiro testemunho de força e coragem -, de um filho para o seu pai. (LM)
Rosas de Ermera trata de regressos: um, o do realizador, ao continente asiático, depois de Amor e Dedinhos de Pé (1991) filmado em Macau; dois, de Mariazinha, a Timor, depois do episódio central do filme, evento traumático da sua infância; três, do realizador, de fazer um filme sobre a vida de Zeca Afonso (irmão de Mariazinha); quatro, de Mariazinha, e das suas memórias de um território onde o sofrimento e a inocência se fundem. Explico-me: Luís Filipe Rocha parte do testemunho de Maria e João, os irmãos ainda vivos do falecido José, vulgo Zeca, para contar a história de uma família e, em particular, de um episódio histórico pouco referido na recente História de Portugal. Esse episódio é o da ocupação de Timor pelo Japão aquando da Segunda Guerra Mundial, ocupação que colocou os portugueses aí residentes em campos de concentração, sendo Mariazinha uma das vítimas. Filipe Rocha constrói Rosas a partir de um diálogo, nunca presencial, entre Maria e José, irmãos separados por um hemisfério, retratando simultaneamente a realidade da vida no Portugal do Estado Novo e na colónia timorense. Relatos de felicidade, subversão, maus tratos e esperança. Mas aquilo que mais toca no filme é este transformar-se em presente, para o espectador médio que toma conhecimento de uma realidade pouco discutida (eu nunca tinha ouvido falar do episódio…), mas especialmente para Mariazinha, que por causa do filme volta ao espaço da sua infância que, por mais tormentosa, não deixou de ser uma infância rosada. Aí, na generosidade do realizador, o filme encontra a sua singularidade. (RVL)
Hidden Photos (2016) percorre a história do Cambodja, num movimento de revelação de um passado ancestral que o terrível regime liderado por Pol Pot procurou erradicar. Esta revisitação redentora da história é complementada pelo olhar e objectiva de Kim Hak, jovem fotógrafo cambojano que nas suas imagens, cheias de cor, vida e esperança, tenta curar um país onde ainda dói recordar. Do outro lado da barricada está Nhem En, fotógrafo que trabalhou para o regime dos Khmer Rouge, fotografando vários milhares de vítimas, e que no presente procura lucrar com essa dor colectiva transformando-a em atracção turística – viagens aos locais emblemáticos do antigo regime são acompanhadas das suas fotografias tiradas no pico e no ocaso da ditadura. São duas maneiras de lidar, fotograficamente, com as ruínas de um país. É impossível não pensar em Rithy Panh – e nas “imagens que faltam” que este tem procurado desenterrar nos seus filmes – ou mesmo em Joshua Oppenheimer, pese embora a mudança de paisagem e o facto significativo de não se partilhar aqui o mesmo gosto escabroso pelo espectáculo macabro-kitsch. De facto, este filme do italiano Davide Grotta tem uma vista larga, talvez demasiado ambiciosa, concentrando num filme de pouco mais de uma hora várias direcções possíveis no seio de um projecto de inquirição da História. Apetece dizer que há muitos (e até potencialmente bons) filmes aqui, mas não um filme inteiramente conseguido ou, pelo menos, uma obra que dê um sentido coeso aos vários projectos (est)éticos que chama até si. (LM)
Na viagem que fiz a Famalicão a propósito do primeiro Close-up – Observatório de Cinema, um evento concebido pelo cineclubista Vítor Ribeiro (entrevista aqui), ficaram-me na retina várias imagens, mas houve três que não esqueci: as dos rostos de Carla Bolito, Vera Mantero e Isabel Ruth, captados frontalmente pela câmara da cineasta italiana, radicada em Portugal, Luciana Fina. Esta instalação, intitulada Chant Portraits, servia para dar as boas vindas aos espectadores num dos halls da Casa das Artes, local onde decorreu a mostra. Esta dimensão do grande plano está presente, com a mesma força nua, em Terceiro Andar (2016). É curioso como o filme, que também existe sob a forma de uma instalação, parte de um exercício teórico sobre o espaço, a linguagem e a tradução – até apetece dizer que o filme se vai lentamente constituindo como o espaço de uma “linguagem da tradução”. A filha que dá palavras à mãe guineense para esta traduzir, a filha que dá à realizadora instruções sobre uma montagem que não vemos, a câmara, por sua vez, que circula entre os andares do edifício situado no Bairro das Colónias, em Lisboa… tudo se medeia ou se intercambia em operações de tradução. Com efeito, Terceiro Andar é uma pequena viagem de câmara, entre andares, em que, no fim, o principal objecto de fascínio é o que está “entre” ou escondido algures nos rostos de uma mãe e de uma filha – Ricardo Vieira Lisboa aprofunda esta ideia na sua crítica. Dizendo mal e rudemente, é na força e na beleza destes rostos que habita “a grande tese” deste pequeno, mas elegante, filme. (LM)
O À pala de Walsh quer deixar um agradecimento a toda a organização do Filmes do Homem, em especial à Patrícia Nogueira. Vemo-nos em Melgaço.