Quando vamos aí a metade de Lady Macbeth (2016) há duas coisas que não podemos ignorar. A primeira é uma certeza, ela conta ao seu amante ao que vem, qual o seu programa: deixar ir-se na folia psicótica do amor até à(s) morte(s). A partir daí o realizador William Oldroyd encena toda essa tese de que há que remover os obstáculos todos, sem suspense, sem ironia trágica a não ser a solidão de que os terríveis vencedores padecem. Mas felizmente há também uma incerteza, e essa é a segunda coisa que não se pode ignorar. Para onde irá saltar ou pousar a seguir o gato de Lady Macbeth? Em toda a sua dimensão imperscrutável, esse gato ruivo, bastante magro, traços vincados e hirta cauda é, em toda a sua animalidade, a única personagem deste jogo, o único cujos insondáveis mistérios mantém a nossa atenção, nos mantém a suspensão própria do suspense.
Mas mais do que esta inversão recordo um plano em que o dito animal está pousado, salvo erro num sofá, e salta para cima, para o canto superior esquerdo do plano desaparecendo para off. Esse “salto de tigre”, com algo de George Méliès, mostra bem a outra coisa curiosa do filme (que, era suposto acreditarmos, emulava o universo de Alfred Hitchcock). Essa coisa é que, saltar para fora de campo, sair da geometria do enquadramento, da “jaula” cujas barras à esquerda, à direita, em cima e em baixo aprisionam as coisas na certeza da sua visibilidade, é traduzir cinematograficamente a angústia da condição feminina da mulher que havia de cumprir os seus deveres conjugais encerrada numa casa com o seu livro de orações, ou que mais tarde, deveria esperar o seu marido enquanto ele ia ali matar uns quantos vietnamitas. Assim, a grande história que deveria estar a ser contada em Lady Macbeth é a possibilidade de sair para o fora-de-campo, que neste caso, é o campo, o ar fresco dele.
Tudo termina quase como começou, com a certeza solitária de uma câmara que filma geométrica e frontalmente a sua personagem. Solidão no plano e solidão psicótica na vida.
Em alguns momentos, como naquele em que após a ausência do marido e do sogro, MacBeth é deixada só e recebe a visita de um vizinho da região, Oldroyd filma esse gesto: a mulher que sentada se levanta e a câmara não acompanha o movimento, fugindo/saindo ela súbita e bruscamente de campo, ficando cortada, apenas as linhas do torso, sem pescoço. Esse “suicídio” por decepamento voluntário da cabeça e da composição, que dura segundos é certo, acaba por nos mostrar uma rebeldia, uma aragem que tenta sair do “palco” daquela casa vitoriana, enorme e deserta, com suas portas que rangem e tacões que gemem no soalho (estes estarão longe de ser a única coisa que geme por ali), únicos elementos a excitar a solidão e o sono do senhora, da rainha que ali reina.
O problema de Lady Macbeth é que quando começa finalmente a ensaiar essa saída – da exposição inicial mas também da casa, do plano, do género em que é catalogado – acaba por decidir voltar a entrar – na casa, no plano e sobretudo numa tese da mulher enlouquecida que tudo e todos mata por amor. Essa tese devora tudo o resto e acaba por substituir hipóteses de personagem por peões nesse esquema de possibilidade (o que é que aconteceria se uma mulher fizesse…?; em vez de, “o que pensa e como age Lady MacBeth?”), acabando por encerrar-se noutra “jaula”, o filme que procura filmar a tragédia do avesso e que vai imobilizando-se (reduzindo o espaço da sua cela) cedendo ao filme vagamente erótico, vagamente perverso ou vagamente de terror.
Tudo termina quase como começou, com a certeza solitária de uma câmara que filma geométrica e frontalmente a sua personagem. Solidão no plano e solidão psicótica na vida. Esta circularidade, esta rigidez narrativa, são o avesso das chamas que consomem Manderley, no final de Rebecca (1940), de uma casa que também foi habitada por uma loucura confinada pela condição feminina e pelo fantasma da sua repressão. Ao contrário do filme de William Oldroyd, em Hitchcock tudo se move, tudo queima e se decompõe: ainda hoje todo o mistério aguarda resolução, ainda hoje secretamente desejamos ter conhecido (trocado umas palavras que seja) com a Rebecca original. Em Lady Macbeth tudo é estacionário, a chama é substituída pela térmita do tempo, pelo tempo que levará a que a casa e este seu “animado e belo móvel” com ela se decomponha; ou então, que o acaso traga mais um obstáculo que, como lenha para a fogueira, será certamente consumido. Uma e outra vez.