Pere Portabella esteve em Lisboa para apresentar e falar sobre alguns dos seus filmes na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Mas esta não foi a vinda a Portugal de um “mero” realizador de cinema. Este grand seigneur de sangue catalão é um homem da história e um homem que é, em si mesmo, história viva. Foi resistente anti-franquista e deputado do Parlamento da Catalunha. Se se destacou enquanto artista na qualidade de produtor de grandes realizadores – o maior foi Luis Buñuel, com quem ganhou a única Palma de Ouro inteiramente espanhola – e na condição de cineasta underground – autor do fenomenal Vampir, Cuadecuc (1970) -, no papel de político fez da redacção da Constituição Espanhola e da abolição da pena de morte as suas maiores e mais intemporais obras-primas.
Do alto de uns fresquíssimos 88 anos, Pere Portabella deu-nos lições que iremos guardar para sempre, a saber: primeiro, é fundamental ser-se radical; segundo, as escolas de cinema não ensinam nada e, terceiro, lição dada mediante o afecto demonstrado pela sua mulher, a magnífica Annie, que o acompanha desde os seus tempos de jovem cineasta, o amor pode ser uma inesgotável fonte para a transgressão. Amor à transgressão, amor à liberdade – assim se resume o cinema e a postura na vida de Pere Portabella.
Carlos Alberto Carrilho (CAC) – Esteve ligado ao círculo de intelectuais de Barcelona mas iniciou as suas actividades no cinema como produtor de cineastas ligados ao Cinema Novo de Madrid, como Carlos Saura [Los golfos (1960)] e Marco Ferreri [El cochecito (A Motoreta, 1960)]. Em que condições se deu esse encontro?
Apesar de me interessar a linguagem cinematográfica, ainda não me tinha decido dedicar profissionalmente a ela. Por volta de 1960, na Europa, a Nouvelle Vague e o neo-realismo eram movimentos influentes. Mais tarde chegou o cinema underground. A mim interessavam-me mais as raízes do cinema: Murnau, Dreyer, Lang. Entretanto, o pintor Antonio Saura comentou comigo que o irmão, Carlos Saura, tinha um guião que ninguém queria produzir, pelo que lhe pedi que mo enviasse. Para mim, era claro que não era a diferença no olhar que queria valorizar enquanto produtor, mas antes sublinhar a evidência e os códigos da censura. Entre tudo o que considerava decente, incluíam-se Truffaut e toda aquela gente progressista, incapaz de mudar os códigos mas possuidora de um olhar distinto, inclusive segundo o ponto de vista moral, contra a hipocrisia da sociedade instalada, e os meios que reivindicavam o “branco e preto” como um valor fílmico importante – ainda que fosse a cores que filmavam [risos]. O que também me parecia um confronto contra o consumo, dominante na produção europeia e de Hollywood enquanto meio para aumentar audiências. Carlos Saura, parte da Escuela Oficial de Cinematografía recentemente criada, propôs-me que fosse professor lá. Não só considerei que não teria algo a ganhar, como sou contra a ideia de escola de cinema. Não aconselho ninguém a frequentar uma escola de cinema, onde continuam a ser leccionados modelos clássicos e conservadores baseados no modelo convencional de campo/contra-campo. Também Picasso e outros da mesma geração afastaram-se da academia, rompendo com o romantismo. A minha posição contra o ensino da arte, surpreendeu Carlos Saura. Ao contrário de Luis García Berlanga que é um grande narrador porque sublinha o que sente, Carlos Saura, ainda hoje, continua fiel, com mais ou menos gosto, com uns filmes mais interessantes que outros, ao que são as academias instituídas.
CAC – O que lhe interessava nesse novo olhar sobre a realidade espanhola?
A primeira condição para produzir Los golfos era ser um olhar sobre os subúrbios e a delinquência menor, mas deparei-me com a questão da forma. Como na política, os códigos e a forma de dizer têm de ser consequentes com a nova narrativa proposta. A condição política actual é que as narrativas não existem. Existe um muro de contenção formado pela fixação de que não há alternativa ao capitalismo selvagem, em que a democracia é um estorvo. Isto não é uma narrativa, é uma sentença. E porque o fazem? Porque é a plutocracia do dinheiro que domina, não com a autoridade mas o poder de controlar as oscilações e de descapitalizar um país inteiro num segundo. Em Los golfos, havia o olhar sobre a periferia e a reivindicação da delinquência menor como estado. Uma coisa que me agradava era que aqueles delinquentes não tinham de se redimir, ou seja, não haveria um final com uma moral certa, em que iriam à missa e comungariam. Considero que quando se utiliza um meio, neste caso fílmico, a produção tem de ser ideologicamente coerente com o que se faz. Pelo que, apesar do subsídio do Estado, não concordei com o uso de gruas e formámos uma equipa com alunos da Escuela de Cine, sem a possibilidade de fazerem parte de sindicatos, controlados pela ditadura. Outra coisa importante a que me propus, não sendo tão clara para Carlos Saura, que para além de professor era cinéfilo e possuía um determinado status, era colocar em evidência a existência da ditadura a partir da não aceitação da censura. Propor um guião para que me autorizassem a produzi-lo, mesmo corrigindo cenas, com a intenção de que, quando estreasse, não me preocupasse com a censura, de modo a enfrentar directamente a ditadura. Quando começámos a filmar, o Comité de Selecção de Cannes, tomando conhecimento do filme e que eu estava inserido no grupo das vanguardas artísticas, convidaram-nos a apresentá-lo no Festival. Devido ao enorme prestigio do festival, a selecção do filme garantiu-lhe o subsidio máximo dado pelo Estado, equivalente a um filme comercial, o que provocou mal-estar no Ministério da Cultura, pela desvalorização com que inicialmente viram o projecto.
Em Cannes, aconteceu algo inesperado: o encontro com Luis Buñuel. Considero que é nos imprevistos da vida que estão as possibilidades de fractura e de quebra. Buñuel era um emigrante ilustre de uma ditadura feroz na perseguição de directores de escolas, artesãos e outros trabalhadores, intelectuais ou investigadores, tendo alguns recorrido ao exílio. Considerava Un chien andalou (Um Cão Andaluz, 1929), que tinha visto mais de quinze vezes, e L’âge d’or (A Idade do Ouro, 1930) como o mais importante do cinema espanhol. O resto não me interessava. Em casa de Antoni Tàpies, o primeiro que ganhou dinheiro com a cultura e que trazia filmes de Paris quando viajava a convite da sua galeria, víamos Murnau, Dreyer e Keaton, que eram os meus referentes. Ainda hoje, considero a personagem de Buster Keaton como tendo uma actualidade enorme, enquanto cidadão em frente ao mundo com cara de perplexidade, sobrevivendo e não sucumbindo. Ao contrário de Carlos Saura, que reclamava a herança da Nouvelle Vague. Em Cannes, Buñuel assistiu à projecção de Los golfos. No final, subiu ao palco para nos abraçar, pelo que se seguiu uma enorme ovação como reconhecimento dos jovens espanhóis que lutavam contra a ditadura. Coerentemente, o governo da ditadura retirou o subsídio ao filme, fiquei sem dinheiro, mas estava contente, e Buñuel aceitara o nosso convite para regressar a Espanha. No que toca a El conhecito, quando estava a realizar Los golfos, um escritor espanhol disse-me que havia um realizador italiano chamado Marco Ferreri que teria um guião que gostava de me mostrar. Com subsidio estatal garantido, o guião em tons neo-realistas andava em torno de uma família da classe média. A censura devolveu o guião, não aceitando o final em que o avô envenena a família, a menos que houvesse um arrependimento.
CAC – Em 1961, produz Viridiana (1961) de Luis Buñuel, obra que lida abertamente com pulsões pedófilas, fetichismo, incesto, relações sexuais, crítica religiosa e, para rematar, sugere um famoso final com um ménage à trois. Quais foram os efeitos dessa transgressão na relação não só com a autoridade do Estado, mas também com o meio cinematográfico?
Depois do escândalo com o filme de Ferreri no festival de Veneza, em 1961, quando o Comité de Cannes soube que estava a fazer um filme com Buñuel comunicou-nos que, naturalmente, estávamos convidados. Os franceses apoderaram-se de Picasso e quase consideravam Buñuel como realizador francês. Sabia que Buñuel queria fazer algo parecido com um melodrama, género muito apreciado no México, sem pôr de parte o seu universo, a que deu o nome de La belleza del cuerpo, pelo que fiz com ele o pacto de não aceitar a censura. Ou seja, com Luis acordei o “artefacto”, a bomba. Com os outros não o fiz, para não implicarem. No território da arte e da produção artística, o termo “artefacto”, utilizado pelos dadaístas, tem de ter a faculdade de transgredir e de alterar a ordem geral. Em Cannes, quando projectaram Viridiana, houve uma repercussão mundial em forma de escândalo. Os elementos do Partido Comunista Italiano avisaram-nos do teor do artigo que L’Osservatore Romano iria publicar. L’Osservatore Romano e o Vaticano tinham razão na indignação contra o estado autoritário espanhol: como poderia aquela blasfémia acontecer num país católico e com uma Concordata especial? Por outro lado, os exilados no México chamavam traidor a Buñuel por ter aceitado realizar um filme em Espanha. Eu não sabia se poderia regressar ao país. Tinha pedido para fazer misturas de som do filme em Paris, porque era onde estavam alguns dos melhores estúdios de sonorização da Europa e do mundo. E deram-me autorização para levar o material para fazer ali as misturas. Entretanto, a ditadura responde, declarando que o filme não fora rodado em Espanha.
Naquela época, ter um filme em Cannes era como existir, para qualquer realizador, actor ou produtor. Com a atribuição da Palma de Ouro e a reacção do Vaticano, tivemos de resolver o problema de saber quem iria recolher o prémio de um modo que nos pudéssemos proteger. Um dos financiadores do filme, Domingo Dominguín, toureiro e membro do Partido Comunista espanhol, conseguiu convencer o aterrorizado Director General del Cine que deveria ser ele, como representante do povo espanhol, a receber tamanha distinção. Tínhamos combinado que, durante o encontro, eu, um intelectual e ainda para mais catalão, não abriria a boca porque não me entenderiam. Mas, essas palavras vindas de um toureiro… O paradoxo é que eu fui o único produtor espanhol que ganhou a Palma de Ouro. Outro produtor poderá ter ganho, mas com co-produções inglesas ou alemãs. Este foi um dos meus feitos importantes.
Luís Mendonça (LM) – Como é que a sua experiência como produtor moldou a sua linguagem? Dito de outro modo: como é que o cinema de Buñuel, de Ferreri ou até de Carlos Saura moldou o seu código enquanto cineasta?
Propus produzir estes filmes porque me identificava, mais ou menos, com eles, mas eu não defendia os seus códigos. Em relação a Buñuel, o meu referente era Un chien andalou, não Viridiana. Luis dizia-me que, como produtor, tinha de ler algumas sequências. Respondia-lhe que isso não me interessava, que aqueles castelhanos velhos eram uma coisa pesadíssima. Isso fazia-o rir muito. Trabalhei como produtor para enfrentar directamente a política oficial de uma ditadura, sobretudo o aspecto da censura. O financiamento era conduzido para o servilismo e para a aceitação, por aquele que dirigia o filme, dos limites morais, éticos e políticos. Nunca pensei fazer um filme neo-realista, mas interessava-me que o fizessem. Então vieram os italianos, entusiasmados, porque no mundo do cinema tinha grande reconhecimento como produtor, ganhando a Palma de Ouro e com todo aquele escândalo. Um grande produtor, Angelo Rizzoli, sugeriu que fosse trabalhar com Francesco Rosi, enquanto supervisor dos diálogos de Il momento della verità (1965), que abordava o universo tauromáquico. Rosi escrevera diálogos que se adequavam a um intelectual italiano mas não à gente da tauromaquia. Passei ali um ano, estabelecendo relações com pessoas. Estava junto à câmara e, enquanto controlava os diálogos, estudava os enquadramentos e os focos, dando-me conta do que faziam, porque sim e porque não. Foi a minha aprendizagem, a aproximação a este meio, da mesma maneira que o fiz com a montagem, observando o que faziam, ainda que não fosse o meu modelo.
A radicalidade está desprestigiada pelos poderes, nomeadamente pela direita, que a odeia, mesmo parecendo ser os mais “radicais” pois necessitam de dogmas para se explicar. Ser radical é fundamental. Tens de assegurar que não te instalas numa posição definitiva. Tudo é efémero e, quanto mais te afastas do passado, melhor. Por melhor que sejas. Um bom filme tem de te instigar a ires mais longe. Foi nestas condições que construí o meu código. Desde o primeiro filme rompo com a continuidade entre causa e efeito. E o que é o guião? É a tirania que obriga o espectador a fazer um percurso de que não se pode afastar. Aristóteles, que criou a fórmula, dizia que era uma articulação perfeita. Primeiro, fiz sequências separadas por fórmulas usadas na publicidade e na televisão: figuras geométricas que separavam a sequência e não tinham relação entre elas.
LM – Essa estrutura elíptica, cisão entre causa e efeito, não vem de Buñuel?
Vem de um processo. No século XIX, dá-se a mudança, quando se passa do romantismo a um novo tipo de movimento artístico, o realismo, e mais tarde ao neo-realismo – um outro olhar que requeria mudanças substanciais nos códigos. O sistema dominante de controlo da produção e distribuição do cinema era muito poderoso. O êxito popular, em termos de audiências, era tão grande que, aceitar sair dali, correspondia a ir para a periferia. Os códigos conduzem a que tenhas de construir uma narrativa que seja coerente com o que vais representar. A vantagem dos códigos é que permitem um olhar muito mais complexo, o que nos convida a não seguir o argumento. O espectador pode envolver-se no filme, fazendo o seu próprio filme, ou então distanciar-se.
LM – Além de colaborar com cineastas como Buñuel, Ferreri ou Saura, há uma dimensão interdisciplinar na sua obra que integra poesia (Lorca), pintura (Miró) e a música (Carles Santos). Para si o cinema é uma arte total? Faz cinema precisamente por este integrar todas essas linguagens?
Optei por fazer cinema de um modo muito natural. Porque me dei conta que tinha facilidade em trabalhar como artesão, tocando em algo e ficando com a sensação claríssima que o poderia melhorar. Trata-se de um ponto de vista subjectivo. Ao longo da minha aprendizagem com Francesco Rosi, ele pedia a minha opinião sobre como eu teria feito algo. A partir da minha resposta poderíamos repetir o plano. No caso de Buñuel, se não tivesse feito filmes como Un chien andalou e L’âge d’or não entraria na história dos movimentos artísticos contemporâneos. No entanto, no México realiza filmes meramente convencionais, pelo que é considerado como um bom cineasta pela Academia de Hollywood, que eram aqueles que praticavam um modelo exotérico. Todos os filmes que fiz têm esta coerência em que me sinto muito cómodo. Porque me permitem construir uma narrativa, sobretudo pela necessidade da cumplicidade daquele que a vê, não para que admire o que lhe proponho, mas para que, vendo de fora, possa emocionar-se, judiar comigo.
Os meus filmes não têm final. O final encontra-o o espectador, fugindo ou ficando até ao fim. E não acontece nada fascinante ou inesperado, como um assassinato, um adultério ou algo muito mau. Em troca, o espectador acede a algo, através de um código composto por metáforas, paradoxos, pulsões poéticas. Há uma espécie de húmus entre nós, que não somente comunicamos (numa forma simplista de o dizer) com o olhar, a voz ou o estômago, mas também com percepções, sensações ou sensualidade. O filme transmite o que tenho para lhe oferecer. Veja-o com toda a liberdade, fazendo a sua viagem. E se não ficar até ao fim, não tem final. Não tem clausura. O estranho é que a clausura é muito lixada. Clausura é a armadilha da história.
CAC – Nos seus primeiros filmes, a questão da montagem parece preponderante relativamente à narrativa. Há a exposição de uma linguagem que está próxima dos códigos publicitários e da propaganda política. Principalmente no primeiro filme, isso nota-se mais. Como foram concebidas as suas primeiras obras?
Tudo é narrativa. O quadro abstracto é tão narrativo como o figurativo. Um quadro de Rothko é uma narrativa. A questão é se é inteligível para ti e para mim, porque cada um tem diferentes códigos que condicionam a leitura. Tenho um filho que é cientista, com uma linguagem pesadíssima mas adequada para a terminologia usada pela comunidade científica. Para comunicar comigo tem de utilizar uma narração diferente da que usa com os colegas. Em todos os meus filmes, em vez de alguém do cinema – um guionista ou um louco, porque não nos entenderíamos -, prefiro rodear-me de um músico, um poeta, um pintor, um filósofo ou um historiador. Reúno dois ou três destes para cada filme. Dei-me conta de que, nos anos 60, a publicidade era composta por spots que duravam segundos. Para que não ficasse a dúvida de que ninguém perderia tempo a procurar uma relação entre a primeira e as seguintes sequências, numa tentativa de descobrir e ler a partir de códigos de outros: primeiro, utilizava-se o método da duração; segundo, a separação entre sequências era mecânica – formas rectangulares em movimento que separavam, por exemplo, o spot da Pepsi do da Coca-Cola. Nos filmes usei este método para garantir que não se procurasse uma relação entre causa e efeito.
No compteu amb els dits (1967) parte de um texto do poeta Joan Brossa, dito no tom enfático próprio dos spots publicitários, contraposto a imagens poéticas. Ou seja, o tom era fundamental, para me posicionar suficientemente distante, para que não fosse revelado, o que levou as pessoas a concluírem que eu estava perdido. Quando realizo o segundo filme, Nocturno 29 (1968), afasto as cortinas e a narrativa entra de forma contundente, independentemente da resistência de cada espectador. Quando vemos um filme que propõe um código diferente, temos de nos subrogar, sem a preocupação de perguntar ao realizador o que quer dizer, porque, mesmo sabendo o que está a fazer, não tem de o explicar. Quando realizei esses primeiros filmes, apareceu um rapaz que me reconheceu e comentou o seu entusiasmo com Nocturno 29 que tinha visto na Filmoteca. Pediu-me para o explicar. Respondi-lhe que não saberia como o fazer e que deveria, a partir da sua capacidade e sensibilidade, reflectir no que o tinha inquietado e entusiasmado.
LM – Há uma entrevista sua em que fala da importância de dessacralizar a obra de arte. É sobre o filme que fez sobre Miró. Eu estava a pensar que em Vampir, Cuadecuc vampiriza em vez de colaborar com o cineasta, Jesús Franco. É quase, em certo sentido, uma parasitagem criativa. Como é que entende esta postura?
Eu estou a vampirizar-te. Estou aqui com vocês, sem os quais não sou ninguém. O que posso fazer? Pois, vampirizar-vos. Vou expondo a minha narrativa, para comunicar convosco. É uma maneira simplista de o explicar. Por outro lado, a direita, as convenções, as instituições e o controlo, não só económico, mas também moral e ético, tendem a sacralizar as normas de conduta, alegando que há códigos que não podem ser ultrapassados. O princípio da dessacralização da arte nasce com a religião. Os primeiros símbolos sacralizados vêm da necessidade de haver algo além deste mundo insuportável. A dessacralização como norma é fundamental. Num mundo sacralizado, admite-se que há objectos, símbolos ou sinas que estão acima de nós e que, na sua leitura, quanto mais mistério tiverem, mais potência e influência têm sobre nós. A arte, segundo um ponto de vista materialista, não se pode sacralizar porque senão aceita-se um nível que não é humano. Quando havia secas, para as primeiras espécies era funcional adorarem o sol e terem deuses da chuva. A algo tinham de recorrer e se procuravam respostas no céu, era normal que o símbolo fosse o sol.
CAC – Entre Informe general sobre unas cuestiones de interés para una proyección pública, que realizou em 1977, e Pont de Varsòvia, em 1989, não realizou qualquer filme. O que é que originou a sua ausência do cinema?
Estive ocupado com nascimento da Constituição. Intervir na Carta Magna foi uma experiência fantástica. Fiz parte de uma comissão, composta por elementos do Senado e do Congresso, responsável por uma segunda leitura. Conseguimos a abolição da pena de morte. A mim coube-me o desenvolvimento de leis orgânicas derivadas da formação da Constituição. Apenas em 1986, decidi não mostrar disponibilidade para me dedicar ao cinema. Podemos estar comprometidos com determinadas questões, como os problemas de género, e participar em manifestações. Mas há um palavra básica que é implicar. E, se não estás implicado constantemente em torno da tua história e do teu futuro, estás lixado. No meu trabalho, nunca separei a arte da política. Coerentemente com o meu cinema, decidi não militar em nenhum partido, embora me posicionasse na esquerda, como companheiro de viagem dos comunistas. Na época da ditadura, implicação requeria militância, que tinha sentido porque se estava em guerra física. Fora dessa época, a palavra militante é castradora e insultuosa. Tem de se garantir a lealdade para connosco mas nunca a fidelidade, que é pedida por aquele que detém o poder. Se te preocupas com a fidelidade, estás lixado. Parece-me que falar disto é mais importante do que dos filmes.
LM – Para fazer política era necessário abandonar a via do cinema. Não era conciliável?
Eu nunca abandonei o cinema. Conscientemente, dediquei mais tempo a algo que era muito mais importante. Era o guião de todos. Os meus filmes eram uma merda ao lado disso. Mas eu era o mesmo, estando ali como cineasta. A partir das minhas intervenções, diziam que eu tinha uma facilidade narrativa. Quando, finalmente, abandonei aquele trabalho senti que tinha cumprido uma etapa importante, mas nunca me senti afastado do cinema. Então, em 1989, surge Pont de Varsòvia, que é uma revisão crítica dos intelectuais.
LM – Crítica e autocrítica, não?
Sim e não. Trata-se de uma visão do mundo dos intelectuais visto à luz da banalização própria dos anos oitenta, quando nascem os poderes de hoje, nomeadamente os empresários que tomam conta da Casa Branca. É um poder que fala de um pensamento único, de arte que seja adequada e que rompe com qualquer palavra que signifique transgressão ou ruptura. Tudo se normaliza num statu quo que domina o poder instalado. Como referi, numa parte desses anos estive dedicado à Constituição, enquanto membro do Senado. Do Congresso propunham que o Rei, enquanto figura do Estado, tivesse o poder de presidir à reunião do Governo em caso de alarme social ou conflito com o estrangeiro. Como isso iria anular o desejo de implantar a República, defendi uma emenda em que o Rei apenas poderia ter a função representativa, enquanto elemento estabilizador na passagem da ditadura para o estado democrático. Sem Rei como Chefe de Estado, enquanto herdeiro oficial indicado pela ditadura, não teria havido democracia. Um dos senadores reais questionou-me sobre a ideia de transformar o Rei num sujeito “irresponsável”. A minha convicção era que necessitávamos de um Rei que durasse, pelo menos, dez anos porque não havia referendo sobre a República ou a Monarquia, mas uma imposição. Os dez anos seriam suficientes para consolidar um estado democrático nas mãos dos cidadãos.
CAC – Tendo como referência Informe general sobre unas cuestiones de interés para una proyección pública (1977) e Informe general II. El nou rapte d’Europa (2015), Pont de Varsòvia (1989) parece, de certa maneira, uma espécie de “Informe general” intermédio.
Há dois filmes que considero intermédios: o que fiz sobre presos políticos, El sopar (1974), e este Pont de Varsòvia… Como dizia um crítico, quando foi exibido na Argentina, Portabella “tiene tiempo de ponerse bien la corbata mientras rompe el cine y el mundo a pedazos”. Parece-me que é bem visto: bem ou mal, eu nunca os separei. Quando regresso ao cinema, venho com uma experiência extra, com um olhar sobre o mundo da cultura, em termos amplíssimos, como espaço, não simplesmente de acordo com o que se publica. A cultura é uma singularidade da espécie humana. Há uma ideia de Tzvetan Todorov que utilizo frequentemente: se perdêssemos a consciência moral e ética do que somos, entraríamos num perigoso processo de mutação da espécie em animais. Por sua vez, a cultura mostra não saber o que fazer com o meu grito. Que fiz um filme, que ganhei um prémio, um Óscar. O que me é indiferente. Merda!
CAC – No caso de Informe general II, há uma altura em que Manuel Borja-Villel pergunta a Antonio Negri se considera que a situação actual é mais complexa que a vivida durante a década de 70. O que que pensa disto?
No Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona (MACBA), Manolo tinha organizado uma exibição da minha obra, pelo que criámos uma excelente relação. Disse-me que gostaria de produzir, agora no Museo Reina Sofía, um evento contínuo e impressivo a partir de uma visão crítica sobre a função dos museus. Seria uma reflexão, não apenas crítica, mas também geral, do que é o mundo da arte e a mediação das instituições clássicas. Como já tinham organizado a retrospectiva, propus-lhe o que seria o princípio do guião, inspirado na tensão entre os dois edifícios intrusos que constituem o museu: um construído no século XVI e a ampliação da autoria de Jean Nouvel. Imaginariamente, iriamos esvaziá-lo, porque o que chamamos arte contemporânea não tem sentido que ocupe o espaço fechado de um museu. Este tem a função de conservar o que constitui o património. O contemporâneo ainda não é património. Constitui um valor de acordo com as galerias de arte: é melhor comprar um quadro abstracto, que vale milhões, do que acções da Repsol. De aqui parte Informe general II, com os comentários que ali se produzem. Como é possível fazer ali uma produção artística? De nenhuma maneira. Estás na periferia ou estás lixado. Por isso, no filme entra-se e sai-se, nunca olhando para um quadro, exceptuando Guernica. Porque, como Manolo diz a Negri, Guernica, símbolo universal da guerra, transformou-se em arte burguesa, apoderou-se das pessoas, tornou-se pública.
Estabelecendo uma ligação ao que falámos antes, dei-me conta que também vivemos um processo de mudança. Embora a saída de uma ditadura para uma democracia fosse um problema local, agora a mudança é global. Trata-se de uma mudança de época em que os esquemas rebentaram devido à brutalidade da plutocracia – quando o dinheiro dá o poder, mas não a autoridade, de fazermos qualquer coisa. Por exemplo, descapitalizar um país num minuto. Interessa-me o duplo sentido da palavra “Informe”. Todos os “Informes” são ficção. Organizei tudo antes, desde os cenários à decoração. Filmo uma hora seguida sem parar, com uma steadicam, que é uma câmara lenta – só depois faço a síntese para o espectador – e os intervenientes entram numa dinâmica de diálogo mais cómoda, gerando conversas mais credíveis. Quando pego em material de arquivo, como as manifestações, uso-as sem alterações. Por exemplo, a descrição da Plaza del Sol, em Madrid, organizada como uma pequena vila. Existe uma anedota em que se conta que o seu infantário era o melhor organizado. Foram eles que o fizeram. Ocuparam e montaram toda a estrutura. Isto fizeram-no eles. Algo fantástico porque eu também queria explicar o funcionamento, a organização. Como se estrutura a resistência, como se coordena? É ficção. Sem ficção, sem artifício, não há relatório.
As palavras documental e experimental que vão à merda. Experimental, faz-me lembrar a história de um médico que comunica ao paciente que está quase morto e lhe pede para experimentar um comprimido. Se, finalmente, morre então o médico afirma que a solução não seria aquele comprimido mas outro…
CAC – No seu último filme, há uma cena em que a ideia de artifício, de aparato, é muito forte. Não é propriamente nova, vem detrás. Através de um travelling, a equipa filma Guernica, com dois seguranças, um de cada lado. O mesmo acontece quando está a filmar uma reunião do partido Podemos e a sua própria câmara entra no plano. Qual o interesse em mostrar o aparato, a forma como se constroem as imagens?
O cinema é isto. Ou seja, intervir seriamente para construir as melhores condições para que, posteriormente, possa acontecer este olhar distinto. Facilita o olhar do espectador. Pelo que quando vê a cena, não sou eu que estou lá mas a maneira como filmei. Há dois planos. No primeiro, filmo Guernica como uma película rectangular. Se antes não mostrar o travelling, não existe essa força. O espectador torna-se cúmplice do modo como construo com as minhas ferramentas de ordem visual. Num outro plano, em que vemos a mesa do patronato do museu, não há representação dos cidadãos, apenas bancos e instituições do Estado.
CAC – Mas filma o vazio ou a ausência, até porque as pessoas não estão presentes.
Na cena da reunião do Podemos temos um círculo, em que coloco uma câmara por cima, mas que, tal como em Guernica, é filmada a steadicam a fazer um travelling. Sobretudo, assinala porque são estes que estão ali e não outros. A força do cinema é esta, porque é espaço e movimento, ao contrário de um quadro, uma pintura, uma escultura, um texto ou um romance. O cinema move-se num espaço, num lugar, e tem a possibilidade do movimento, o deslocamento, que é uma maneira de escrever sem levantar a mão de um sítio.
LM – O artifício é mais autêntico?
Estou a utilizar as possibilidades implícitas dos cidadãos através de um olhar que transcende os muros nos quais a ordem nega uma subjectividade diferente daquela que o poder permite. Eu sei o que quero, mas não consigo dominar a técnica. Um operador de câmara tem de ter a capacidade de, quando se lhe pede qualquer coisa, ele imediatamente a visualizar. Nas filmagens, a maioria dos técnicos participa em pouco mais do que três projectos. Mas tem um sentimento de artesão em relação ao trabalho. Há aqueles que olham com desconfiança, sempre que se lhe pede algo diferente daquilo que sempre fizeram, como se o realizador fosse uma personagem que deve estar em quarentena. Mas também há os despachados que fazem bem tudo o que se lhe pede. Se há uma dificuldade, pedem para aguardar e, no dia seguinte, aparecem com a solução.
No mundo do cinema falava-se muito de Vampir, Cuadecuc, onde surgiu a necessidade de o branco ser branco e o preto ser preto. Como exemplo, mostrei um ideograma chinês a Luis Cuadrado [director de fotografia], que me disse ser impossível alcançar o que eu queria devido às características das emulsões. Um dia, telefonou-me cedo para apresentar a solução: utilizando negativo de som de 16 mm, muito mais duro, porque é destinado a gravações da banda sonora. Os brancos e os pretos eram perfeitos. No dia em que foram feitas as provas, a empresa disse-me que haveria material sobre o qual não se poderia responsabilizar por ser de péssima qualidade. Os resultados eram os que desejava pelo que tive de assinar uma carta em que me responsabilizava pelo trabalho. Neste caso, a minha obstinação em obter aquele efeito levou a que o técnico encontrasse uma solução. Conto isto por considerar importante que as pessoas sejam capazes de aceitar desafios, que estejam preparadas, mas não por uma escola de cinema. Que se lixem as escolas de cinema. Ensinam apenas o correcto.
CAC – O Pere não estava preparado para Vampir, Cuadecuc, ao acompanhar as filmagens de El conde Drácula (1970) de Jesús Franco?
Conheci Jesús num cabaret de jazz, onde ele tocava bateria. Estava com o nosso grupo. Era um homem culto de que gostei muito. Além disso, a minha mulher [Annie] tinha trabalhado com ele, pelo que o conhecia de vista. Eu já tinha comentado com o poeta Joan Brossa, que queria apropriar-me de um filme popular de Hollywood, de um argumento, e fazer uma espécie de revisão. Uma revisão poética. Era apenas uma intuição minha. Entretanto, através da minha companheira, soube que uma produtora inglesa vinha filmar a versão original de Dracula, dirigida por Jesús. Perguntei-lhe se se importava que filmasse enquanto ele filmava o seu próprio filme, numa espécie de making of, que ainda não existia naquela época. Numa reunião com o produtor, expliquei-lhe o meu plano, o que o deixou espantado: primeiro, que iria filmar em 35 mm; segundo, a preto e branco. Ele respondeu que teria de obter o acordo de Christopher Lee, de Herbert Löm e dos outros actores, porque davam a voz. Garanti-lhe que iria rodar todo o meu filme sem som, porque os espectadores sabiam de cor os diálogos de Bram Stoker. O produtor zombava de mim. Imagino a sua reacção, mais tarde, quando se apercebeu que o filme era uma referência e circulava por museus. O filme recebeu boas críticas e não custou mais de mil euros. Anos depois, um realizador afirmou que eu não tinha consciência do que tinha alcançado com aquele filme. Um dia, um colega telefonou-me de Paris e referiu que a Cinemateca Francesa estava a exibir o filme, o que me deixou encantado. Sempre considerei Jesús Franco um homem culto e que se portou da melhor forma comigo. Com uma liberdade difícil de encontrar.
CAC – É um filme espantoso, que apela a diferentes públicos. Mesmo os admiradores do trabalho de Jesús Franco gostam muito do seu filme.
Ele concebeu um produto que teve um enorme êxito comercial, inclusive quase se aproximando do cinema pornográfico. Tinha uma habilidade, era inteligente, culto. E com isso ganhou bem a vida, entre altos e baixos.
CAC – Relativamente a Umbracle (1970), afirmou que o mais difícil foi pedir a Christopher Lee que não fizesse nada. É curioso lembrar que, em Janeiro de 2017, Albert Serra esteve na Cinemateca Portuguesa e, a propósito de La mort de Louis XIV (2016), protagonizado por Jean-Pierre Léaud, também falou da dificuldade em trabalhar com um actor que apaixona tão facilmente a câmara e de como iludi-lo a não fazer nada. O que é isso, de não fazer nada? Como aconteceu com Christopher Lee?
Naquela altura conheci Christopher Lee e dei-me conta que era uma figura peculiar no mundo da representação, muito popular por interpretar personagens como Fu Manchu. Ofereci-lhe a oportunidade de ter uma cena onde ele poderia fazer o que quisesse e garanti-lhe que a iria utilizar na montagem final. Informei-o que sabia que, além das suas qualidades de representação, também era cantor. Então aconteceu aquela sequência em que canta o excerto de Il barbiere di Siviglia e, mais importante, recita The Raven de Edgar Allan Poe. Isto surpreendeu-o e gostou muito, não tendo conhecimento em que condições iria ser filmado.
CAC – Ele era muito vaidoso, não era?
Era inteligente e entendia que estava a fazer algo que não era habitual. Não tinha a popularidade de hoje.
CAC – Neste seu mais recente filme, Informe general II, temos uma cena em que L’âge d’or de Buñuel é projectado no museu: vemos a vaca deitada em cima da cama. Associei a imagem da vaca a um ponto posterior do filme, embora a outra forma de luta contra um sistema igualmente dominante e opressivo. No caso de Buñuel, a imagem da vaca visa a burguesia. Em Informe general II são as tendas no meio das praças, fora do seu habitat, que simbolizam a luta contra o capitalismo selvagem.
Esse tipo de relações podem ser interessantes, mas são associações tuas. Estou encantado a ouvir-te dizer isso. Não te vou contrariar. As dúvidas instalam-se. A incerteza é parte do dicionário quando alguém te propõe uma narrativa com uma certa complexidade. Tudo o que é exposto, de uma forma ou de outra, está interligado. Parece-me que, com o que acabaste de dizer, temos um final feliz.
Esta entrevista foi editada e condensada. Agradecemos a Maria João Madeira (Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema), Adrián Onco (Films59), Inês Gomes, Israel Cordero e Vanessa Lopez.