A minha colheita deste mês tem que ver com o “género” do filme de cerco ou de cativeiro. Mais concretamente, duas obras, consideradas menores, que passaram na televisão e que me surpreenderam pela sua capacidade de cortarem a respiração. Filmes que lidam com uma situação clássica: personagens vulneráveis enclausuradas numa casa e rodeadas ou rigorosamente vigiadas por um gangue de facínoras. A linguagem do cerco e do cativeiro é recorrente nalgum cinema clássico, começando pelo mestre dos mestres neste departamento chamado Howard Hawks. Contudo, este não está só, como se comprova, desde logo, em Rawhide (O Correio do Inferno, 1951), do subestimado Henry Hathaway – cineasta que mereceu uma, voluntária ou não, pequena mostra de filmes no canal TVCine 2. Ao mesmo tempo que me foi dado a descobrir este western entre quatro paredes, acedi à sugestão do walshiano Ricardo Vieira Lisboa, que em conversa me disse: “tu gostas de Walter Hill, não é? Então tens de ver um filme seu que anda aí a passar na TV”. Que filme é esse? Trespass (Predadores, 1992), com argumento co-escrito e produzido por Robert Zemeckis e Bob Gale (a equipa por trás da saga Back to the Future), e com Bill Paxton, William Sadler, Ice Cube e Ice-T no elenco. Passou no canal Hollywood e prendeu a minha atenção do primeiro ao último minuto.

Os elogios mais belos e sábios sobre Henry Hathaway já foram tecidos neste site. Uma vez por João Lameira, acerca do romance intemporal Peter Ibbetson (Sonho Eterno, 1935), outra vez por João Palhares, a propósito do western Garden of Evil (O Jardim do Diabo, 1954). Estes dois textos percorrem exemplarmente os caminhos do cinema de Hathaway. Acima de tudo, eles testemunham uma grandeza maior que aquela que “os livros de história” nos dão a ler. Hathaway nunca esteve entre os maiores da Hollywood clássica. Mas foi um fidelíssimo artesão da indústria. Trabalhou intensamente sobretudo para a Paramount e para a Fox. Pelas suas mãos passaram os actores mais emblemáticos e carismáticos do seu tempo: Randolph Scott, Gary Cooper, Tyrone Power, James Stewart, Richard Widmark, John Wayne, Marilyn Monroe, Susan Hayward, etc. Pelo menos o star-system deve-lhe qualquer coisa. O mundo da cinefilia, esse, tem demorado a pagar-lhe uma dívida de gratidão pelos seus filmes. É uma descoberta, ou reavaliação, lenta – a obra percorre todos os géneros e é extensa (mais de cinquenta títulos!), até porque Hathaway foi dos poucos da sua geração a sobreviver ao colapso da Hollywood clássica, tendo inclusivamente filmado alguns dos seus filmes mais populares nos anos 60, sendo o mais conhecido True Grit (A Velha Raposa, 1969), western que valeu a John Wayne um Óscar e que mereceu há pouco tempo um remake algo insípido da autoria dos irmãos Coen.
Posto isto, nesta longa caminhada de recuperação do estatuto de Hathaway, como grande engenheiro do clássico, venho aqui apenas contribuir com os meus modestos five cents. Filme pequeno, concentrado, tenso, que chama a si alguns dos adjectivos mais empregados na caracterização do cinema deste cineasta: sóbrio, seco, duro, violento… Jacques Lourcelles, Louis Skorecki e Bertrand Tavernier são alguns dos insignes críticos a reconhecerem nesta – ou em parte desta – adjectivação o estilo desse realizador subestimado. Sobre este Rawhide, que passou discretamente no nosso pequeno ecrã, apetece-me, contudo, começar por citar o grande especialista do western Patrick Brion, na respectiva entrada da fundamental Encyclopédie du Western – Vol. 1 1903-1955: “Henry Hathaway mete em cena as suas personagens, sem um plano inútil nem a mínima hesitação. Cada frase de diálogo, cada silêncio e cada gesto têm a sua importância, o cineasta escolheu renunciar às cenas espectaculares de acção para privilegiar a intensidade dramática deste western entre quatro paredes [huis clos]“.
Rawhide, um dos quatro filmes que Hathaway realizou em 1951, é um filme cujo argumento escrito por Dudley Nichols [Stagecoach (Cavalgada Heróica, 1939)] parece enfileirar no conjunto de títulos onde constam The Desperate Hours (Horas de Desespero, 1955), The Tall T (A Marca do Terror, 1957) e Rio Bravo (1959) ou mesmo, muito mais recentemente, The Hateful Eight (Os Oito Odiados, 2015). Nos confins do oeste, a estação Rawhide é tomada por um bando de rufias que aguarda por uma mala-posta que transporta ouro. A partir daqui, as pedras do jogo estão lançadas: de um lado, os sequestrados; do outro lado, os sequestradores. Cada uma das personagens vai expondo as suas taras e fraquezas. Contra a barbárie e violência dos bandidos, um casal forma-se: Tom Owens, o empregado da estação interpretado por Tyrone Power, e Vinnie Holt, uma mulher em viagem incarnada por Susan Hayward, que traz consigo a pequena Callie, a sobrinha que adoptou após a morte trágica dos pais. Os dois começam por “fingir” a relação, tendo a bebé como o seu rebento, só que a conveniência revela-se mais que oportuna. O que era teatro de sobrevivência transforma-se numa verdadeira história de amor. Um amor cúmplice, directo, sem floreados – Hathaway gosta pouco deles, de facto. Até porque é assim o modo de ser da fabulosa Susan Hayward, mulher determinada e de fibra que estará sempre no comando das operações nesta história – será também um pouco assim nesse sideral western que atrás citei, Garden of Evil.
Henry Hathaway e Walter Hill produzem exemplares de um cinema reduzido “ao osso”, cujo movimento moral e cinemático nos entretém e fascina tanto quanto nos confunde e incomoda.
O mais interessante em Rawhide é a forma como Hathaway vai alternando os focos de tensão – arranjar uma arma, enviar uma mensagem de socorro, fazer um buraco no quarto que permita a fuga, etc. Não há, de facto, tempos mortos aqui. A ansiedade é grande: os protagonistas sabem que não sobreviverão se ficarem presos na estação durante muito tempo. O elemento de ansiedade é transferido para o espectador através do contraste provocado pela fragilidade e inocência da bebé contrapostas à loucura desgovernada de Tevis, o mais descompensado dos bandidos (magnificamente interpretado por Jack Elam). Uma cena foi – e continua a ser – de uma tal violência que acabou por interditar Rawhide nas salas de cinema durante vários anos.
Numa desesperada troca de tiros final, Tevis dispara sobre a bebé, que, inconsciente do que se passa, dá passos inseguros em direcção a Tom. Os tiros vão aproximando-se da petiza. A ansiedade no rosto de Tom reconduz a nossa ansiedade de espectadores impotentes. Queremos saltar para dentro da acção e impedir o sádico homicida. Hathaway e o preto-e-branco frio e soturno de Milton Krasner tornam este num western híbrido, entre o ensaio psicológico no faroeste e o thriller noir. Se, por um lado, o grande tema do western está lá – tal como o identifica Tavernier, o confronto entre ordem e desordem, entre a civilização e a barbárie – também é verdade que, por outro lado, esta é uma obra extraordinariamente embrenhada na psicologia das suas personagens, as boas e as más. Veja-se o líder do bando de ladrões, interpretado por Hugh Marlowe, actor acarinhado pelo público americano que pela mão de Hathaway se transforma num ser ambíguo, longe da aleatoriedade demencial de Tevis, mas firme – e, se for caso disso, implacável – a desempenhar o papel de vilão. Rawhide é magnífico também por isto: parece haver sempre uma brecha através da qual a luz indistinta do bem e do mal penetra. A morte e a vida, tal como o pecado e a inocência, estão quase sempre de mãos dadas. Uma moral encurralada, entre quatro paredes.

Acontece poucas vezes. Mas quando acontece é qualquer coisa. Vemos um filme recente perto de desconhecido ou globalmente desconsiderado e, de repente, apercebemo-nos que está ali ouro. O espanto é tal que nos dá vontade de gritar aos sete ventos: obra-prima! Foi o que me aconteceu com este supostamente “filme menor” de Walter Hill, obra situada numa fase descendente da sua filmografia. Mas não: não há descida aqui, mas apenas subida. Uma subida infernal para um thriller à huis clos como há poucos: encurralamento no espaço e encurralamento moral. Como em Hathaway? Sim, mas também como em Hawks, como em George A. Romero, como em John Carpenter. Pode o leitor, desde já, subir a parada das suas expectativas antes de se encontrar com esta pérola seja onde for. Trespass tem qualquer coisa de magistral no sentido em que Hill reduz o drama ao seu esqueleto, sabe concentrar-se, com secura e argúcia, nos dilemas e ambiguidade moral das suas personagens e na sua acção, de fuga ou de cerco.
Dois pobres bombeiros vêem a oportunidade de uma vida num mapa que lhes é oferecido por uma vítima de um incêndio. Ouro à vista, pensam eles. E lá vão no encalço do tesouro, sem saberem ao certo para onde o destino lhes leva. Numa linguagem mais parabólica, apetece dizer antes: “sem saberem ao certo que lição o destino lhes reserva”. Uma valente lição, diga-se. A fábrica abandonada em St. Louis que tem a marca X do tesouro é local de reuniões de gangues armados até aos dentes. Enquanto procuram por preciosidades, os dois amigos assistem ao que não devem. Passam, portanto, a ser testemunhas inconvenientes e “a abater” para um gangue onde constam King James (Ice-T) e Savon (Ice Cube). Gente da pesada que não perdoa o distúrbio aos dois “branquelas”. A partir daqui não vou desenvolver, apenas avanço que o filme circula algures entre Rawhide e Panic Room (Sala de Pânico, 2002).
Clausura, manobras de diversão, ansiedade e um tratado sobre a ganância. Walter Hill desenha este filme com uma perícia notável. Como escreve Adrian Martin na sua crítica ao filme, disponível, agora, no seu recém estreado – e já obrigatório – site pessoal, “Hill revela a dissolução de toda a aliança interpessoal, e a reversão de todas as expectativas narrativas, com um alegre cinismo a sangue-frio.” Com efeito, o enclausuramento acompanha o “jogo de cadeiras” moral em que bons e maus acabam por se confundir: seja nos seus intentos criminosos, seja na sua busca cega pela fortuna, bons e maus, maus e bons, pecam. E o espectador, pelo caminho, é conduzido aos ziguezagues até ao desenlace de letal ironia. De tal maneira que, visto o filme, o título português parece ganhar uma outra forma: “perdedores” ao invés de “predadores”.
Eis, enfim, Hill e Hathaway, dois cineastas reduzidos a um esqueleto dramático que faz baralhar as consciências ou abanar os espíritos. Os dois produzem exemplares de um cinema reduzido “ao osso”, cujo movimento moral e cinemático nos entretém e fascina tanto quanto nos confunde e incomoda. Uma “moral cinemática” funda-se nestes dois filmes e fecha-nos para nos libertar. Libertar de quê? Das nossas expectativas e das nossas certezas. Nada nem ninguém está seguro. Nem em Trespass nem em Rawhide. As personagens nestes filmes poderão, no fim, conseguir fugir – algumas delas, pelo menos -, mas os espectadores ficam presos ao que viram. Duas cativantes experiências de nervos.