José Bértolo, nosso antigo cronista, escreveu um livro delicado e penetrante sobre um cineasta que considera subestimado: François Truffaut. A partir do trabalho de investigação que desenvolveu no âmbito de uma tese de mestrado, defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o autor produziu as Imagens em Fuga: Os Fantasmas de François Truffaut, uma edição pela Documenta. O percurso teórico é moldado por um olhar singular que activa nas imagens um pensamento que propõe Truffaut como uma nova ou renovada atitude crítica. O que significa ser-se truffautiano? Mais: como podemos ser truffautianos em Truffaut? Num permanente jogo de espelhos, entre o material e o imaterial, a coisa e a imagem da coisa, Bértolo atravessa a obra do realizador de Jules et Jim (Jules e Jim, 1962), dando especial atenção a títulos menos vistos ou considerados e iluminando, pelo caminho, vizinhanças produtivas e quase sempre inesperadas. Esta maneira truffautiana de ver Truffaut, tal como o cinema e a cinefilia, foi um dos principais assuntos desta conversa com José Bértolo, que teve como cenário a Livraria Linha de Sombra, da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
Começava por te perguntar o óbvio: porquê François Truffaut?
Antes de ser um livro, este texto foi uma tese de mestrado. Portanto, porquê escrever sobre o Truffaut numa tese de mestrado? Começo pela dimensão mais anedótica da coisa. Inicialmente, a minha tese ia ser muito mais ambiciosa. Era uma tese sobre os fantasmas no cinema. Tinha que ver com a ontologia espectral do cinema. Era isto que me interessava, era esta a ideia que eu perseguia. E o meu corpus de trabalho era vasto, ia desde o Yevgeni Bauer até ao João Pedro Rodrigues. Era uma coisa transversal. A certa altura, estava muito insatisfeito com a maneira como o trabalho estava a desenvolver-se, porque não estava a conseguir fixar um corpus. Estava a trabalhar toda a história do cinema… Não estava a funcionar. A certa altura, paralelamente, estava a fazer um seminário com a Clara Rowland, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sobre cartas no cinema. Um dos filmes que vimos no seminário foi Les deux Anglaises et le continent (As Duas Inglesas e o Continente, 1971). Para me preparar para as aulas, comecei a rever filmes do Truffaut em casa. Isto foi na altura em que eu estava realmente infeliz com o rumo da tese. Ainda não começaste a escrever, queres ter a garantia de que vai funcionar, mas não sabes se vai funcionar, começas a ficar ansioso. Enquanto não começas a escrever, não tens material em que te ancorar, portanto, só tens sonhos e medos. Isso fez com que, no momento em que eu vi outra vez, nomeadamente, o Baisers volés (Beijos Roubados, 1968) e o Les quatre cents coups (Os Quatrocentos Golpes, 1959), pensasse: “este cinema faz-me feliz! É maravilhoso! Estou a precisar de sentir isto, vou deixar os fantasmas e trabalhar o Truffaut!” Na altura não sabia especificamente o que queria trabalhar no seu cinema. Depois, foi muito interessante porque acabei por escolher os filmes mais soturnos do Truffaut. Acabei por trabalhar fantasmas, a ontologia espectral do cinema… fui dar ao mesmo ponto de partida.
Havia um filme do Truffaut no meu corpus inicial que era o La chambre verte (O Quarto Verde, 1978). Portanto, houve uma ligação entre essa primeira forma de tese e a outra. Mas, na verdade, o que me levou a escolher Truffaut – e tendo em conta o estado de ansiedade em que estava – foi o facto de, escolhendo um só cineasta, ter o problema do corpus resolvido. Era uma questão de escolher dentro da obra do Truffaut. E havia esse elemento sedutor que era: o Truffaut fazia-me sorrir. Vês os filmes iniciais, ou sobretudo os do Doinel, e encontras essa dimensão alegre, que é uma coisa que ele herdou do Jean Renoir. Também escolhi o Truffaut porque é um tipo de cineasta que me interessa muito: é um tipo de cineasta que trabalha com a narrativa de uma forma inteligente e sofisticada.
Perguntei “porquê Truffaut?” precisamente porque tenho a impressão que a tua leitura da obra do francês insere-se num movimento geral de reavaliação crítica da sua filmografia como um todo. Houve uma retrospectiva integral na Cinemateca Francesa da sua obra tal como saíram várias publicações recentemente. Em que medida um cineasta apesar de tudo popular como foi Truffaut precisa deste novo olhar?
Na verdade, quando escolhi o Truffaut não pensei nisso. Mas, de facto, coincidiu. É verdade que saíram edições da Cinemateca Francesa que pude ler e incorporar no livro. Contudo, e vou ser um pouco polémico, creio que este ressurgimento não foi acompanhado de uma verdadeira reavaliação do Truffaut. Julgo que quem não gostava do Truffaut continua a não gostar, e acho que as melhores coisas que se escreveram sobre ele foram feitas nos anos 70, pelo Jean Collet. Desde então, produziram-se pontualmente alguns textos muitos bons. Há, por exemplo, um estudo recente da Lúcia Nagib sobre L’homme qui amait les femmes (O Homem que Amava as Mulheres, 1977) que é óptimo. O Tom Conley [entrevistámo-lo aqui] também já escreveu textos interessantes sobre o Truffaut. Entre outros bons exemplos. Mas estas edições da Cinemateca não avançam muito, em termos do estudo do cineasta. O que se verifica é a propagação de certas ideias-feitas e a continuação do estudo de certas linhas, que são sempre as mesmas: as mulheres, o Doinel em articulação com a vida do Truffaut… Eu sigo a linha do Jean Collet, mas sem a carga psicanalítica.
Uma das fontes de curiosidade que o teu livro inspira prende-se com o teu corpus de análise, que está longe de ser o mais óbvio dentro da filmografia do Truffaut, por exemplo, La mariée était en noir (A Noiva Estava de Luto, 1968), La sirène du Mississipi (A Sereia do Mississipi, 1969) e L’histoire d’Adèle H. (A História de Adèle H., 1975). Foi, digamos, por conveniência académica que escolheste estes filmes, isto é, escolheste-os porque trabalham por dentro questões que te interessam, relacionadas com as fantasmagorias, os reflexos e a escrita? Ou escolheste-os dentro de uma lógica de reabilitação crítica desses filmes no universo truffautiano?
É uma conjugação dessas duas coisas. A primeira motivação para escolher estes filmes em particular foi a minha proposta de estudo: analisar figuras de representação no cinema de François Truffaut. Percebi, a certa altura, que vários dos seus filmes se estruturavam em torno de imagens de segundo grau, como fotografias, pinturas, esculturas, e também sobre figuras de escrita. Perguntava: de que forma os filmes se constroem em torno dessas figuras de representação? Em Godard, por exemplo, não é assim. No À bout de souffle (O Acossado, 1960) o quarto da Jean Seberg tem várias pinturas. As pinturas ali abrem o filme e filiam-no a um certo universo, mas não te levam a rever o filme em função dessas figuras.
Neste contexto, esses eram os filmes que se adequavam mais. Também o Jules et Jim o era, mas escolhi não ter este filme como estudo de caso, porque precisamente era muito trabalhado… O Truffaut é, na minha opinião, um cineasta mal visto em geral, mesmo por pessoas que gostam. Depois de verificar que esses eram os filmes mais adequados, percebi que eram filmes muito mal vistos em particular. São filmes em que parece que a superfície da narrativa absorve tudo. As pessoas não percebem o que se está a passar ali. A certa altura, pensei: “vou mostrar que estes filmes têm alguma coisa lá dentro. Vou desocultar coisas que estão lá e que certas pessoas não estão a ver”. Decidi ser um messias do Truffaut [risos]. Há cineastas que precisam disto. Por exemplo, o Douglas Sirk. Ninguém tinha o Sirk em consideração até o Fassbinder dizer: “aquilo tem qualquer coisa”. E escreveu uma série de textos em que provava isso.
É curioso porque eu adjectivei o Truffaut e disse – tal como tu dizes várias vezes no teu livro – a palavra “truffautiano”. É difícil de dizer. “Godardiano” é muito mais fácil. Adjectiva-se melhor no sentido em que a herança não é tão difícil de definir ou identificar. Às vezes os cineastas são também os seus efeitos.
Generalizando abusivamente, diria que o tipo de estudo que se faz na academia hoje é, em geral, mais godardiano, mas há um tipo de estudos que pode ser truffautiano. Eu diria que o que o David Bordwell faz é mais truffautiano do que godardiano. E o Bordwell às vezes faz coisas pouco interessantes, mas também faz coisas muito interessantes. Gosto de quando ele pega no cinema da década de 10 e começa a ver como a mise en scène ali faz o filme significar. Se pensarmos nisto, acho que o Truffaut se insere numa linha truffautiana que já vem desde o cinema dos anos 10 e que tem que ver com a construção de sentido no interior do filme, que é uma coisa que não acontece tanto no Godard ou no Resnais. Neles as coisas processam-se de forma diferente, não vêm de dentro. Mas isso acontece, por exemplo, com o Truffaut e, também, com o Almodóvar, ou, mais atrás, com o Ophüls. São cineastas que trabalham com a narrativa, e a auto-reflexividade ou auto-consciência está por debaixo de camadas e tens de as retirar para veres que elas estão lá. Por isso é que eu acho que o Truffaut é um cineasta muito clássico. Quando o Mário Jorge Torres esteve aqui [na sessão de apresentação do livro na Livraria Linha de Sombra] ele disse que o Truffaut é o verdadeiro herdeiro do cinema clássico americano na Nouvelle Vague. Geralmente fala-se mais do Godard.
Gostava de falar um pouco da relação do Truffaut com o seu cinema. O próprio Truffaut, escreves, não gostava de La mariée était en noir. Acabou por desvalorizar este seu filme por o considerar demasiado violento ou transmitir a mensagem errada. Tu opões-te, no livro, a esta ideia. Ao mesmo tempo, apesar do Truffaut ter produzido uma vasta obra crítica, és parcimonioso a citá-lo. É esta a tua maneira de dizer que, citando Maria Filomena Molder no seu mais recente livro, Rebuçados Venezianos, “a obra é independente de quem a fez”?
É um pouco isso. É muitas vezes interessante ler certos cineastas à luz das suas teorias. Por exemplo, já escrevi várias vezes sobre o Epstein, e no seu caso é muito importante leres o que ele escreveu. Aí a relação entre a produção cinematográfica e a produção escrita é muito íntima. Os filmes vêm, de alguma forma, no seguimento da sua escrita. Os escritos são também de uma natureza diferente. Os textos do Epstein são mais teóricos, ao passo que os do Truffaut são mais críticos. Um texto crítico, claro, tem sempre uma certa dimensão teórica. Pelo menos é possível extrair alguma coisa teórica, porque ninguém faz nada sem ter teoria, sem ter uma ideia. Mas, no caso do Truffaut, não me pareceu muito interessante [citar tanto as suas críticas] porque a minha proposta é muito simples e localizada. Consistiu em ver como é que os filmes funcionam. No fundo, podia resumir-se a isso: vamos pegar em quatro filmes do Truffaut e ver como eles funcionam. Acho que nunca falo aqui da “política de autores”. E nunca falo do Godard. Na defesa do mestrado uma das perguntas foi essa: “como é que conseguiu escrever uma tese sobre o Truffaut sem mencionar o Godard uma única vez?”
O que respondeste?
Para já, fiz o exercício oposto: ninguém vai perguntar a alguém que fez uma tese sobre o Godard porque é que não referiu o Truffaut.
Foi uma boa resposta.
Foi uma pergunta sintomática de um estado de coisas. Mas é injusto que não se consiga olhar para Truffaut sem pensar em Godard, quando ele pratica um cinema muito diferente e que não precisa do Godard para ser considerado. Precisa muito mais, por exemplo, do Sirk ou do Hitchcock. O Mário Jorge Torres esteve muito bem na apresentação quando falou disso.
Tu convocas o Hitchcock, nomeadamente o Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) nesta questão da fantasmagoria. Mas, de novo, és parcimonioso a usar o livro do Truffaut com as entrevistas ao Hitchcock.
Julgo que só cito uma vez. Sim, eu acho que a crítica em Truffaut está cheia de lugares-comuns. Quando vesti a camisola Truffaut – porque gosto muito, porque considero-o um cineasta maltratado em geral – houve várias coisas de que tentei fugir. Uma delas foi a entrevista ao Hitchcock, outra foi a relação de adaptação com o Henri-Pierre Roché, outra foi o ciclo Doinel e a sua dimensão autobiográfica.
Há um autor de que não fugiste e que sei que gostas muito: Jean Louis Schefer. Foi interessante ver como obedeces um pouco à metodologia que ele aplica nos capítulos iniciais do seu L’homme ordinaire du cinéma. À semelhança de Schefer, desdobras o teu pensamento normalmente a partir de um still de um filme. Perguntava-te se te é caro o projecto de uma crítica da imanência, próxima das imagens.
É um olhar que eu tenho e que desenvolvi, mas inconscientemente. Se calhar tem que ver com o facto de ter começado a escrever sobre cinema em blogues. Já foi há muitos anos, era miúdo. Para mim era importante ter imagens. O que acontecia é que, a certa altura, eu escrevia sobre imagens, já não sobre um filme. Isso desencadeou uma forma de abordar o próprio trabalho académico. Em diversas instâncias acabei por sentir que era interessante, porque não era o método predominante no estudo do cinema hoje. A mim interessa-me reforçar esta metodologia, de extrair as coisas a partir dos filmes, das imagens. Mas isto tem também que ver com a especificidade do livro. A ideia era atentar com mais atenção em figuras de representação que já estão dentro dos filmes. Portanto, tem muito que ver com esta questão: “o que é que uma imagem fixa nos pode dizer?” As minha obsessões enquanto cinéfilo prendem-se com a imagem, com os simulacros, com a desmaterialização ou com uma materialidade precária. Ou, por exemplo, jogos de espelhos. Por isso, tenho tendência para gostar de cineastas como Brian De Palma ou mesmo o Hitchcock. O que são o North by Northwest (Intriga Internacional, 1959) ou o Vertigo? Jogos de simulacros. Isto tem que ver com o cinema: a construção de um mundo que duplica o mundo real, rematerializando-o. O que estes cineastas trabalham – e o Truffaut trabalha muito isso, e acho que o livro toca nisso às vezes – é a sugestão de que – o Schefer disse-o – o mundo é mais cinema do que nós julgamos. O mundo, de alguma forma, já é em si um cinema que nós habitamos. É uma ideia velhíssima – até o Shakespeare é um pouco sobre isto. Mal ele sabia…
O Truffaut traz isto para dentro dos filmes. O que acontece quase sempre é as personagens dele criarem as suas próprias histórias. O que é o que o Louis Mahé [Jean-Paul Belmondo] faz no início de La sirène du Mississipi? Ele invoca uma mulher para criar um filme. Mas depois a mulher que lhe aparece, por acaso, não é a mulher que ele invocou, é outra. Outra melhor ainda, porque é ainda mais bonita do que a outra cuja foto ele tinha recebido. Óptimo, o filme vai ser ainda melhor. Tem a Catherine Deneuve!
Todas estas questões, ligadas à representação, aos reflexos, à imagem e à escrita, estão bem presentes na tua antiga crónica de stills do À pala de Walsh: significativamente intitulada Simulacros. Começas precisamente da mesma maneira a tua crónica do que começas o teu livro: com uma imagem do pouco visto filme de Douglas Sirk, Interlude (Os Amantes de Salzburgo, 1957). Na tua crónica, intitulaste o still com uma frase que coincide em grande parte com o programa teórico e estético do teu livro: «Perdido o original, substituto-retrato é o menos cópia». Através do retrato na parede ingressas num outro filme, explicas no livro. Ele é o atractor que te faz mergulhar em profundidade num filme dentro de outro que tu próprio dizes ser “pouco desafiador”. Isto levanta-me várias questões, mas a principal é: são às vezes os detalhes de um filme as melhores portas de entrada para mergulharmos neles?
Penso que isso tem que ver, de alguma forma, com o trabalho que comecei a desenvolver – ainda estava na licenciatura – no projecto Falso Movimento, um projecto do Centro de Estudos Comparatistas [da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa]. Esse projecto tinha como consultor o Tom Conley. Na altura, li muito o Tom Conley. Depois acabei por ler a Marie-Claire Ropars-Wuilleumier. Ela conseguia escrever várias páginas a propósito de um minuto de filme. Aí começas a perceber a análise textual. O Raymond Bellour também tem algumas coisas nesse sentido. Começas a perceber que às vezes é melhor concentrares-te num pormenor para deixares que ele respire e que te permita informar melhor a tua compreensão do resto do filme. Isso é um princípio metodológico que desenvolvi nesse contexto.
É curioso assumires que o filme do Sirk é “pouco desafiador”. Parece-me que esse princípio metodológico que enforma o teu livro dita que é o olhar que desafia o filme. Um filme mortiço consegue tornar-se desafiador através de um olhar cinéfilo activo e crítico.
É preciso dizer que eu não invento qualquer coisa a partir do meu olhar. Poderia ser, não há problema. O Jean Collet, às vezes, estás a lê-lo… e percebes que ele não está a ver bem o que está lá. Há críticos que não “vêem bem”, e é óptimo. Numa das vezes em que esteve na Faculdade de Letras, o Tom Conley falou, a propósito de pós-estruturalistas franceses como o Derrida ou o Deleuze, de misreading. E isso seria uma vantagem. Mas neste caso não é bem isso. Eu começo pelo Interlude. É uma introdução muito atípica, não tem nada que ver com o livro. Mas serve para se perceber qual é o meu programa. E o que quero fazer é pegar neste momento deste filme e mostrar que, se prestarmos atenção, vemos aquele retrato a propósito do qual só é dita meia-dúzia de palavras, e conseguimos através dele perceber que o filme não é inteiramente aquilo que nós estávamos a ver. Este é um filme que tu vês como uma comédia romântica absolutamente tonta. O que o Sirk está a fazer na cena do retrato é dizer-nos “tu estás a ver um filme de Hollywood, mas na realidade este não é um filme formulaico de Hollywood, é um filme gótico europeu sobre uma mulher que está louca e que está a ser substituída por uma loira americana”. Isto é uma coisa muito interessante, que se fazia no cinema clássico, mas que, a certa altura, se deixou de fazer com tanta frequência. Mas ainda há ocorrências disso, que muitas vezes são rejeitadas por alguns dos críticos e cinéfilos mais interessantes: Todd Haynes, Tom Ford, o Io sono l’amore (Eu Sou o Amor, 2009) do Luca Guadagnino… O Almodóvar faz muito isso. Ele às vezes está a dizer-te coisas que só percebes se estiveres mesmo com atenção. Se não, vês outro filme. É muito interessante essa ideia de que pode haver filmes concorrentes numa mesma forma. Acho que até falo um pouco sobre isso no livro.
Na sua rubrica da Antena 2, A Grande Ilusão, a Inês N. Lourenço, na leitura que fez do teu livro, começa por dizer: “Este é um livro que apela ao exercício do olhar cinéfilo”. Aceitas bem esta ideia: de que este é um livro de cinéfilo?
Como uma tese, era muito atípica. Eu sabia que era um risco. É um texto que pode ser acusado de ter uma sustentação teórica precária. De facto, talvez tenha. Não é isso que me interessa aqui. Há teoria, claro, mas ela informa o meu olhar nesse processo de extracção de coisas de dentro do filme. Depois, não me interessa muito levar essa teoria até às últimas consequências. É um trabalho de análise com uma forte componente teórica, não sistemática. Closely watched films – há um livro que se chama assim. Mas a minha relação com a cinefilia é inusitada. Sou um cinéfilo, vejo muitos filmes – agora vejo menos, gostava de ver mais, consigo ver um por dia, mais ou menos. Mas não costumo gostar muito de cineastas cinéfilos, por exemplo. Vejo um filme do Tarantino e, se começo a detectar as referências, perco a vontade de ver. Não há problema nenhum no Tarantino em si, é claro. Mas eu acho que a cinefilia em si não é nada. Um perigo da cinefilia é reduzir-se a vida ao cinema. O que é interessante é pensares numa relação, como placas tectónicas, entre a vida e o cinema.
No Truffaut, os filmes são alegorias do cinema. O Jean Collet está sempre a dizer isso. Escreveu um livro sobre todos os filmes do Truffaut lançados até à data da publicação do livro e, invariavelmente, ele diz “este filme é sobre o cinema”. E é.
Mas o Truffaut era um cinéfilo obsessivo.
Sim, mas geralmente isso não te é imposto. Aliás, é interessante falarmos nisso porque uma coisa de que eu fugi quando analisei o La sirène du Mississipi e o La mariée était en noir foi o Hitchcock. Não me interessa mostrar que estes filmes provam que o Truffaut viu bem o Hitchcock. Isso não é nada. O que interessa é ver o que ele faz a partir do Hitchcock. O Truffaut é um cineasta cinéfilo, mas é muito mais que isso. A cinefilia dele é muito sofisticada.
Sim, não é uma relação copista com o cinema.
Às vezes isso também é uma coisa interessante. O Brian De Palma está sempre a fazê-lo. Só que, justamente, quando nós ficamos nesse nível na análise do seu cinema não vamos conseguir ver como os seus filmes são singulares. Se vires o Obsession (Obsessão, 1976) como um remake do Vertigo, é interessante, mas é pouco.
Perguntei-te sobre a natureza cinéfila do teu trabalho académico porque na academia gostam de me tratar por cinéfilo. Sinto sempre que é uma observação que “traz água no bico”. Porque há muita gente que estuda cinema e não é cinéfila.
Acho que é preciso encontrar um termo de equilíbrio. Não precisas de ser cinéfilo quando queres analisar no Johnny Guitar (1954) como são as mulheres representadas. Só precisas de ver o filme, ou talvez nem isso. Um texto académico não pode ser só cinéfilo – isso é evidente -, e um texto científico sem essa base cinéfila pode funcionar, mas não é o que me interessa a mim. Comecei a trabalhar cinema porque gosto de cinema. Isso entra no meu trabalho. Mas concordo contigo, e seria interessante que o gosto entrasse no trabalho de mais pessoas que estudam cinema. E, em tua defesa, eu preferiria ser acusado de cinefilia do que ter uma especialização em estudos fílmicos construída sobre a instrumentalização dessa arte em favor de outras coisas. Mas se conseguires conjugar as duas coisas – escrever bons artigos sobre cinema e ter boas conversas de café sobre cinema – perfeito! Realmente, a cinefilia pode tornar-se uma questão ética a reequacionar no seio da academia. Talvez a academia lucrasse com isso.
Tu tens uma cinefilia muito expandida. Tu próprio já me disseste uma vez que costumas gostar de filmes que a maioria não gosta. Até me levaste a ver o The Neon Demon (The Neon Demon – O Demónio de Néon, 2016) e o Lucy (2014).
E não gostaste.
O The Neon Demon não, mas o Lucy achei alguma graça, sobretudo o início. Mas tu citas o The Ward (O Hospício, 2010) do Carpenter, que eu considero uma obra-prima, mas a maior parte das pessoas não gosta. O teu livro representa um pouco este prazer em misturar referências, produzir emparelhamentos mais ou menos improváveis. Esta dimensão lúdica da tua cinéfila serve para “cortar” o cinzentismo que normalmente caracteriza o típico trabalho de natureza académica?
Nesse sentido foi muito importante ter sido aluno e discípulo do Fernando Guerreiro. Ele num momento está a escrever sobre o Godard e no outro momento está a escrever sobre as Wachowski – de que eu nem gosto nada, mas se calhar é porque estou a ficar velho [risos]. Apesar de ter as minhas referências e de achar que há coisas mais interessantes do que outras, a minha visão do cinema é muito pouco vertical. Eu tento, dentro do que posso, que seja muito pouco vertical. Não só por uma questão de diplomacia, mas também porque não ganhamos nada em ter uma visão hierarquizada do cinema. É mais interessante pormos as coisas lado a lado e ver de que forma o Truffaut pode coexistir com o Carpenter ou o Mad Love (As Mãos de Orlac, 1935), de que eu falo também no livro, mas que também não tem nada que ver. E pode. Tem que ver com o gesto comparatista, que foi institucionalizado como uma espécie de disciplina, mas que na verdade é uma forma de olhar. Há um prazer muito grande nisto. É o que mais me interessa. Eu não conseguiria escrever só sobre uma coisa. Justamente porque para mim é tudo a mesma coisa. Mesmo entre artes: para mim ver um filme é como ler um livro. Ando entre uma e outra. Não me considero mais cinéfilo do que bibliófilo. Cinema, literatura, pintura… não o sendo exactamente, é tudo a mesma coisa.
Falamos sobretudo de cinema, mas há também a esfera da literatura em Truffaut. Nesse sentido, há aqui um reflexo entre vocês os dois. Poderia residir aqui o principal problema do teu livro: como fazer uma crítica próxima das imagens dentro de uma tese que se baseia fundamentalmente na narrativa ou, citando a Inês N. Lourenço na tal rubrica da Antena 2, nas “circunstâncias narrativas”. Como equilibras estes dois aspectos?
Se olharmos para a bibliografia final do livro, ela está muito mais no lado da imagem, não há quase nada sobre narrativa – embora haja vários livros de ficção, para além das epígrafes, que são quase sempre literárias. A minha relação com a narrativa é muito empírica. Li mais sobre imagem. Realmente, há uma esquizofrenia epistemológica, que se reflecte numa metodologia esquizofrénica.
Comecei por estudar pintura, depois fui estudar literatura e acabei no cinema. Mas vejo tudo mais ou menos como variantes de um mesmo fenómeno. Muda o meio de representação mas almeja-se igualmente ao cosmos. Mas a literatura foi, e é, muito importante para mim. Quando dizem que o cinema do Truffaut é literário, eu acho isso maravilhoso. Literário não quer dizer que não tenha imagem. Aliás, essa ideia de que o cinema não pode ser literário é completamente desinteressante.
Durante muito tempo achei que o cinema tinha de ser cinematográfico, quando estava nomeadamente a estudar a primeira vanguarda francesa, que acabou por dar origem ao cinema puro de Germaine Dulac e Viking Eggeling. A mim não me satisfaz, mas estava obcecado por esta ideia do específico cinematográfico. Quando não gostava de um filme, dizia: “isto é muito literário”. Mas, por exemplo, agora estou numa fase de James Ivory – isto é uma coisa… James Ivory? É interessante, não é tão interessante como um Truffaut. Claro que não, não é um grande realizador. Se calhar não é um realizador de cinema, é outra coisa. As adaptações que fez do E. M. Forster e do Henry James são muito interessantes mesmo, justamente nessa literariedade que têm e que é sempre contrariada pela evidência de aquilo ser um filme. Aliás, o Astruc também fez isso quando adaptou o Flaubert segundo a sua ideia de caméra-stylo. Mas o cinema não vai ser literatura, o cinema vai ser sempre cinema. Julgo que o Truffaut considerava isso muito interessante e não tinha medo nenhum de se apoiar em estruturas da literatura. Já não sei quem dizia: o cinema não é uma arte, é melhor do que uma arte. Realmente, o cinema pode ser tudo.
Mas antes desta questão da “narrativa literária” estão as personagens. Há aqui sobretudo estas três personagens femininas fortes, de três filmes do Truffaut. Elas, na sua própria natureza, entre a carne e o sonho, aparecem como “figuras da representação” ou fantasmas que, como dizes, demonstram como “em Truffaut a cisão entre o domínio do fantasma e o domínio da matéria não é inteiramente estável”. Há uma dimensão profundamente ontológica na tua análise à obra do Truffaut que se desenvolve a partir destas mulheres espectrais. Prende-se isto também com a relação de Truffaut com as mulheres. Mulheres que corporizam o incorpóreo: o desejo pelo sexo, pelo amor, pela morte…. Lembro-me de uma frase célebre de Truffaut: “O cinema é fazer coisas belas a mulheres belas”. Há uma religiosidade algo herética que se constitui neste elenco de mulheres.
No caso do Truffaut, e no contexto do meu livro, realmente as mulheres são as imagens em fuga. Isso não acontece em todos os filmes do Truffaut, mas acontece em muitos: a mulher ser uma espécie de símbolo. Aliás, em Jules et Jim já não sei qual das personagens diz em voz-over: “ela era um símbolo, uma deusa”. O que me interessou explorar aqui é as formas como elas são concebidas como, justamente, um símbolo do cinema. As imagens em fuga têm que ver, obviamente, com cinema. Acho que o Truffaut consegue articular muito bem essa indagação mais ontológica com a criação de personagens que transportam em si o problema teórico que é isso de o cinema ser elusivo. O cinema é um fantasma, de alguma forma. Ele passa, fica qualquer coisa, fica uma afterimage, ficam ideias…
É também um fantasma que se persegue. Quando digo “que se persegue” digo “que é objecto de devoção”, como a personagem do Truffaut em La chambre verte em relação à sua mulher-fantasma.
Sem dúvida. Por isso é que o Jean Collet está sempre a dizer que os filmes do Truffaut são sempre alegorias do cinema. Estas mulheres são alegorias do cinema, o altar do La chambre verte é uma alegoria do cinema. O Arnaud Guigue diz que as pernas das mulheres, que estão sempre a ser filmadas, são uma alegoria do cinema, porque o movimento da perna é análogo ao da bobine e também provoca uma espécie de alucinação. No L’homme qui amait les femmes há mesmo uma alucinação com pernas. Aliás, o protagonista morre quando vê umas pernas, atira-se a elas e cai.
É interessante que, regra geral, não se perceba que, se estivermos com atenção, todas estas personagens têm aquilo que, no livro, chamo de “impossibilidade ôntica”. Elas não podem ser humanas, elas são outra coisa. Temos a Catherine Deneuve. Por um lado, é uma mulher, por outro, não é. No L’histoire d’Adèle H. acontece o mesmo, com contornos diferentes. É uma mulher que não consegue relacionar-se com o mundo. Tem outro estatuto, não tem o estatuto de humana. Ou seja, a situação disruptiva destas personagens naquela realidade ficcional é análoga à situação disruptiva que o cinema possui na nossa realidade. Tanto o cinema como estas personagens levam as pessoas que com ele/elas contactam a perceber que a realidade não é só o que é imanente. O sonho integra realmente a realidade. Se calhar é uma coisa um pouco louca ou difícil de sustentar, mas o Schefer vai um pouco por aí e o Edgar Morin e o Deleuze também: o cinema é um fantasma que é real e que reconfigura a realidade. Isso é muito forte se pensarmos que o Truffaut é um cineasta muito cinéfilo. Já não há vida sem cinema. O cinema é um fantasma presente que ganhou corpo. Depois é interessante relacionar isso com a ontologia mais baziniana do cinema, que é uma arte com uma materialidade muito complexa. E agora ainda mais, com o digital.
Num texto repleto de espelhos, de abismos e atractors, a certa altura o próprio exercício crítico volta-se sobre si mesmo, pelo menos aos meus olhos. Acho poderosa a descrição que fazes de uma cena de L’enfant sauvage (O Menino Selvagem, 1970): “O doutor Jean Itard, apercebendo-se da incapacidade do rapaz em lidar devidamente com o mecanismo de reflexão do espelho, coloca-se atrás dele, agitando de um lado para o outro uma maçã, que Victor tenta agarrar no espelho. Quando compreende que a maçã está atrás de si, ele segura-a finalmente e come-a, concretizando-se assim a primeira etapa no processo de aprendizagem que o filme documenta.” Perguntava-te se o cinéfilo não será aquele que se recusa a agarrar a maçã; aquele que acredita – que crê – mais profundamente na verdade da representação do que na verdade da vida e que faz dessa crença um meio de vida?
Acho que apanhaste muito bem a ideia. Essa é uma preocupação do Truffaut. É uma sequência paradigmática de tudo o que se passa no cinema do Truffaut, em particular nos filmes que eu analiso. Tem tudo que ver com essa tensão muito forte entre o real e a representação. Quer dizer, isto é um lugar-comum na teorização da arte… Mas o que é interessante no Truffaut é que as narrativas encenam isso de diversas formas. Por exemplo, no Jules et Jim, logo no início, eles estão em casa do amigo e vêem projectada uma estátua antiga, e ficam surpreendidos com aquela escultura. Vão vê-la numa ilha do Adriático. Querem vê-la sem mediação – e a ideia de mediação é transversal no cinema do Truffaut. Logo depois, um amigo organiza um almoço no qual eles encontram no sorriso de uma mulher (Jeanne Moreau) o sorriso da estátua. É fascinante: não nos é dito que é um sorriso como o da estátua, é-nos dito que é o sorriso da estátua. A estátua está a ali a encarnar naquela mulher. O que o Truffaut quer dizer é que antes de termos a mulher, tivemos a representação. É, como na narrativa do Ovídio sobre o Pigmalião, uma inversão da ordem natural das coisas, em que primeiro haveria a mulher e depois a representação. Primeiro há a coisa e depois a palavra. No La mariée était en noir há a sequência toda com o pintor. Há um momento em que ele lhe diz: “amo-te, quero que passes a noite comigo”. Ela recusa. Então ele pinta o corpo dela na parede junto à sua cama, pinta-a nua e dorme com ela como se fosse a mulher real. A representação e a realidade em Truffaut não são coisas absolutamente indistintas, mas a representação integra a realidade de uma forma que nunca é simples e que leva a uma reconfiguração efectiva da realidade. A tensão entre elas é, muitas vezes, o tema dos filmes.
O que acontece no L’enfant sauvage é: nessa sequência ele está a civilizar uma criança selvagem. Está a ensinar-lhe que, no mundo real, há coisas e há a imagem das coisas. Há verdade e há representação, simulacro. O movimento da sequência a que aludiste, que vai de tentar agarrar a imagem da maçã a agarrar a maçã, revela que o rapaz apreende essa distinção. Mas o que acontece frequentemente nos filmes do Truffaut é o oposto, é as personagens fazerem exactamente isso que disseste: incorporar o simulacro nas suas vidas com o estatuto de real. Por exemplo, no La sirène du Mississipi o protagonista tem uma fotografia da mulher que vem ter com ele no início do filme. Aparece-lhe outra, mas ele não se importa, ele não pensa nisso. Justamente porque aquela mulher não é mais verdadeira do que a outra. Há uma porosidade, entre real e imagem, real e representação, real e simulacro, que é muito produtiva no Truffaut. Isto tem que ver, como bem sugeres, com esse gesto cinéfilo de aceitar a representação como realidade – o que pode ser um perigo, já advertia o Platão, ou ironizava o Borges no «Tlön, Uqbar, Orbis Tertius»! Mas não podes negar a um objecto representacional o estatuto de real, porque ele é real! Lembro-me de Femme Fatale (Mulher Fatal, 2002), do Brian De Palma. No fim, nós sabemos que é tudo um sonho. “Ah, que chatice, é um sonho, não é real”. Não! A experiência do sonho e os seus efeitos são sempre reais. E a experiência de veres aquilo acontecer no filme é real.