Todos os sábados à tarde, antes de arrancar a sessão das 15 horas, a sala da Cinemateca Júnior é uma animação. Pais e filhos enchem a plateia do Salão Foz de gritos e risos, misturados com admiração pela decoração da sala: o ecrã emoldurado por pilastras e um frontão triangular, baixos-relevos de estuque nos balcões e no palco, candelabros pendurados do tecto, o chão revestido de alcatifa, os nichos com aparelhos de pré-cinema atrás da última fila de cadeiras, as cortinas de veludo amarelo-torrado e as grandes portas de madeira que deixam entrever, na sala contígua, a exposição permanente de instrumentos ópticos e lanternas mágicas da Cinemateca Júnior. Nada que se compare, porém, com o silêncio deslumbrado – pontuado por exclamações, mais gargalhadas e mais gritos assustados – que acompanha o início da projeção (no dia da nossa visita, um programa de curtas da Disney em cópias de 35mm).
Dificilmente se poderia escolher melhor local para uma sala destinada à formação de novos públicos para o cinema. O atual Salão Foz está instalado num edifício carregado de história e numa das salas de cinema mais antigas da cidade. A Cinemateca Júnior está localizada no interior de um palácio do século XVIII/XIX, conhecido inicialmente como Palácio de Castelo Melhor e, depois de 1889, como Palácio Foz. Em 1901, na sequência de problemas financeiros, o marquês da Foz foi obrigado a vender o recheio do seu palácio num leilão que durou dias e que foi um dos maiores acontecimentos mundanos da Lisboa do início do século XX. Pouco depois, a própria capela privativa do palácio foi desmantelada e todo o edifício acabou por ser hipotecado a um banco e depois alugado parcelarmente durante as décadas seguintes. Nos espaços arrendados do rés-do-chão instalaram-se então várias lojas e restaurantes, entre os quais a célebre Pastelaria Foz e, na cave, o café-restaurante Abadia, inaugurado em 1917; no andar nobre instalou-se o maior clube noturno da Lisboa dos anos vinte, o Maxim’s. Em 1908, instalado na antiga capela privativa do palácio, abriu o Salão Central, sala de cinema explorada por Raul Lopes Freire, um dos empresários de cinema mais importantes do seu tempo. Mais tarde, o mesmo Lopes Freire inaugurou uma segunda sala de cinema na antiga sala de música do palácio, destruída por um incêndio em 1929.
Desde a sua abertura em 1908 e até à inauguração do cinema Tivoli, em 1924, o Salão Central foi a sala de cinema mais luxuosa de Lisboa, tendo procurado sempre cativar o público mais elegante da capital. A partir de 1917 teve uma orquestra residente de seis elementos para fazer o acompanhamento musical de todos os filmes e dispunha ainda de uma sala de espera e de um bar contíguos à plateia e com vista para os jardins nas traseiras do palácio. Para concorrer com outras salas mais novas e mais modernas, o Salão Central sofreu quase anualmente remodelações na sua decoração e melhoramentos nas suas condições de conforto que aproximaram a sala do seu aspecto atual. Em 1928, mudou igualmente de nome para Central Cinema, perdendo finalmente a designação de “salão”, associada às mais antigas salas de cinema e, cada vez mais, aos cinemas de bairro, de frequência mais popular. Passaram por este cinema alguns dos filmes mais marcantes da história do cinema estrangeiro e português: nos anos 1910, estrearam aqui vários melodramas dinamarqueses, como Atlantis (August Blom, 1913), ou o filme de reconstituição histórica italiano Cabiria (Giovanni Pastrone, 1914). A partir dos anos 1920, estrearam aqui vários serials americanos, bem como O Destino (Georges Pallu, 1922) e Mulheres da Beira (Rino Lupo, 1923), dois êxitos do cinema mudo português. Até ao final da década de 1920, estrearam vários filmes alemães, assinalando o gosto da época e também o facto de Lopes Freire ter sido um dos principais distribuidores de filmes desse país em Portugal, especialmente da mítica produtora UFA. Foi também nesta sala que tiveram lugar as estreias portuguesas de, por exemplo, O Gabinete do Doutor Caligari (Robert Wiene, 1920), ou de Dr Mabuse (1922), Espiões (1928) e A Mulher na Lua (1929), todos de Fritz Lang, ou ainda a Paixão de Joana d’Arc (Carl Dreyer, 1928). A partir de 1931, tiveram lugar as primeiras sessões de cinema sonoro no Central Cinema. Foi ali, também, que Manoel de Oliveira viu em 19 de setembro de 1931 o seu Douro, Faina Fluvial (1931) ser recebido com uma monumental pateada, episódio relembrado pelo realizador no mesmo local, passados exatamente 71 anos, na ante-estreia de Porto da Minha Infância (2001).
Foi ali, também, que Manoel de Oliveira viu em 19 de setembro de 1931 o seu Douro, Faina Fluvial (1931) ser recebido com uma monumental pateada, episódio relembrado pelo realizador no mesmo local, passados exatamente 71 anos, na ante-estreia de Porto da Minha Infância (2001).
Em 1940, o Estado comprou o Palácio Foz, onde viriam a instalar-se no final de 1947 o Secretariado Nacional da Informação (SNI) e, sob a sua tutela, a Inspeção Geral de Espectáculos (censura de filmes incluída) e a recém-criada Cinemateca Nacional. O antigo Central Cinema torna-se a “sala de conferências, concertos e cinema” do SNI sofrendo então a sua última remodelação, que lhe deu o aspecto atual, desenhada pelo arquiteto Luís Benavente, autor do projeto de restauro e adaptação de todo o Palácio Foz às novas funções. As sessões regulares da Cinemateca no Salão Foz, como é atualmente conhecida a sala, arrancaram em Setembro de 1958 com uma retrospectiva de cinema mudo português. Três anos antes, nas traseiras do Palácio Foz, tinham-se inaugurado os primeiros cofres climatizados da Cinemateca, que ali funcionaram até à abertura do seu centro de conservação fílmica – o ANIM –, em 1996.
As sessões regulares da Cinemateca no Salão Foz continuaram até 1980, data da sua mudança para instalações próprias na Rua Barata Salgueiro, onde permanece desde então, exceção feita a um breve retorno, entre 2001 e 2002, durante as obras de remodelação da Barata Salgueiro. Em 2007, o Salão Foz acolheu o projeto pedagógico e museológico da Cinemateca Júnior, que se divide entre sessões para as escolas do distrito de Lisboa durante a semana e, aos sábados, sessões abertas ao público (com um atelier para famílias na manhã do último sábado de cada mês). Além destas sessões, qualquer pessoa pode visitar, de segunda a sábado, a coleção de equipamentos cinematográficos, originais e réplicas, que conta o início da história do cinema e que é o “pórtico” do que poderá um dia vir a ser o “museu” da Cinemateca.
No dia da nossa visita, o responsável pela cabine é Michaël Monnier, um dos sete projecionistas da Cinemateca e que, juntamente com Sérgio Ribeiro, é quem mais tempo costuma passar na Júnior. Na nossa primeira visita encontramo-lo na cabine, no topo do balcão, preparando uma cópia de 35mm de Ponyo (Hayao Miyazaki, 2008) para uma sessão escolar. O espaço é pequeno para os três projetores (um Prevost de 16mm, 1 Zeiss Ernemann de 35m e um Kinoton FP38E de 16/35mm – o Kinoton veio do ICA e substituiu o segundo Ernemann que veio da antiga cabine da Barata Salgueiro). Tudo está impecavelmente arrumado e etiquetado, das prateleiras com objetivas e peças sobresselentes e às janelas de projeção de vários formatos, e há avisos por todo o lado. No chão, na parede oposta à das vigias, vários filmes já montados aguardam a sessão em que serão projetados. Existe uma pequena sala de montagem, mas a maior parte dos filmes já são entregues montados através de uma porta que liga diretamente a cabine à Calçada da Glória. É dali que chega também, em intervalos regulares, o ruído da passagem dos elevadores.
Michaël, 43 anos, está ligado ao cinema desde o nascimento, ou não fosse o seu nome uma homenagem a Michael Douglas, de quem a mãe era uma grande fã. Nasceu em França, em Pontarlier, perto de Besançon (quase na fronteira com a Suíça). Com 14 anos, já ajudava na bilheteira do cineclube Jacques Becker, fundado em 1960 e que ainda existe. Dois anos depois, começou a trabalhar com um amigo num cinema de Pontarlier: ele ocupava-se da cabine e o amigo fazia a bilheteira. Uma aventura para qualquer pessoa, um trabalho de sonho para dois adolescentes cinéfilos. E o início de uma carreira como projecionista que o levou a fazer um curso obrigatório com um exame teórico-prático em que tinha que preparar um pequeno programa com dois trailers e uma longa-metragem, identificando os formatos de projeção e as janelas corretas que deviam ser usadas para cada filme.
Ainda estudou gestão e comércio, mas desistiu porque queria estudar cinema. Trabalhou seis meses numa fábrica para juntar dinheiro e rumou ao Conservatoire Libre du Cinéma Français, em Paris, onde aprendeu montagem (ainda em película). Qualquer curso de cinema em Paris completa-se com as idas aos cinemas de arte e ensaio e à Cinemateca, que Michaël frequentou assiduamente. Acabou o curso em 1994 e, um ano depois, encontrou emprego na cadeia de cinemas Pathé, em Lyon. Regressou a Paris passados seis meses para trabalhar no Grand Rex (da UGC), que não é uma sala de cinema qualquer. Classificado como “monument historique” desde 1981, foi construído em 1930 como uma réplica reduzida do Radio City Music Hall de Nova Iorque. É um dos melhores exemplos dos “picture palaces” europeus, em França também conhecidos como “salas atmosféricas” devido às grandes dimensões dos auditórios e à decoração exuberante, muitas vezes inspirada em estilos decorativos históricos (podemos encontrar um modelo à escala lisboeta no Tivoli de Raul Lino, em imitação do estilo Luís XIV). A “Grande Salle”, com 2.700 lugares, é a maior da Europa, e também acolhe concertos. Desde os anos 1970, o Grand Rex funciona como multiplex, com mais 6 salas entre 500 e 100 lugares. Foi neste período que Michaël conheceu uma portuguesa e veio trabalhar para Lisboa. Passou ano e meio nos cinemas do recém-aberto Vasco da Gama, mas acabaria por voltar a França e aos multiplexes da UGC nos arredores de Paris. Confessa que sempre gostou destas salas por terem muitas máquinas a funcionar ao mesmo tempo (lembra-se de um turno em que ficou sozinho com os 24 projetores de um multiplex). Também gostava de saltar de um cinema para outro, o que considera uma excelente forma de ganhar experiência e de quebrar a rotina. Voltou a Lisboa e trabalhou no São Jorge até ao seu encerramento em 2000. Passou depois pelo laboratório da Tobis, onde reparou filmes de 16mm da RTP antes da sua digitalização. Mas aquela rotina não condizia com ele e por isso aceitou o convite para trabalhar na cabine da Cinemateca em abril de 2005.
Além da Cinemateca, trabalha como projecionista na Gulbenkian e nos festivais IndieLisboa e DocLisboa (ainda chegou a projetar na Malaposta), no Instituto Franco-Português até ao desmantelamento do auditório, em 2016, e nas extensões da Festa do Cinema Francês fora de Lisboa. Também passou pelo Rivoli, no Porto, pelos drive-ins de Montijo e Coimbra, e fez um verão de projeções de cinema em várias praias do país. Gosta muito da Cinemateca e especialmente da Júnior, mas – como muitos projecionistas – tem saudades do ritmo dos multiplexes. Confessa que por vezes ainda lhe faz confusão ocupar-se apenas de uma sala de cada vez.
Sérgio Ribeiro, 49 anos, é o outro projecionista da Cinemateca que costuma trabalhar na Júnior. Encontramo-lo durante uma sessão no terraço da Barata Salgueiro e, noutra visita, na cabine da sala M. Félix Ribeiro. Sérgio começou a trabalhar na cabine dos Olivais, que já sabemos foi um viveiro de projecionistas de multiplex em Lisboa. Foi ali que projecionistas mais antigos, como Vítor Oliveira, transmitiram os seus conhecimentos e experiência aos colegas mais novos. Sérgio passou depois ao Colombo e ainda se recorda muito bem da cabine enorme e dos quilómetros que lá fez dentro. Foi chefe de cabine e dali foi inaugurar o Vasco da Gama, regressando brevemente ao Colombo antes de ir para o Oeiras Parque, onde tomou o lugar de Abel Arnaut quando este regressou a Lisboa. Foi em Oeiras que, uma vez, partiu uma vez a cabeça num tecto falso e, noutra vez, teve que interromper a sessão para ir atar com cordas improvisadas as máscaras do ecrã que se tinham partido durante a projeção. Ainda passou novamente pelos Olivais até, no início de 2002, fazer um interregno no trabalho de projecionista.
Entrou para a Cinemateca em maio desse ano, estreando as salas novas da Barata Salgueiro em janeiro de 2003. Encostado à enroladeira elétrica ao fundo da M. Félix Ribeiro, Sérgio conta que “foi então que percebi que não sabia nada de projeção”. Só conhecia três formatos, velocidades únicas, o 35mm, o cinema sonoro e as cópias montadas. Houve, como aconteceu com todos os projecionistas que entraram na Barata Salgueiro, um período de adaptação e aprendizagem. Desde então, além da película, Sérgio aprendeu ainda a usar vários formatos vídeo e, mais recentemente, a projeção digital (incluindo o 3D). O digital só representa uma ruptura radical se não levarmos em conta a projeção em vídeo. Numa cabine de cinemateca, cada transição tem que implicar a manutenção da tecnologia de projeção anterior para que se possa garantir sempre o imperativo de mostrar cada obra no formato em que foi originalmente distribuída. O que não quer dizer que os projecionistas deixem de ter opinião sobre as máquinas que usam. Todos os colegas de Sérgio explicam que a nova geração de projetores de película tem muitos componentes eletrónicos que impedem aquela relação próxima com as máquinas mais antigas, quase exclusivamente mecânicas, com que muitos deles aprenderam a profissão, nos multiplexes comerciais.
Como não podia deixar de ser, uma conversa que começou na cabine da Júnior já se transportou para a da Barata Salgueiro. Não são apenas os filmes, mas também os projecionistas e as próprias máquinas que circulam entre estes dois espaços. É tempo, por isso, de parar este texto para recomeçar, noutro, a história da projeção nas salas da Cinemateca na sua sede da Rua Barata Salgueiro.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Michaël Monnier, Sérgio Ribeiro, Maximino Fernandes, Rui Machado, Margarida Sousa