Nem sempre as intenções mais nobres dão bons filmes. Nem sempre as causas justas servem de bandeira ao grande cinema. O que se passa, tantas e tantas vezes, é que o cinema serve mal de palanque e o espectador está, hoje, pouco disponível para ser chantageado emocionalmente. Atacar o racismo costuma significar atirar à cara do espectador (acima de tudo, o branco) o peso da culpa de séculos de intolerância e perseguição às minorias. Mesmo que o espectador seja um homem ou uma mulher do século XXI que acredita profundamente que todos nós, humanos, somos feitos mais ou menos do mesmo material, ele terá que aguentar o massacre: no ecrã, o herói ou heroína será enxovalhado, perseguido e maltratado para lá de todos os limites para que, fora do ecrã, no lado de cá da vida, desperte no espectador uma empatia inequívoca e violenta pela sua existência, que é assim convertida automaticamente em causa política. Sabemos como Steve McQueen consegue ser o epítome desta estratégia chantagista q.b., que consiste em “cristificar” as suas personagens, levá-las ao Céu por segundos para as jogar a seguir num Inferno sem fim – e assim se conquista, pela lágrima e pelo grito, a nossa comoção. Spike Lee, por seu turno, combate fogo com fogo. É agressivo – e por vezes implacável – a atacar o assunto do racismo – fá-lo implodir por dentro, na sua própria retórica. Face a tudo isto, como podemos situar Loving (Loving – Uma História de Amor, 2016), um direct-to-DVD recente no nosso mercado?
Loving é um filme mais sereno e comedido do que é habitual dentro deste género de filmes-discurso-bandeira sobre a intolerância e o racismo. Contudo, porque há sempre um “contudo”, também não deixa de manobrar as nossas expectativas ou instrumentalizar o nosso amor às personagens – já lá vamos. A história do casal multirracial Loving, perseguido na Virginia por perturbar as ordens de Deus – que nos fez diferentes na aparência para vivermos separados -, é contada com a sobriedade característica do toque de Jeff Nichols [veja-se ou reveja-se, acima de tudo, Shotgun Stories (Histórias de Caçadeiras, 2007) e Mud (Fuga, 2012)]. Esta sobriedade ganha corpo, mais do que nas imagens carregadas do calor (das cores) do Sul, nas interpretações fulgurantes de Joel Edgerton e Ruth Negga (valeu-lhe uma nomeação para o Óscar) no papel do casal Richard e Mildred Loving. Como conta Nick Kroll num documentário sobre o filme – presente na edição portuguesa em DVD -, a sua personagem, o advogado Bernie Cohen, que irá levar o caso dos Loving ao Supremo Tribunal e com isso acabar com a lei que proibia o casamento multirracial, fala mais nos primeiros minutos em que aparece do que Richard Loving em todo o filme. Com efeito, Edgerton dá uma magistral lição de contenção dramática: no seu rosto desenha-se a verdadeira paisagem do filme. O mesmo, de facto, acontece com Negga. Aliás, o filme podia ser contado através do seu fácies, que começa reservado e receoso e progressivamente se vai transformando. O momento eufórico do filme é revelado num sorriso ligeiro que ilumina o seu rosto permanecido tantos anos em cativeiro emocional. Nichols mostra aqui que era o cineasta certo para filmar esta história.
O momento mais belo do filme é, para mim, aquele em que entra em cena o actor-fetiche de Jeff Nichols, aquele actor que acaba por ser a principal marca da sua assinatura, do seu toque. Dir-se-ia à partida que, comparativamente, Michael Shannon tem aqui um papel menor enquanto Grey Villet, o fotógrafo da Life que foi a casa dos Loving para documentar o seu amor. É verdade que a presença de Shannon ocupa apenas uma sequência do filme e que isso é pouco quando comparado com os papéis que lhe couberam nos filmes anteriores de Nichols. Contudo, arrisco dizer que nunca Shannon esteve tão brilhante. Ele irrompe filme adentro com a leveza cómica, sentido de liberdade e energia aventureira próprias de alguém que viveu a vida até ao máximo – foi, de facto, assim com o fotógrafo e “homem do mundo” Grey Villet desde a sua primeira fotografia vendida à Life, Pigeon man. A suicide’s view of 5th avenue. A história desta foto é contada à mesa dos Loving e aí vemos – penso que pela primeira vez – Richard Loving a rir. Shannon traz esta aragem de liberdade e alegria ao filme. É uma aparição curta, mas inesquecível.
O amor dos Loving é silencioso, profundo e sincero. O filme está à altura dele.
Loving evidencia o amor às personagens que tão bem caracteriza o cinema de Jeff Nichols. Mas este amor é partilhado bem por dentro. Este retrato sobre um tempo de injustiça e intolerância é também o mais romântico filme de Nichols. Como ele próprio assume, o fulcro aqui é a relação entre Richard e Mildred. Por isso, a câmara concentra-se nela – foge aos clichés do filme-discurso-bandeira sobre o racismo na América sulista, nomeadamente quando evita sobredramatizar a história do casal ou encerrá-la nas quatro paredes de um courtroom drama. Nichols privilegia o silêncio compreensivo e humano que habita os momentos de ternura, de dúvida, de dor ou de ansiedade. O amor dos Loving é silencioso, profundo e sincero. O filme está à altura dele. E só isso faz dele – também fruto do tal trabalho impecável dos actores – dos maiores feitos do jovem realizador americano.
O que mancha este retrato prende-se com o que escrevi no início desta crítica: por muito que procure libertar-se dela, a tentação para a chantagem emocional existe. A sequência do acidente de um dos filhos do casal é disso exemplo. Uma montagem alternada, entre Richard Loving enquanto trabalha nas obras e o filho a brincar na rua, vai alimentar em nós, espectadores, a expectativa de uma tragédia que ameaça rebentar em qualquer um desses espaços – ia escrever “em qualquer um desses tempos”. A estética de Nichols é sussurrante, mas ela não deixa de se apresentar minada pela tentação de, nomeadamente pela montagem, criar um quadro geral de medo e ansiedade (os tempos da tragédia mais convulsa) como quem diz: “assim as coisas vão ser mais picantes” ou “assim o público perceberá melhor ‘a mensagem'”. O amor é a mensagem e seria ainda mais profundamente nele – posso pedir mais? – que Loving deveria mergulhar. Não digo que Nichols devesse omitir a história de perseguição e angústia deste corajoso casal, mas ela não precisa de “estímulos fílmicos”, porque existe em doses suficientes nos rostos de Edgerton e Negga ou até no próprio cenário epocal da Virginia dos anos 50 – o espectador não precisa de mais nada para perceber os riscos que este amor envolve, isto é, o seu pendor trágico. O comedimento natural de Nichols dá-nos sede de um ainda mais elevado comedimento. É o que acontece com o cinema sensível e honesto: dá-nos a esperança de que seria sempre possível tocar ainda mais de perto na vida e nos sentimentos. Apesar de tudo, sim: tinha sido possível.