(…) Down the foggy ruins of time, far past the frozen leaves,
The haunted, frightened trees, out to the windy beach,
Far from the twisted reach of crazy sorrow.
Bob Dylan, Mr. Tambourine Man, 1964
Le mot sôma, qu’on traduit par
corps, désigne originellement le cadavre, c’est-à-dire ce qui reste de
l’individu quand, déserté de tout ce qui en lui incarnait la vie et la dynamique
corporelle, il est réduit à une pure figure inerte, une effigie, un
objet de spectade et de déploration, pour autrui.
Jean-Pierre Vernant, L’individu, la mort, l’amour,
(…) they cannot be forgotten because they have always already fallen outside memory.
Maurice Blanchot, The Writing of the Disaster
Se a primeira e geral vista de Non se sevizia un paperino (O Estranho Segredo da Floresta dos Sonhos, 1972) é a estrada ultra-moderna de autocar, é no zoom e no plano médio do contracampo com que enquadra la Bolkan desenterrando o filho que o filme se gesta (uma Gesta): um romanceiro das Origens. Onde se “origina” o aerodinamismo da estrada, o straight line de suas Vistas à la Wright, como da vulgaridade nonchalante da fauna turística de que temos a entrevisão num outro zoom anedótico? No sacrifício do filho de Maciara; em Fulci, aliás, não é sempre assim? Esta mansão vetusta, estes campos que Deus esqueceu, estas burguesas enfatuadas escondem sempre um esqueleto no armário, como filhos naturais sob a terra; como no conto da casa de Verga, em que o pedreiro lança uma pedra para fundá-la solidamente, há sempre um morto no arcabouço de tudo; é a infra-estrutura da terra negra e do húmus fecundo, fecundado precisamente por um defunto, o Fundo destas figuras torturadas, e o ritornello da maldição que este morto lançou à posteridade de seus vermes vai acabar por comer a todos. Como em Argento, a criança trancada num palazzo quando pequena alimenta um incurável ressentimento para com os que lhe sobrevivem, mas este infante agora incrustou-se telúrico no jardim da mansão paterna, como no sótão da casa – em todo caso, em um grund, que a tudo sustenta -, e fatalmente este ar ensolarado e estas carnes sadias de exploitation americano serão infectadas pelo miasma do gótico europeu: forças e fantasmas demoníacos jazem sob o nosso campônio honnête homme, e hão de impor-lhe, ao cabo da experiência/experimento das profundezas de que os filmes são um bildungsroman, o fatum somático da decomposição; assim, é sempre um cadáver ühr o fio-condutor do refoulé em seus melhores filmes: o pai ‘sacrificado’ por Beatrice Cenci (Uma História de Amor e de Sangue, 1969) e amante; a amante psicadélica que a amnésica Bolkan matou em Lucertola (Serpente com Pele de Mulher, 1971); o padre suicidado em City of the Living Dead (Os Mistérios da Cidade Maldita, 1980); o homem crucificado na parede do hotel em L’aldilá (As Sete Portas do Inferno, 1981) ; a família esquartejada dos Freudstein em Quella villa accanto al cimitero (A Casa do Cemitério, 1981); a criança doente esquecida no hospital em Lo squartatore di New York (O Estripador de Nova Iorque, 1982); o filho abortado de Maciara, e finalmente um cosmo de zumbis em Zombi 2 (Zombi 2 – A Invasão dos Mortos Vivos, 1979). Se genealogia pode ser detectada na obra de Fulci, esta consiste nesta posteridade secreta do verme para filhos assombrados. Em Non se sevizia un paperino, que com Quella villa accanto al cimitero, L’aldilá e Zombi 2 considero suas obras-primas, este processo de corrosão das superfícies ‘em férias, cintilantemente eróticas e solares” pela pulsão de morte mítica, pela Noite imemorial e pelo recalque religioso aparece como o paradigma de uma leitura reativa do Fatum, que o vê como a revanche de um universo anímico e mimético sepulto sob a Realpolitik da modernidade triunfante, e que finalmente reemerge com sua húbris tectônica para tudo retomar ao pó da Origem, inflexão sardónica d’esprit à letra do Eclesiastes.
Há um evento-mater, embora microscópico, do cinema moderno, que talvez passe desapercebido para aqueles que, antes fascinados com a retórica epifânica do “plano sequência e locação”, desconheçam que a modernidade no cinema foi também um projeto topográfico, onde o natura naturans do devir háptico substituiu-se ao naturata da vista geral idealizada “Bild de”. É aquele travelling, recitado pleonasticamente pela narração em off de Sternberg, em seu Anatahan (A Saga de Anatahan, 1953) ; um travelling exógeno-endógeno com que penetramos na floresta onde tudo vai se dar, mas atentemos sobretudo à literalidade materialista da penetração; sim, o plano geral hagiográfico de How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941) aqui conheceu sua desmistificação hic et nunc, e enfim votaram-se os deuses à matéria gasosa e apodrecida, fonte inexaurível de encantamento e de horror.O meu fascínio por uma genealogia fantasmática fatalmente me leva a ver em Anatahan o índex de um processo de desmitificação do idealismo pelo háptico que terá no zoom, um tanto preguiçosa, indolentemente vulgarizado nos anos 70, um tardio meio único de figurar este interdito da ‘carne aí.’ Mas em Non se sevizia un paperino, um uso genial do instrumento nos leva paradoxalmente a exaltar uma outra mitologia, não mais superficialmente devedora do “olhar de Apolo e escudo de Minerva” classicistas, que nos fascinavam na mesma medida em que nos elidiam o demoníaco responsável pelo engendramento dos sumos fascinatórios; sim, Fulci nos oferece uma mitologia das Origens, como uma mistagogia do interdito; o zoom neste filme único é um go-between entre o arché da origem e o devir imanente, entre o mito e a História, e tem por função nos introduzir até o cerne da matéria ‘que não ousa dizer seu nome’, nem revelar seu fotograma; e o que, como a cega vidente de Chaplin, agora podemos ver, como finalmente tocar?
Lembrem-se desta profundeza figurada mimeticamente que leva Maciara a cavar e cavar até encontrar o corpo de seu filho sacrificado, elo arquetípico de uma cadeia infinita de sacrifícios que ela, pelo wishiful thinking da satisfação substitutiva (as agulhas nos bonecos) vai prolongar até o seu desaparecimento? É a regressão psicótica, expressa pela cópula palavra e coisa (os bonecos) que inicia tudo aqui; recordem-se agora desta figuração desta Força paroxística que mais adiante (sequência do pogrom contra la Bolkan) impele a câmara que persegue o louco e encurrala Maciara, câmara possuída por uma potência aríete de presença que só pode ser comparável aos Renoir e Dwans dos anos 30, época onde éramos afetados pelo som recém-descoberto como pelos movimentos dos mastodontes impossíveis de locomover como Adão pelo primeiro sopro de Lux. Sim, uma pressão incomensurável, usada para ulcerar toda superfície écran, diegética-narrativa como ‘citadina e solar’, com o élan do interdito, que grunhe e ruge em busca de seu Fiat tenebrae de revanche. É claro para mim que Fulci multiplica, neste exploitation da Origem- onde a Origem vai exigir o sacrifício de figuras da Origem: as crianças, mas também os inocentes Maciara e o idiot du village-, os mediuns de acesso às profundezas; não ‘podem ver’ que o zoom e a profundidade de campo animada por enxames de massa móbil “shot the enemy!”, são apenas as figuras manifestas, evidentes de uma estratégia de cooptação da superfície pelo arrière-fond do mito que mobiliza tantas outras? Este travelling lateral do início, por exemplo, que nos revela que as crianças estão na coxia como espectadores da Cena obscena do ‘louco procurando as velhas prostitutas recém-chegadas’; sabemos ao cabo que este será um índex diegético-narrativo entre outros de que as crianças devem ser sacrificadas, aos olhos do assassino perverso pietista, porque foram introduzidas nos prazeres da carne, e merecem pagar por isso; mas antes de tudo devemos ler este ríspido travelling ‘denunciador’ como des-velamento, introdução de uma profundeza de para-si que busca saber, averiguar, conferir que a Felix culpa ainda não chegou, e que portanto a inocência permanece meramente desvirginada; profundeza ainda e sempre, agora como instrumento de diagnóstico da inocência perdida. Mas não é só; se em A casa do cemitério, um índice eminente de que o Segredo do passado e da casa gótica eram a chave de tudo era que as personagens com frequência se voltavam para trás, aqui tudo é ainda mais gravemente ‘regressivo’, pois temporal e diegeticamente também somos solicitados pelo après-coup, para anexar à superfície do plano de cinema as margens indispensáveis à sua hermenêutica vidente. Fulci nos dá inserts mnemónicos dos garotos assassinados, mas também de detalhes que passaram desapercebidos – narração de Barbara Bouchet ao jornalista Milian-, como este contracampo trompe l’oeil (duplo, pois se repete adiante) de Barbara perseguindo de carro os meninos, para a princípio nos iludir de que fosse ela a assassina; em verdade, trata-se de um trompe l’oeil mais profundo, vertiginosamente genético; trata-se de poder ver que o present tense do plano narrativo jamais vai esgotar a presença holística do que deve ser lido, e precisamos sempre reivindicar rewinds paranóicos como zooms omnívoros para tudo saber; o que parece um barroquismo bulímico da superfície indigesta aparece para mim como um médium de revelação da contaminação da superfície por profundezas espaciais e temporais, como horizontais. Travelling terrorista que des-vela a audiência secreta das crianças, trabalho óptico do zoom que equaciona as relações de poder e saber num mesmo plano, agora libidinalmente desnivelado – como verticais: o zoom, bisturi háptico que violenta a epiderme da diegese em nome de uma derme arquetípico-somática. Fulci não recua diante de nenhum tropo, raccord lancinante ou mudança abrupta de eixo para nos radiografar que a superfície foi revolvida até as raízes de seu ser (e o que se deve ler é isto justamente: as raízes do plano, como da História) pelo interdito, o Totalmente Outro, o Nomos da terra, da Mãe, do cosmos amaldiçoado, pois na releitura que Fulci empreende da relação ‘figura e fundo’ é decididamente o último que deve estar à avant-garde de tudo; a complicatio barroca aqui não é virtuosismo, mas topografia de interdito. A leitura deve ser vária, como acidentado o découpage, para nos sismografar com acuidade a extensão protéica do que se oculta aqui: sim, todos os cadáveres sacrificados sob o plan tombeau (Serge Daney) 1, como as épicas potenciais que o novelesco televisivo ‘straight and smooth’ da Cidade alienou. Mas afinal, para que a estas alturas serve um plano de cinema senão para conter a potência demiúrgica, que alguns nomeiam vidente, dos mortos? O fora de campo, agora activamente mobilizado pelos contemporâneos, consiste no uso eminente desta destinação mortuária, que não se contenta com a superfície ‘revelada’ e, como o Édipo instruído por Tirésias no Dalla nube alla resistenza (Da Nuvem à Resistência, 1979)do Straub, escava a terra, o passado, as laterais em busca de conhecimento. É afinal de costas para nós que eles reciprocamente se iluminam na carroça, porque um plano frontal clássico já não basta para ensinar ‘a ver’.
Há, porém, mais índices de profundezas a ver nesta obra-prima sequiosa de esqueletos no armário (do plano). Revejam o interrogatório do campónio ao início, as crianças na igreja com os frades mumificados à esquerda, e finalmente o interrogatório de Barbara Bouchet ao final; não os recepciona a mesma ultra-evidência deste obsceno primeiro plano, que condena o contexto geral ao sfumato de ser seviciado pela hagiografia totalitária da persona? Se quisermos estabelecer uma genealogia consequente, devemos começar pelo plano de Bouchet sendo interrogada, porque ele nos pode reconduzir à mesma retórica de estilo usada no processo e tortura de outro Fulci assombrado de interdito, pois centrado no assassínio do Pai, e portanto também em outra expiação da Origem: o Beatrice Cenci de 1969. Se precisarmos mimetizar, como imagino, a quête de profundeza trabalhada por Fulci aqui, recuaremos ainda em uma genealogia mítico escatológica, e pensaremos naquele espécime moderno onde este Filho desgarrado, Nicholas Ray, tratou hagiograficamente do Filho ungido: King of Kings (Rei dos Reis, 1961). Não nos apresenta do Cristo Ray esta mesma protuberância háptica escarpada pela Eternidade da Vista geral? Sim, de Pais e de Filhos, como de superfícies trabalhadas por profundezas: podemos pensar toda uma genealogia do interdito a partir desta hagiografia de revenant, que em Fulci porém não se contenta com o sacer oficial, e se debruça sobre outras modalidades de sacralidade pois, ao contrário do Filho casto que opôs à última tentação o dístico do Out 1, noli me tangere (1971), esses filhos em Fulci já começam a desejar, e portanto não terão direito a um terceiro dia.
Falando de sacralidade, por exemplo, falemos de Maciara e do padre. O que Fulci nos opõe, em matéria de sagrado, de arquetípico, de Lei nestas duas figuras centrais? A Lei do padre é, como se sabe, a do Logos revelado, em uma nova rentrée perversa é claro; o cristianismo foi esta operação de guerra que buscou, num universo pagão, contrapor-se à imanência e agora tudo espiritualizar, inclusive o negativo supremo da tortura e da morte; sim, tornar significativo, e portanto devedor da luminosa Ideia; o destino de Cristo não se cumpre exatamente na erecção da cruz, que sacrifica o indivíduo, mas na Cena lateral hagiográfica-iluminura do manto da verónica, onde Ele se eterniza num para-si místico que São Paulo tão bem traduziria: “Conhecerás como és conhecido”. Ora, o que temos em Non se sevizia un paperino como no Germania anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948) que Narboni leu, a radicalização lógica da Lei acaba por fatalmente desvelar sua essência monstruosa; o padre entende literalmente os versículos da Escritura, pois a sua doença é de natureza hermenêutica (sim, uma embolia do espírito em nome da letra): faltam-lhe as mediações ulteriores da kharis para tudo captar, e enfim transcender. Ele fica com a letra da Ideia; como assim? Ele entende que todo aquele indivíduo que se desviar dos metros da Ideia deve ser eliminado; o seu idealismo é perverso porque permanece na sexta-feira exploitation da Cruz, e desconhece a modulação espiritual que a caridade e o Amor introduziriam no credo católico, tornando plasticamente compreensiva, flexível a relação entre a Ideia e os entes, e portanto não “pôde ver’ que o destino da Ideia deve ser servir aos homens, e não seviciá-los sob o gládio da Lei, como no judaísmo.
E Maciara? Para uma Florinda Bolkan no clímax de suas potências guturais e de gestus bárbaro, Fulci reserva os ‘acidentes’ retóricos mais reveladores do Divino que se curte aqui; revejam este travelling circular vertiginoso de vacui, em que ela é contraposta aos cães enraivecidos; esta omnipresença dos elementos viscosos em torno dela: barro húmido, lama, negrume da caverna, contextos originários de uma primeira figuração, como o chiaroscuro do útero, da hora do amor e da cova; ou esta extraordinária sequência em que, possuída pela epilepsia, reencena diante de nós a primeira noite em que Pítia encarnou o primeiro deus que surgiu sobre a face da terra e que enfim nela teve a chance de ‘animar-se’, destacado finalmente do rupestre da caverna. Maciara é a Prosérpina da terra sáfara, como Diana caçadora com seus galgos, e ocasionalmente aquela Despoina que se venerava na Arcadia, servida por Artémis, Anytos e Titan; sim, sob a sua intercessão, os elementos agora voltaram a falar e agir sobre o mundo: as agulhas sobre os bonecos talvez sejam mesmo dardos lançados contra os corpos infantes; com o auxílio de uma summa sintomatológica da psicose, Fulci presentifica um primeiro uso do Divino, panteísta e anímico; trata-se menos de uma regressão psicossomática que de uma reemergência do somático como lugar da divindade. São estes, então, os divinos contrapostos: o Deus que, pelo menos segundo a leitura perversa do padre, viu a presença como um ersatz imperfeito da Ideia, e a fórceps precisou submetê-la à representação da efígie (lembremos do sôma grego evocado na epígrafe deste texto: um cadáver); e o divino ‘aí’ de Marciona, que só se separou numa língua de praga e maldição por injunção da dor e do abandono; não por acaso, ao padre é reservada a diegese mais narrativamente pachorrenta, ‘falada reflectida”, e a Maciara o filme de acção propriamente; ao Divino do Logos fundamentalista, o da presença energética exploitation.
Em estudos de Adorno sobre a sociologia da cultura (Veblen, Spengler após o declínio) e arte ( jazz, Kafka) 2, é comum encontrarmos o uso de um tool um tanto perverso, em sua natureza de desconstrução do iluminismo; eu o chamaria de escândalo mimético. A relevância de semelhante mediação, um tanto apócrifo-sofístico, é tal que o homem chega a aventá-la como causa secreta ma non troppo do anti-semitismo, e portanto do ulterior nazi-fascismo, obra de recalcados que, não podendo suportar os sinais de Natureza, liquidaram os seus privilegiados arautos; sim, o judeu, a mulher, a infância. Tudo o que ousar macular a idealidade platinada do Espírito deve ser retirado de Cena (mas não foi esta também, mutatis mutandis, a operação clássica?). E não é o que acontece aqui? Maciara é o arauto da inocência irrecuperável, que aos habitantes do burgo deve parecer infectamente execrável, pois mimético; ela encarna o pático em uma exuberante mais-valia de afecções: a sua hebefrenia épica, a sua epilepsia espetacular, o seu obtuso pagão incrustado na verónica suturada pelo recalque são índices de finitude que devem ser extirpados a qualquer custo. Ela representa, com as crianças e o louco a quem pegaram primeiro, o sacrifício absolutamente necessário de uma inocência que não pode mais ter lugar num mundo cooptado pela ratio funcional (‘straight diligente’ da enquête policial) ou escatológica do padre. A cena de seu assassinato traz para o sol pleno e a ‘locação’ as expiações secretas, esqueletos no armário que são o leitmotif corrente de Fulci; o lirismo carunchoso de recalque, o horror caricioso de sevícia comparecem neste scope absolutamente plástico ao Fantasma: sim, vemos o que ela ainda pode ver, no ponto de vista turvo de sangue; sim, ouvimos a sua última canção, onde talvez não por acaso se invoque, agora em chave melódica, a profundeza elegíaca do amor irrecuperável: quei giorni insieme a te. Ela agora, mascarada de Clitmnestra moribunda, vai morrer à beira da estrada, aquele mesmo décor que um dia viu passar os abastados filhos ( zoom na criança fascinada com o brinquedo) que, segundo a lógica sacrificial estudada por Klages 3, tomaram o direito de seu filho ser; sim, eles por nós.
Freud fala-nos de uma estratificação topográfica do inconsciente, como também que a reserva excessiva de conteúdo no id acaba por afetar irreversivelmente o ego; como é que estava escrito mesmo? “Quanto mais um conteúdo permanecer estocado no id, mais decididamente presente estará na consciência”. Quanto mais esquecemos, mais o Fantasma nos solicita; quanto mais solicitados por ele, menos presentes no mundo; quanto mais recuados do mundo, mais ‘capturados’ pela mitologia que reconfigura o mundo segundo o Bild do fantasma; e o que faz o pato Donald aqui senão atualizar, sob um mito quadrinesco da nossa época, a omnipresença do mito ühr sob cada superfície? Como no The Night of the Hunter (A Noite do Caçador, 1955), em que Laughton reivindica os esgares histéricos ‘escaldados de água fria’ do cartoon para representar, por efração figurativa e fantasmática genealógica, este ogre primordial, que também é um ocasional Pai, feito por Mitchum, Fulci se serve do mito que geralmente se serve de nós – de nossa inteligência, de nosso gosto- e agora o reapresenta como container mítico, mas de psicose, de entropia cósmica (a comunidade); ainda uma profundeza, de volta sob a figuração tatibitati do pato megalómano…
Mas os prodígios de uma arte fantasmática (inervada pelo fora de campo, devedora de fora de quadro) não nos devem fazer olvidar a sua dimensão materialista literal, onde tudo começou: sim, este trem dos Lumière que, neo-quimera pagã, avança contra os inocentes fiéis… O final de Non se sevizia un paperino solicita novamente esta letra do shot fatal, pois o nosso padre acaba tragado pelas profundezas que tentara exorcizar ao longo de todo o filme; e retomando novamente a cópula psicótica ‘palavra e coisa’ que inspirara a uma Maciara possessa as suas mais excelsas Cenas, podemos imaginar que este mergulho no abismo que Fulci lhe reserva é a mais profunda revanche jamais imaginada pelo Fantasma para comer a superfície ‘écran’.
Notas
1) La rampe, Serge Daney, Petite bibliothèque des Cahiers du cinéma, 1983, Un tombeau pour l’oeil; pédagogie straubienne, página 78 a 85
2) Prismen, Theodor Adorno, Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main, 1969, O ataque de Vebern à cultura, página 69; Moda intemporal: sobre o jazz, página 117.
3) Ludwig Klages, Der geist als Widersacher der Seele, Leipzig, 1932, volume 3, segunda parte’.